Da periferia de Fortaleza, Mateus Fazeno Rock conquista os palcos de grandes festivais do Brasil
Depois de uma série de shows nos principais eventos do Ceará, artista começa a ocupar palcos de grandes festivais pelo País
Idealizada por um jovem cearense criado no bairro da Sapiranga, em Fortaleza, uma nova vertente da música brasileira tem ganhado força. É o rock de favela, que mistura ritmos como rock, hip hop, dub, reggae, funk e R&B, e tem como frontman na Capital o multiartista Mateus Henrique Ferreira do Nascimento, 29, conhecido como Mateus Fazeno Rock.
O jovem cantor e compositor, que começou a apresentar seu trabalho autoral em eventos online durante o período mais grave da pandemia, já esteve nos principais palcos do Ceará e agora se prepara para alçar voos ainda mais altos, com uma agenda de shows que prevê passagens pelos palcos de grandes festivais pelo Brasil neste ano, como o Se Rasgum, em Belém (PA), o No Ar Coquetel Molotov, em Recife (PE), o DoSol, em Natal (RN) e o Primavera Sound, em São Paulo (SP).
Revelação da nova cena cultural cearense, Mateus fala da fase atual da carreira como se ainda não tivesse se dado conta da magnitude que o trabalho que conduz – junto aos amigos e parceiros da “família Fazeno Rock” – alcançou. Mas sabe da responsabilidade que tem ao cantar. Muitos dos fãs do artista, especialmente no Ceará, também foram criados nas periferias, e se identificam com as histórias contadas por Mateus em suas letras.
Seu primeiro álbum, Rolê nas Ruínas (2020), lançado digitalmente durante o primeiro lockdown, é um compilado de canções compostas em suas andanças pela Cidade, e reúne influências que vão de clássicos da MPB a grandes nomes do grunge. Apesar da pouca idade, sua história com a música vem de muito tempo. O caleidoscópio de inspirações que dá forma à arte de Mateus começou a ser construindo ainda durante a infância na Sapiranga, bairro onde morou por quase toda a vida.
Na sala de casa, assistia ao programa “Viola, minha viola” com o avô, seu Ferreira, que atuou, sem querer, como seu primeiro mentor musical, apresentando ao pequeno Mateus as músicas de Luiz Gonzaga e Alceu Valença, entre outros grandes artistas brasileiros. Fausto, um amigo da família, era outra figura importante na “curadoria” musical da casa. Aparecia para um café, uma conversa, e ficava tocando violão para avô e neto – lembranças que ficaram guardadas com carinho em Mateus, que se encantou com as trocas que a arte permitia.
Na pré-adolescência, acrescentou ao repertório o aprendizado das aulas de violão popular que fazia no Revarte, projeto social que levava atividades culturais e educativas ao Conjunto Alvorada. Ali, começou a perceber que a arte se faz de forma coletiva: participou e organizou uma série de eventos, especialmente saraus, que considera essenciais para sua formação. “Esses eram espaços muito importantes para começar a fazer arte. Comecei a frequentar um sarau em uma praça ali em 2007, 2008, fiquei seis anos da minha vida lá. Fiz parte da organização, comecei a tocar para as pessoas, a participar de um grupo, interagir com o público. Também fazia parte do projeto Arte no Beco, onde aprendia e ensinava percussão”, conta.
A adolescência foi o período de “fazer de tudo um pouco”. Enquanto concluía a escola, Mateus fez um curso de artes cênicas no Theatro José de Alencar, trabalhou na montagem de espetáculos infantis, se aproximou da poesia, seguiu participando de eventos culturais em vários bairros da Capital e, claro, tocando violão. Foi nessa época que descobriu, também, nomes clássicos da história do rock.
Na lan house em frente de casa, navegava no YouTube para ouvir Raul Seixas e Led Zeppelin – mas foi quando conheceu o movimento grunge, especialmente Nirvana e Silverchair, que se encantou pelo gênero musical. “Daí pra frente, a arte sempre foi o caminho que eu fui buscando, mesmo enquanto ia fazendo outras coisas, e mesmo sem uma certa consciência de que talvez eu tivesse caminhando para ser artista, trabalhar com isso profissionalmente”, explica.
Ao concluir o Ensino Médio, em 2014, entrou no curso de Letras da Universidade Estadual do Ceará (Uece), onde ficou por alguns semestres, entre muitas greves e incertezas. “Foi uma parte importante da minha vida, mas chegou um momento em que fui me desvinculando. Eu já compunha há um certo tempo, também fiquei um tempão tocando nos ônibus… Em algum momento, olhei para algumas músicas que tinha e vi nelas um projeto, um disco”. Em 2016, convidou o amigo Rami Freitas para produzir o material, mas só dois anos depois conseguiu entrar em um estúdio. Era hora de compartilhar, finalmente, tudo o que via e sentia nos rolês pela Cidade.
Um ensaio sobre o movimento
No início de 2020, quando estava pronto para mostrar ao mundo seu Rolê nas Ruínas e tinha decidido a data de lançamento do disco de estreia, Mateus começou a ver notícias sobre a doença que mudaria a era moderna. Como a maioria, achou que o isolamento duraria duas semanas ou um pouco mais. À medida que a crise se intensificava, porém, foi buscando entender como poderia fazer o material circular sem assessoria, contatos ou a possibilidade de fazer shows.
O plano era tentar pegar a ID Jovem e passar por algumas cidades do Nordeste – eu, uma guitarra, um pen drive, e tentar fazer acontecer
O álbum, que surgiu “das idas e voltas de um lugar para outro”, foi lançado nas plataformas digitais em abril de 2020 e ganhou vida em um momento em que, para muitos, a arte era o único escape possível para fugir da tragédia e do isolamento. No meio do caos, Mateus mostrava ao público o que se passava em lugares onde o fim do mundo é frequente, narrando situações de violência policial, desigualdade social e racismo – mas também ressaltando a potência e os afetos que atravessam os dias de meninas e meninos como ele.
“É um álbum de andanças. As letras carregam muito da melodia, da energia da Sapiranga para o Centro, para a Praia de Iracema, de todos os lugares que precisei circular para trabalhar”, detalha. Algumas das canções já tinham sido apresentadas ao público em pequenos shows, a exemplo de uma apresentação no Porto Dragão em 2019, o primeiro – e por muito tempo único – show registrado do Rolê. Foi a partir da gravação em vídeo, da divulgação entre amigos nas redes sociais e da participação em podcasts e lives que conseguiu divulgar músicas como “As Vozes da Cabeça”, “Melô do Djavan” e "Legal Legal", primeiro clipe oficial da banda, gravado ainda antes da pandemia.
O disco rendeu, além de mídia espontânea e fãs, muitas pontes. Através da internet, Mateus chamou a atenção de artistas como as rappers Brisa Flow e Jup do Bairro, que se tornaram amigas e parceiras musicais – mais tarde, ambas fariam feats com o artista. A repercussão digital do álbum também garantiu alguns palcos abertos após a retomada de eventos. Em outubro de 2021, Mateus fez a primeira apresentação oficial de divulgação do disco, na casa de shows JamRock, e lotou o espaço.
“Uma semana antes estava postando que ia acontecer, publicando foto de como ia ser o look, mas não esperava que fosse chegar tanta gente”, conta. “Foi muito bom, as pessoas sabiam cantar, eu não tinha essa noção. Naquele momento eu pude ver que o meu trabalho tinha relação com as pessoas”, completa. O DJ Viúva Negra e o bailarino Rafa Lima, que hoje fazem parte da Fazeno Rock, estavam ali, pertinho do palco. “Muita gente que trabalha comigo hoje estava lá. Foi um dia memorável”.
Veja também
Olhar ao redor para olhar para dentro
Três anos separam o disco de estreia de Mateus do segundo trabalho de estúdio, Jesus Ñ Voltará, lançado em abril deste ano – e não quaisquer três anos, mas o tempo exato entre a chegada da Covid-19 no Brasil e um momento de recomeço no mercado de eventos. Milhares de mortes, causadas pela doença e por fatores sociais, separam os álbuns, e a melancolia, a reflexão e as dores desse período se refletem na obra. Se Rolê nas Ruínas é sobre andanças, o álbum mais recente é sobre a permanência, um mergulho intimista na biografia de Mateus e na vida da juventude periférica da Capital.
O álbum conta histórias vivenciadas ou observadas pelo artista em diferentes fases da vida, e aborda temas sensíveis e cada vez mais atuais como saúde mental (a exemplo da delicada “Nome de Anjo”) e o genocídio contra as populações negra e indígena (como em “Pose de malandro/Me querem morto” e “Indigno love”, parceria com Brisa Flow).
“Fui revisitando memórias para me entender no mundo, processos que estava vivendo, processos que pessoas ao meu redor estavam vivendo. Ele é totalmente construído por memórias da minha infância, adolescência, do meu bairro, saindo do meu bairro, é esse emaranhado, essa colcha de retalhos”, afirma.
Um destaque do disco é a balada “Pode Ser Easy”, feita em parceria com a cantora Mumutante, atualmente a música mais ouvida de Mateus no Spotify. A canção funciona como uma pausa para um respiro e lembra que há outras realidades possíveis; é um recado esperançoso. Esse espiral de sentimentos, que mantém a essência das Ruínas trazendo novas sonoridades e inspirações, além do aprimoramento técnico e de estratégias de divulgação para o mercado, foram alguns dos responsáveis pela projeção nacional de Mateus e do coletivo Fazeno Rock.
Aos poucos, o Brasil vai vendo que, como diz Mateus, a favela é mesmo horta. “Para mim é uma surpresa ver pessoas pedindo show da gente, querendo ver a gente. As pessoas pedem nos festivais, comentam. É tudo uma surpresa, uma novidade”.
“Ainda tenho um sonho, ainda tenho um som”
Apesar do movimento que tem levado seu som para todo o País, Mateus lembra que ainda há muito a construir, tanto no pessoal quanto no coletivo, para que a vida seja realmente digna. “A tranquilidade de pagar as contas todos os meses, de ter mais do que o básico, ter conforto, são coisas que a gente ainda não consegue garantir, apesar das fotos lindas no Instagram. Ainda há muita dificuldade, as contas são muito contadinhas. Falta muito para o 'indigno love' ser digno”, afirma.
A tranquilidade de pagar as contas todos os meses, de ter mais do que o básico, ter conforto, são coisas que a gente ainda não consegue garantir, apesar das fotos lindas no Instagram
Para isso ocorrer, completa, “muita coisa tem que andar em conjunto”. Mateus destaca a necessidade de mais políticas públicas para a redução de desigualdades e a importância de o mercado fonográfico e de eventos ser menos centrado no eixo Rio-São Paulo. “Tem vários festivais que consideram trabalhos mais diversos, mas as curadorias precisam ser mais amplas, no geral. Além disso, é preciso que haja outros tipos de circulação dos trabalhos artísticos”, explica. “E é necessário que a música produzida no Nordeste e no Norte também seja assimilada pelo mercado como MPB, música nacional, e não apenas regional”.
Por um rock afrodiaspórico
A identificação com o público é uma parte essencial do trabalho de Mateus. Para ele, é uma alegria ver que muitos dos fãs da banda – composta pelo DJ Viúva Negra, a cantora Mumutante e os bailarinos Rafa Lima, Raffa Tomaz e Larissa Ribeiro –, são pessoas que “habitam os mesmos lugares que nós – são amigos, amigas, e quando não são semelhantes, são pessoas de periferias que se identificam com a gente”. O cantor ressalta, aliás, que a nova cena musical cearense se destaca pela organização e a criatividade de artistas periféricos, que hoje têm mais autonomia para mostrar seus trabalhos.
“É daí que surge tanta gente interessante fazendo tantas coisas interessantes, a partir dessa autonomia que os grupos foram descobrindo, dos saberes trocados. Essa é a grande força que tem feito a diferença”, destaca. Na Fazeno Rock, a cultura hip hop dá o tom a partir de diversas linguagens artísticas, como a moda, o audiovisual e a dança, além de endossar o poder da coletividade. “Quando a gente vai montar o show o que acontece é isso: esse grupo de saberes e pessoas que, quando se juntam, dão uma completude de um espetáculo”.
Se há quem acredite que o rock mainstream morreu, o rock de favela está mais vivo do que nunca. Narrando novas histórias a partir de outros pontos de vista, elaborados em lugares diversos, o gênero se transforma e se fortalece não por remeter aos clássicos, mas por se permitir experimentar o novo. “[No rock de favela] há um pensamento menos fechado em questão de gênero, uma permissividade de fruir por outros ritmos afrodiaspóricos e de considerar o rock uma linguagem afrodiaspórica”.