Por ser um ritmo democrático, que se adequa às vivências e à região de quem o produz, o funk tem diferentes faces em todo o Brasil. No Rio de Janeiro, berço do gênero, os bailes reúnem várias vertentes, e o ritmo é conhecido pelas batidas agitadas. Em São Paulo, há subgêneros como o ostentação e o funk bruxaria. Em Pernambuco, quem reina é o brega funk. E no Ceará, onde o estilo começa a despontar em passos curtos, mas ágeis, a cena é formada por um mix de diversas subvertentes, num movimento que tem gerado novos artistas, coletivos e eventos.
Uma das pioneiras na produção autoral do gênero no Estado, a funkeira Lara Nicole, que se apresenta como Nik Hot, conta que sua relação com o estilo musical se conecta a um processo profundo de autoconhecimento. Em 2017, pouco depois de gravar o primeiro single, ela se entendeu como uma pessoa trans e decidiu focar nos cuidados com a saúde mental e física.
Apaixonada pelo ritmo, no entanto, não tardaria muito para um retorno à música acontecer. “Em 2018, eu voltei – já como travesti – com o single ‘Vamo fechá?!’, que deu super certo. Com ele, eu consegui fazer várias coisas, alcançar novos públicos, uma galera que ainda não me conhecia e não conhecia o meu trabalho”, lembra a cantora.
A vontade de investir no nicho não veio à toa. Para Nik, era imprescindível estar em uma comunidade que a acolhesse e gerasse oportunidades. “Costumo dizer que o funk me escolheu, porque o funk é um movimento que geralmente acolhe. Você vê todos os tipos de pessoas cantando funk, ele dá essa possibilidade de a gente explorar muita coisa”, destaca.
O processo de ser funkeira é um processo muito gostoso, porém é um processo muito árduo, principalmente sendo travesti e vivendo em uma cidade que não valoriza o nosso trabalho. Artistas independentes não são tão valorizados. Aqui em Fortaleza e no Ceará, os contratantes gostam de famosos, eles não gostam de artistas."
Desde que começou a se dedicar à carreira de funkeira, Nik já lançou 11 singles, todos disponíveis nas plataformas digitais. O mais recente é “Puta não se apaixona”, cujo videoclipe está em pré-produção e deve ser gravado em agosto. Em comum, as músicas – escritas e produzidas por compositores parceiros de Goiás e pela própria Nik – têm as letras que abordam temas como empoderamento e liberdade sexual e a forte inspiração nas batidas do funk carioca.
“Cada estado, cada região tem as suas características em relação a beats, letras e temas. Eu gosto muito do funk carioca, do funk proibidão. A minha referência eu pego muito de lá”, afirma. Para ela, outros artistas e DJs de funk do Ceará também são “crias de vertentes de outros estados”, o que tem gerado um movimento com repertório diverso, plural – inclusive em relação a quem faz funk por aqui.
“Acho que o que me inspira é passar a entender que falar sobre a liberdade sexual é algo que não pode ser exclusivo de homens cis hetero”, destaca Nicole. “O funk sempre teve essa onda do funk proibidão, só que era sempre o homem que cantava, e ele não cantava sobre o corpo dele, ele cantava sobre o corpo da mulher. Ele invadia, muitas vezes, o corpo da mulher – porque o funk ainda tem esse machismo enraizado, mas isso está sendo quebrado com o tempo”, completa.
Orgulhosa, Nik afirma ser a primeira funkeira travesti do Estado – marco importante não só pela representatividade artística para outras pessoas trans e travestis, mas para a própria cena local do gênero, que ainda caminha a passos curtos e conta com pouca produção autoral.
“Sempre destaco isso por uma questão de demarcação, para as pessoas entenderem que o funk no Ceará, hoje, tem como grande contribuinte uma travesti. Isso é muito importante, colocar a travesti em lugar de destaque, já que a gente sempre está aí na margem da sociedade”, aponta.
Apesar da evidência na cena, Nik Hot ressalta que os caminhos para quem deseja enveredar em uma carreira autoral no gênero ainda são árduos, já que o consumo de funk ainda é feito, majoritariamente, por streaming, visando artistas de outros estados.
“A gente não tem uma valorização do contratante como artista independente. A galera quer trazer funkeira de fora, aí paga viagem, hospedagem, paga tudo. Mas para as funkeiras independentes do estado, para mim, principalmente, a galera quer pagar R$ 100 – e assim, eu não vou”, conclui.
Festas independentes fazem funk circular em Fortaleza
Em um cenário com poucos shows e produção autoral de funk, os DJs e produtores de festas voltadas para o estilo musical são os grandes agitadores da cena. Em Fortaleza, bailes organizados por jovens artistas começaram a ocorrer com mais frequência a partir de 2018. Uma das primeiras iniciativas do tipo foi a festa Crioula, idealizada por Lorena Fernandes, 31, a DJ Lolost.
Filha de Jorge Luís, ex-DJ que costumava tocar em bailes de Nova Iguaçu (RJ) na juventude, Lolost cresceu escutando funk e decidiu retomar essa memória afetiva quando começou a discotecar, em 2016. “Eu ouvia muito Furacão 2000, porque ele tinha todos os CDs. Uma grande influência minha no funk foi ser filha do meu pai”, brinca.
A artista conta, orgulhosa, que depois da Crioula surgiram várias outras festas independentes, feitas por pessoas pretas e que priorizam ritmos considerados periféricos, como funk, forró de favela e pagode. Um destaque nesse sentido é a Numalaje, festa organizada pela própria Lolost e por Eduardo Ribeiro, 27, o DJ DDZIN.
Ddzin conta que também vê o funk como uma questão afetiva e cultural, já que cresceu escutando o ritmo nas festas da rua em que morava. Em 2022, após acompanhar várias festas em que Lolost discotecava, decidiu sugerir à DJ uma parceria profissional para uma nova festa, que focasse em setlists que fizessem sentido para pessoas com vivências semelhantes às deles.
Em outubro de 2022, a primeira Numalaje ocorreu em Fortaleza, na barraca Foi Sol, na Praia da Leste. Desde então, foram mais de dez edições, em espaços privados e equipamentos culturais públicos, como a Estação das Artes – onde a festa chegou ao recorde de público, com mais de 1.500 pessoas.
O funk muda vidas e inspira as pessoas a sonharem. A gente tem muitas referências que hoje estão na Europa, inclusive colegas nossos, daqui de Fortaleza, e isso motiva a gente a permanecer e também querer chegar lá."
Para o duo de DJs, o fato de contratantes, produtores e público terem abraçado a iniciativa com tanta rapidez demonstra a necessidade que Fortaleza tinha de incluir o funk na rota da produção cultural – as festas fizeram sucesso porque havia uma demanda reprimida, apontam.
"Quando eu comecei a tocar funk, não tinha muito aqui em Fortaleza, era mais aquele funk comercial, nas boates e tal. Mas uma DJ preta para chegar e tacar esses funk mesmo, de favela e tal, não tinha não", lembra Lolost. A artista destaca que, apesar de em crescente, a cena ainda enfrenta desafios – mas que isso não deve ser motivo para desestimular quem deseja produzir música e eventos do gênero na Cidade.
“Muitas vezes a pessoa pensa que, para começar precisa ter aquele ‘equipamentozão’ todo, mas não, quando a gente começou, a gente não tinha nada. Era computador emprestado, tudo emprestado. E hoje em dia, o que a gente tem, é o que a gente conseguiu com o funk. Tudo que a gente tem a gente conseguiu com o funk, com as nossas produções independentes”, destaca.
Atualmente, Lolost e Ddzin produzem e discotecam na Numalaje, além de compor os line-ups de diversos outros eventos, com foco em subgêneros do funk, como o rock doido, que faz sucesso na região Norte, e o brega funk de Pernambuco, entre outros ritmos.
Neste sábado (13), a dupla se apresenta no evento Parque Dragão em Festa, em frente à boate Kingston 085, no entorno do Dragão do Mar. A programação começa às 15h30 e o acesso é gratuito.
Novos eventos buscam atender demanda do público
Uma das produtoras mais conhecidas do circuito de festas da Capital, a Bateu, Pode Comemorar realiza eventos abertos e fechados há oito anos, com eventos que focam em gêneros como a música eletrônica, o hip-hop e a música latina, entre outros.
Entre as festas fixas realizadas pelo coletivo de DJs está o Baile da Bateu, que surgiu para atender a demanda de um evento 100% focado em funk, do início ao fim. Com edições periódicas e cerca de 6 horas de músicas de voltmix, mandelão, eletrofunk, brega funk e outros subgêneros, o baile ocorre na Arena Iracema, no Centro da Cidade.
"Costumamos fazer uma curadoria de djs que sejam unicamente fortalezenses e/ou nordestinos e que carregam a experiência de conseguir traduzir os variados subgêneros do funk, transformando uma pista em um grande baile", explica Bárbara Soares, a Babita, CEO e DJ residente da Bateu. "Tentamos fazer com que o baile pareça como os antigos bailes, no qual você chega em um estacionamento e liga o seu paredão", explica.
Para a produtora cultural, a cena de funk de Fortaleza tem crescido e conquistado novos adeptos de diferentes pontos da Cidade. "O funk sai de dentro da periferia para explorar lugares de fora e o desenvolvimento aqui na nossa cidade só cresce", conclui.
A próxima edição da festa ocorre no próximo dia 27 de julho. Os ingressos já estão à venda na plataforma shotgun.live.
Brega funk como potência cearense
Além das festas independentes, outro cenário em que o funk se destaca na capital cearense é na dança. Com o fortalecimento do brega funk pernambucano que tornou a vertente uma paixão nacional, muitos coletivos de dança focados no ritmo surgiram no Estado.
Um dos grupos que alcançou sucesso dentro e fora do Ceará foi a Cia. de Dança 085, idealizada pelo coreógrafo Cley Monteiro em 2021, que alcançou fama nacional ao participar de shows e clipes de artistas como Anitta, Pabllo Vittar e Ludmilla.
Segundo Cley, tudo começou de forma desprestensiosa, com a ideia de gravar coreografias para publicar nas redes sociais. O primeiro vídeo, porém, viralizou de imediato: ali, o coreógrafo percebeu uma oportunidade de transformar os vídeos em trabalho.
Três anos depois, o grupo segue na ativa, participando de festivais competitivos e eventos com artistas. Ao todo, são cerca de 30 dançarinos que se dedicam a ensaios diários e já encontram uma comunidade local engajada de fãs de brega funk.
"É de grande importância que o nosso estado abrace essa modalidade, porque ela está dentro das nossas periferias, e os jovens periféricos que usufruem dessa cultura fazem com amor e dedicação", destaca Cley. "A potência que o brega funk vem trazendo pro nosso estado é muito relevante para a cena nacional, porque é uma ponte de visibilidade para a nossa cidade", completa.
Onde curtir
Quem busca espaços e festas para aproveitar setlits e shows de funk em Fortaleza pode acompanhar as redes sociais de festas como Numalaje, Crioula, Charme 2000, Palosa Baile, Da Quebrada e Bateu – mas há, também, espaços que costumam reservar parte de sua programação para o estilo musical.
A funkeira Nik Hot conta que, com frequência, há festas que celebram o ritmo em boates como a Valentina Club, no Centro, e a Kosmika, na Praia de Iracema.
Já os DJs Lolost e Ddzin apontam que a barraca Foi Sol, na Praia do Leste, e os bares The Lights (Centro), Laje Head (Benfica), Tropicanos (Aldeota) e Bar Cultural Lions (Centro) são boas opções para curtir setlits de funk.