Banda maquinas aprofunda a criação coletiva com o disco “O Cão de Toda Noite”

Quinteto cearense mostra constante evolução e entrega um conjunto de canções orgânicas, diretas e perturbadoras

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@svm.com.br
Legenda: Deslocamento e estranheza molda o som de seres alienígenas dentro da própria cidade
Foto: Tais Monteiro

A ideia de atravessar a Santos Dumont na altura da Virgílio Távora resgata a infeliz constatação do quanto Fortaleza é hostil para caminhantes. Enfrentar a mira dos farois tinha como missão a procura de um bar. O Brazil obriga a beber e o adicional noturno da ocasião atendia pelo nome de “O Cão de Toda Noite”, segundo disco do maquinas. Os membros Roberto Borges (guitarra) e Allan Dias (baixo) estão na companhia. Conectam memórias e impressões do presente.

Desde 2013, a banda investiga um novelo sonoro guiado pelo risco de cruzar gêneros antagônicos na estética, mas não em possibilidades de imersão. A medula noise, lo-fi, punk, jazz, eletrônica irriga a comunhão entre melodia e esporro. Desterro e renascimento. Contudo, resumir a dualidades o som perseguido pelo grupo ainda é muito pouco.

As cabeças deste cérbero mutante incluem Guilherme Lins (bateria), Gabriel de Sousa (sax/samples) e Yuri Costa (guitarra/synth). Ex-integrante da Voyage Roset, mente por detrás da Vacilant, Costa também assina a produção que teve o reforço de Felipe Couto (Quintal Studio).

Somam-se aos oito registros do álbum os esforços de parcerias marcantes na trajetória do grupo. Clau Aniz (voz e clarinete), Eros Augustus (piano), Breno Baptista (voz e letra de “Prepare-se Para o Pior”), Ayla Lemos (voz) e Issac Omar (y.a.o) na lida do Theremin.

Rosnar o obscuro

Ruídos de estilhaços e destruição inauguram a excepcional “Maus Hábitos”. A primeira mordida do disco se ergue do duelo entre cordas até migrar e se dissolver na explosão percussiva hipnótica. A vestimenta dramática do maquinas está em cena.

A sequência de “Corpo Frágil” agarra a audição para uma dança esfumaçada. Sem sufocar ou derrapar pelo caminho, somos abraçados, já no terceiro ato da faixa, a um jazz de contornos néon oitentistas.


Clipe dirigido pela Muto, produtora que já trabalhou ao lado de nomes como Mahmed, Carne Doce e Terno Rei.

Talvez a mais “maquinas” até agora do disco, “O Silêncio é Vermelho” esgarça reflexões em torno de partidas e isolamento. Acordes sutis ganham espaço no serviço encantador de sopros e o roteiro soturno da composição é vibrante pela harmonia de detalhes, de encaixes entre as frases.

Legenda: Roberto Borges (guitarra/voz), Yuri Costa (guitarra/synth), Guilherme Lins (bateria), Gabriel de Sousa (sax/samples) e Allan Dias (baixo)
Foto: Taís Monteiro

“Sintomas” denuncia a liberdade da banda na escolha e condução dos territórios sonoros do álbum. Trilha para situações indefinidas, com pegada de jam, vai do fantasmagórico ao raivoso e crava passagem para o cenário menos fértil de “Meia Memória”

“Prepare se Para o Pior” inicia com uma navalha em forma de riff e o corte é suturado no ato contínuo da casa baixo e batera. Lembra um tema cinematográfico de perseguição e a banda projeta o domínio do conteúdo noise já característico do time. “Melindrone” funciona como um breve respiro até “Nuvem Preta”.

A última música de “O Cão De Toda Noite” conclui a obra com tintas trágicas. A composição é uma das mais diretas em sentido de narrativa musical e pouco envereda, ou se propõe a arriscar fora do necessário. 

Legenda: Desde 2013, banda concentra forças nos processos de gravação dos discos e produção dos shows
Foto: Taís Monteiro

Adentrar o novelo sonoro do quinteto cearense é um exercício contínuo de entrega. Passear pelas referências musicais é um caminho, porém entender alguns aspectos da trajetória da banda é ferramenta poderosa.

Com 66 shows em seis anos, dois EP e o discos “Lado Turvo, Lugares Inquietos” (2016), “Resíduos” (parceria de 2018 com Eric Barboisa) e agora “O Cão De Toda Noite”, o maquinas evidencia a eficácia da construção coletiva e o cuidado de se pensar e produzir as apresentações ao vivo.

A conversa com dois dos protagonistas incluiu temas como amizade, decadência da visão romântica de se gravar discos e o contexto desigual de Fortaleza. A “saideira” da noite é consumida ao som de Autopsy. Amanhã é outro dia. 

O Cão de Toda Noite

Legenda: Pintura da capa é um recorte da obra “desviando o olhar (noturno)” (2016) da premiada artista Bia Leite, que concorre ao Prêmio Pipa de 2019
Foto: Bia Leite

maquinas
Mercúrio
2019, 8 faixas

 

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