BaianaSystem, Pabllo Vittar e Marina Sena: conheça as histórias por trás de clipes gravados no Ceará
Fortaleza tem se destacado na produção audiovisual, sendo cenário e ponte criativa para a gravação de videoclipes
Sejam trechos de apresentações ao vivo cheias de tecnologia como as de Rosalía, produções e coreografias elaboradas de grupos de k-pop ou os esperados visuais do Renaissance, uma coisa é certa: os fãs de música ainda se interessam por videoclipes, uma demanda que vinha sendo deixada de lado pela indústria musical nos últimos anos.
Os videoclipes tiveram um papel definitivo na evolução da indústria musical. Entre as décadas de 70 e 80, com a popularização global da televisão, eles se consolidaram como ícones da cultura pop a partir da repercussão de clássicos como Bohemian Rhapsody, do Queen (1975), Material Girl, de Madonna (1984) e, claro, Thriller, de Michael Jackson (1984), curta-metragem que revolucionou o conceito dos music videos.
Mas foi nos anos 90 e 2000 que os videoclipes realmente atingiram o ápice em termos de alcance, impulsionados por fatores como o sucesso da MTV, o avanço da internet e a criação do YouTube. Na época, as grandes gravadoras sempre incluíam estratégias de vídeo ao apostar em lançamentos de artistas famosos ou em ascensão, hábito que foi perdendo a força com o passar dos anos pelo alto custo de produção e pela transformação na forma como se consome música na internet.
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Com artistas internacionais de renome voltando a realizar projetos audiovisuais, o aumento de usuários e engajamento nas redes sociais focadas em vídeos e a possibilidade de gravar com equipamentos menos sofisticados e caros, artistas brasileiros também têm se dedicado com mais intensidade ao formato. E na “nova era de ouro dos videoclipes”, Fortaleza tem se destacado como hub de produção audiovisual, sendo cenário e ponte criativa para a gravação de videoclipes de artistas como BaianaSystem, Pabllo Vittar e Marina Sena.
Produzidos entre fevereiro de 2022 e agosto deste ano, os clipes de “Catraca”, “Cadeado” e “Ombrim (Ai Que Delícia o Verão)” têm muito em comum: são hits de artistas jovens, com grande público e circulação no País, que buscaram na Capital as paisagens e os talentos para compor seus projetos. Além disso, os três filmes foram dirigidos pela Peixe-Mulher, produtora de cultura e audiovisual cearense com foco em protagonismo feminino e LGBTQIAP+.
Comandada pela jornalista e realizadora audiovisual Renata Monte e pela produtora cultural e musicista Luana Caiubi, a Peixe-Mulher nasceu com jeito e cores de carnaval. As diretoras, que já tinham ampla experiência em diversas áreas da cultura, como cinema documental, produção de eventos, assessoria de artistas e gestão, se viram diante de um desafio ao adentrar o mundo dos videoclipes.
A primeira experiência das duas foi emergencial, amadora: no primeiro ano da pandemia, gravaram o clipe de estreia da multiartista Mulher Barbada em casa, quando as três moravam juntas. Algum tempo depois, surgiu o convite para produzir o vídeo de "O Mundo é Nós", de Mestrinho e Bráulio Bessa. Mas foi em 2022 que tudo mudou e, aos poucos, a Peixe-Mulher começou a se dedicar com mais profundidade aos vídeos musicais.
Conheça a seguir a história por trás de três desses videoclipes:
Catraca – BaianaSystem
Gravado no conjunto habitacional José Euclides, no Jangurussu, e em uma sucata de ônibus da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), o clipe de "Catraca", música que faz parte do álbum OXEAXEEXU (2021), é uma parceria da banda com as produtoras audiovisuais cearenses Vetinflix e Peixe-Mulher. As conexões que levaram ao projeto ficaram por conta de Leo Suricate, influenciador e articulador cultural que convidou Renata Monte e a cantora Mumutante para co-dirigirem o filme com ele. Já a direção de produção foi de Luana Caiubi e Rafael Neves, e o grupo inteiro contribuiu para a criação do roteiro, cuja primeira versão foi elaborada por Zé Filho.
A gravação contou com a participação de diversos artistas cearenses: atores, bailarinos e especialmente artistas circenses, como palhaços e malabaristas, muitos deles do Jangurussu. A equipe tinha cerca de 80 pessoas.
“A ideia era contar a história de um cara que está dentro de um ônibus meio desgovernado, as pessoas não sabem para onde estão indo. Era uma referência à situação política do Brasil na época, um sentimento geral: a gente dentro de um ônibus com um motorista insano fazendo atrocidades”, explica Renata. “No fim do clipe, a gente queima uma catraca, o que tem muita simbologia – fala sobre o passe livre, o direito de ir e vir”.
A filmagem foi feita no fim de março de 2022, em uma semana de muita chuva e correria. Segundo a diretora, clipes de artistas “de fora” têm um tempo muito curto para ser executado, devido à intensa agenda de shows e gravações. “Imprevistos sempre acontecem e a gente tem que fazer com o tempo que a gente tem”, destaca.
Nesse caso, o tempo era de apenas dois dias. “Na hora que começamos a gravar, começou a chover e tivemos que parar. No dia seguinte, estávamos finalizando o clipe, já nas cenas finais, que são cenas com fogo, tínhamos jogado gasolina na catraca e a chuva espalhou toda a gasolina. Ficou todo mundo tenso”, lembra Renata. Com o apoio de uma equipe de brigadistas, o grupo conseguiu finalizar as gravações a tempo e em segurança.
"O Baiana foi a primeira vez que eu me senti num set de gente grande, digamos assim", brinca Renata, que ficou surpresa ao chegar no local das gravações e ver a quantidade de equipamentos técnicos disponíveis para filmar, disponibilizados pela TerraVista, empresa parceira do projeto. "De repente, a nossa equipe tinha dobrado de tamanho, tinham caminhões com equipamentos que eu nunca tinha visto ou trabalhado na vida. Foi uma virada de chave muito grande".
Assista:
Cadeado – Pabllo Vittar
Imagine dirigir 200 profissionais ao mesmo tempo enquanto um vídeo musical de uma das drag queens mais famosas do mundo é gravado, tudo no meio da rua e sem a menor noção de quantos fãs da cantora poderiam aparecer para participar do momento – 20, 200, 20 mil. Foi esse o desafio que a Peixe-Mulher abraçou em maio deste ano para gravar o clipe de “Cadeado”, single do álbum “Noitada”, o mais recente de Pabllo Vittar. A produção, que durou quase 24h, ocorreu na Pracinha da Cultura do Vicente Pinzón e teve como destaque a participação do grupo de bregafunk Cia 085, dirigido pelo coreógrafo Cley Monteiro.
Pabllo Vittar decidiu gravar o material na rua porque queria, justamente, que os fãs pudessem participar de um momento especial da nova fase de sua carreira. E foi através de um convite do diretor de fotografia do clipe, Uirá Dantas, parceiro de Renata e Luana em outros trabalhos, que a Peixe-Mulher assumiu as tarefas de assistência de direção e direção de produção na empreitada, colaborando com os diretores Zé Filho e Pedro Antino e criando a narrativa do vídeo em parceria com a equipe da cantora.
“No primeiro momento, seria um clipe de dança, que seria mais simples, e queriam gravar em cinco dias, porque tinha que conciliar com a agenda dela. Quando tomou outra proporção, precisamos de 15 dias de pré-produção e um dia de gravação – mas foi a gravação mais longa que já fiz”, brinca Renata.
O principal cuidado necessário era entender como deixar a cantora e os fãs seguros no caso de haver tumulto no momento das gravações. Além disso, novamente, a equipe se viu precisando "prever" o tempo, já que o Ceará estava no período de quadra chuvosa.
Com o auxílio da Secretaria da Juventude de Fortaleza, o time conseguiu uma quadra coberta com salas de teatro, dança e esportes ao lado, que serviram de camarim e apoio para a equipe. “Começamos a gravar as cenas da quadra às 17h e fomos até às 22h. Quando encerramos o primeiro set, Pabllo cantou, agradeceu ao público, cantou a música, foi até eles. Desproduzimos tudo e fomos pro estúdio da Terravista, que entrou de novo com a gente, e lá gravamos até às 5h”, conta.
A divulgação do local de gravação foi feita pela própria Pabllo, que começou a contar a história do clipe nas redes sociais – primeiro, que estava apaixonada; depois, que levou um “bolo” do cara e, então, que tinha decidido ir para uma grande festa para esquecer do rapaz. E a festa foi mesmo inesquecível, junto aos fãs, ali na pracinha do Vicente Pinzón.
“Muita gente apareceu. Fora a comunidade, muita gente saiu de vários lugares de fortaleza para vê-la, estar junto. Foi uma repercussão gigantesca, afinal, é a drag mais famosa do País”, completa Renata, que destacou o profissionalismo e o carisma da artista. “Ela foi muito pontual, responsável, educada com todo mundo, falou com todas as pessoas”.
Com o vídeo pronto, pela primeira vez, a Peixe-Mulher se juntou em um bar para ver um clipe lançado com expectativa e projeção nacional. E pela primeira vez, um clipe da produtora bateu a casa do milhão – hoje, já são mais de 3 milhões de visualizações no YouTube.
Assista:
Ombrim (Ai que delícia o verão) – Marina Sena, Chicão do Piseiro, Roni Bruno e MTS no Beat
Em agosto deste ano, uma das cantoras mais proeminentes da nova cena pop brasileira também decidiu gravar um videoclipe em Fortaleza. O remix de "Ombrim" foi criado por Chicão do Piseiro, Roni Bruno e MTS no Beat e viralizou nas redes sociais pouco antes de Marina Sena, autora da música, vir à Capital para se apresentar no Festival Zepelim. Fã de piseiro, a cantora se apaixonou pela versão e decidiu gravar um videoclipe com os artistas, que ressuscitaram o hit da Rosa Neon, antiga banda de Marina.
Renata conta que o clipe "caiu no colo" dela e de Luana, mais uma vez, por indicação de pessoas que conheciam o trabalho do casal. Vito, diretor criativo da Marina, convidou o diretor Felipe Pinto, da Rua Zero Produtora, que chamou a Peixe-Mulher para uma parceria na direção. A reunião ocorreu numa quarta, por telefone, e os quatro dias seguintes foram de pré-produção. A filmagem aconteceu na praia da Sabiaguaba, após o show da cantora no Festival Zepelim, e durou apenas uma tarde.
"Como a versão dos meninos falava de festa, Vito queria que o clipe fosse gravado num bar, num barco, tinha algumas ideias para ser o mais natural possível. Na mesma hora lembramos da Sabiaguaba", lembra Renata. Em seguida, a equipe entrou em contato com Roniele Suíra, líder comunitário da região, que auxiliou na produção.
"Com a Marina foi um pouco mais tranquilo, porque apesar de ela ter uma fanbase muito forte aqui, era uma segunda-feira. Minha preocupação maior era o sol e a hidratação da equipe, para ninguém desmaiar", brinca Luana.
Assista:
Produção feminina no Ceará
A Peixe-Mulher surgiu depois de Renata e Luana trabalharem juntas em diversos projetos – como o já saudoso Bloco das Travestidas e a produção de artistas como Silvero Pereira, Mulher Barbada e Clau Aniz – por alguns anos. Em 2019, dois meses após começarem a namorar, elas perceberam que funcionavam bem como uma dupla criativa e que já tinham ali, quase sem querer, uma empresa formada. O casal, então, decidiu oficializar a parceria que já estava firmada na vida pessoal também no âmbito profissional.
A produtora, nomeada a partir de um trecho de "Canoa, Canoa", de Milton Nascimento, hoje se dedica a diversas linguagens artísticas: além do audiovisual, Renata Monte e Luana Caiubi produzem espetáculos de artes cênicas, shows de humor, fazem cinema, assessoram artistas e muito mais.
O sucesso da Peixe se deve em parte, segundo Luana, ao fato de que as duas “descobriram tudo com as próprias mãos”. “A gente errou, entendeu caminhos que não eram producentes, a gente estudou, conversou com quem sabia fazer aquilo e desenvolveu uma fórmula nossa de trabalho, de organização, de fazer com que isso acontecesse dentro de um plano”, conta. Outros fatores determinantes para as diretoras são o “não deixar de fazer” e saber “com quem fazer”.
“O importante é não estancar, entender como melhorar e fazer com os nossos. Trazemos mulheres para posições de comando, pessoas LGBT para postos que geralmente nos são negados. Muitos talentos e possibilidades acabam sendo sufocados por isso. A oportunidade de trazer outros protagonismos, colocar mais gente na frente dos holofotes é muito importante”, ressalta Luana.
A produtora cultural afirma que o avanço dos videoclipes no Estado é sinal do amadurecimento não só do audiovisual, mas da classe artística cearense como um todo. “As coisas vão continuar acontecendo porque as coisas estão mudando. É preciso que a gente entenda que a classe cearense tá pronta, que a gente tem condição de executar, a classe cultural cearense não deixa a desejar em nada”, completa.
Até o fim do ano, a produtora deve lançar o novo videoclipe da Mulher Barbada, “Bom Dia, Bebê”. Para o início de 2024, também está previsto o vídeo de “Princesa do Meu Lugar”, versão de Silvero Pereira da música de Belchior.