Qual o impacto do fechamento do Hospital César Cals para pacientes e profissionais?
A interrupção dos serviços na unidade gera alerta sobre a possível sobrecarga na rede materno-infantil em Fortaleza.
Avenida Imperador, 545, Centro de Fortaleza. Endereço de nascimento de milhares de cearenses nos últimos 97 anos: o Hospital Geral Dr. César Cals (HGCC). Agora, após o incêndio, na quinta-feira (13), nos geradores do prédio que é referência em obstetrícia e neonatologia as portas estão fechadas. Com a transferência de 117 bebês e 153 mães e acompanhantes concluída, a unidade foi desativada por tempo indeterminado. A suspensão, embora necessária, alerta para a possível sobrecarga da rede materno-infantil de Fortaleza, que já funciona sob alta pressão, segundo especialistas ouvidas pelo Diário do Nordeste.
Os potenciais impactos do fechamento incluem a sobrecarga das unidades que passaram a receber pacientes remanejados, especialmente no atendimento a gestantes de alto risco, o temor de uma lacuna na oferta de serviços ambulatoriais e emergenciais antes garantidos pelo César Cals e a perda temporária de um importante espaço de formação, já que o hospital, prestes a completar 100 anos, também abriga internato, residência médica e outras atividades de ensino.
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Ainda na sexta-feira (14), o Governo do Estado anunciou que o hospital passará por obras, mas não há data definida para as intervenções. A reforma do local só deve ser iniciada após uma inspeção completa nas dependências, conforme informou nesta segunda-feira (17), o médico e superintendente da Região de Saúde de Fortaleza da Secretaria de Saúde do Ceará (Sesa), Lino Alexandre.
Antes do incêndio, conforme a Sesa, o HGCC tinha 195 leitos ativos e realizava cerca de 7 mil atendimentos ambulatoriais. Era um dos principais locais de parto de alta complexidade em Fortaleza. Na emergência, dados do Integrasus, plataforma da Sesa, apontam 14.205 atendimentos entre janeiro e outubro, uma média de 1.400 por mês.
Além disso, o hospital é historicamente reconhecido por serviços como o Banco de Leite Humano, a assistência a gestantes de alto risco e o cuidado a bebês prematuros por meio do Método Canguru.
Anúncio da abertura de leitos
Como medidas imediatas após o incêndio, o Governo do Estado, em parceria com a Prefeitura de Fortaleza e o Governo Federal, comunicou a abertura de 285 novos leitos obstétricos/neonatais. Segundo a gestão estadual, o número supera o total de leitos do tipo antes disponíveis no César Cals, que eram 203 (em nota, a pasta informou que ativos e ocupados eram 195).
Os novos leitos serão abertos da seguinte forma:
- 185 leitos no Hospital Universitário do Ceará (HUC) - da rede estadual;
- 60 leitos no Hospital e Maternidade Dra. Zilda Arns Neumann (Hospital da Mulher) - da rede municipal;
- 40 leitos no Hospital Distrital Gonzaga Mota (Gonzaguinha da Messejana) - da rede municipal
Na conta direta, Fortaleza ganha 82 novos leitos obstétricos e neonatais, já que o César Cals possuía 203 leitos do tipo antes do incêndio. Se observado por rede, a mudança altera a distribuição: a rede estadual, que ofertava no hospital em questão 203 leitos do tipo passa agora a disponibilizar 185 na unidade recém-inaugurada, o HUC, enquanto os outros 100 serão absorvidos pela rede municipal e ofertados de forma gradual ainda este mês.
A médica, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e diretora científica da Associação Cearense de Ginecologia e Obstetrícia (Socego), Aline Veras, aponta que em Fortaleza os três principais serviços terciários de atenção materno-infantil são: a Maternidade Escola, o Hospital César Cals e Hospital Geral de Fortaleza, e todos, segundo ela, já operavam acima da capacidade antes da interrupção das atividades no HGCC.
Ela pondera que a suspensão da emergência no César Cals aumenta mais ainda a demanda por leitos obstétricos e neonatais, especialmente para pacientes de alto risco, e pode ampliar atrasos e dificultar a continuidade de pré-natais, mesmo com remarcações.
“A sobrecarga na rede implica uma sobrecarga dos profissionais de saúde que trabalham nesses serviços, com hospitais funcionando acima da capacidade instalada, profissionais da área da saúde em si sobrecarregados e pacientes cheios de incertezas. Tem risco de descontinuidade e essas coisas se somam”.
Aline também destaca que embora novos leitos estejam sendo abertos, o processo exige instalação e equipamentos, e ainda assim não compensa o déficit já existente nessa área. “No contexto antes do fatídico incêndio, já tinha um diagnóstico prévio de baixa disponibilidade relativa tanto de leito de UTI Neonatal, como de sobrecarga das maternidades de alta complexidade no Estado. Então, a gente já tinha pressões, transferências. Isso já existia", acrescenta.
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A médica argumenta que, no momento, o que garante a continuidade da assistência é a transferência emergencial de pacientes para unidades que seguem em funcionamento e que para evitar sobrecarga ainda maior, nesse momento delicado, é essencial respeitar os níveis de atenção, evitando que casos de média complexidade sejam direcionados à rede terciária.
Além disso, Aline reforça a importância de uma comunicação clara com famílias e gestantes, informando sobre mudanças nos locais de atendimento e orientações de deslocamento, além de defender um planejamento mais integrado da rede, com vigilância ativa da distribuição de demandas e reabertura rápida de maternidades e leitos terciários, segundo ela, fundamentais para receber pacientes de alto risco.
Realocação dos profissionais
Outro ponto é que a partir desta segunda-feira (17), o Hospital da Mulher passou a funcionar com emergência obstétrica de portas abertas, recebendo mulheres de Fortaleza. A unidade também voltou a atender somente o público feminino, logo, não serão mais admitidos pacientes homens.
Mas, no anúncio dessa readequação não foi detalhado como será feito o custeio específico da redistribuição. O governador Elmano de Freitas disse apenas que o Governo Federal garantiu R$ 28 milhões para “a implementação das medidas anunciadas” de forma conjunta pelas gestões estadual e municipal.
Outro ponto desse redimensionamento dos atendimentos também começou a ser tratado ainda na sexta-feira (14): a realocação dos profissionais da unidade, enquanto a situação do César Cals não tem uma definição.
Um dia após o incêndio, houve uma reunião entre a Sesa e representantes dos profissionais. Segundo a diretora do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Nível Médio e Técnico da Saúde do Ceará (Sindsaúde) e participante do encontro, Martinha Brandão, o remanejamento prevê distribuições distintas para os servidores administrativos, os efetivos e os cooperados.
Na redistribuição, diz Martinha, os da área administrativa devem permanecer no prédio na Avenida Imperador; os cooperados - que inclui tanto profissionais de nível superior, como médicos, enfermeiras, assistentes sociais, dentre outros, e os do nível médio, como técnicos de enfermagem - serão realocados no HUC, no Itaperi, e os concursados terão prioridade para definir para qual unidade querem ser encaminhados, conforme a demanda.
No dia do incêndio, o HUC recebeu 83 pacientes, entre gestantes, puérperas e bebês transferidos do César Cals. Foi a unidade com o maior número de acolhimentos, seguida das unidades da rede municipal, como o Gonzaguinha de Messejana (41 pacientes), Hospital da Mulher (21 pacientes) e Gonzaguinha da Barra do Ceará (10).
A representante do Sindsaúde, Martinha Brandão, estima que só de cooperados, o Hospital têm cerca de 1.500 profissionais. Ela destaca que a situação é trágica e inesperada e que esse momento de preparação desses “novos” locais da oferta do serviço deve prezar por “pontos de equilíbrio na distribuição” dos trabalhadores, de modo que “todos os envolvidos saiam bem”. Mas, o clima ainda é de incerteza entre os profissionais.
‘Serviços já superlotados’
Com o esvaziamento do hospital e fechamento momentâneo, a orientação da Sesa é que as gestantes de alto risco devem buscar atendimento na Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac), unidade da rede federal, e no Hospital Geral de Fortaleza (HGF), da rede estadual. Já as gestantes de baixo risco serão encaminhadas aos Gonzaguinhas de Messejana, José Walter e Barra do Ceará, aponta o órgão.
Nesse processo, um dos efeitos reiterados pela médica nefrologista e professora do curso de Medicina da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Paula Franssinete, é justamente uma sobrecarga dos serviços que passarão a receber as pacientes atendidas anteriormente no César Cals, o que se refletirá no aumento do fluxo, e implicará na necessidade de incremento de profissionais, jornadas, equipamentos, insumos, dentre outros recursos.
Ela, há 63 anos nasceu na maternidade da unidade hospitalar desativada agora, e fez a primeira residência médica também no local, em Clínica Médica, destaca que: “nossa população cresce a cada dia e os serviços de saúde já são superlotados e quando a gente tem o fechamento de um hospital de referência tem um efeito direto porque a população segue precisando desse serviço”.
A professora também destaca que além de ser uma instituição de referência em atendimento, o Hospital é um espaço relevante para a formação profissional. “Lá é um hospital escola extremamente importante na formação e na assistência. É uma unidade que tem internato - os dois últimos anos da faculdade de Medicina - internato e onde tem aulas práticas de outras áreas da saúde, como enfermagem, fisioterapia, outras áreas”, aponta.
No que diz respeito à logística, ela explica que quando há transferências de serviços é preciso que todos os recursos acompanhem também a mudança.
“As equipes de saúde geralmente se desdobram para adequar áreas do hospital, visto na época da Covid, onde de um dia para outro foi preciso criar locais para os pacientes ficarem. Os hospitais vão fazer de tudo para se adequarem. Município e Estado podem fazer compras emergenciais por conta dessa situação”.
A ginecologista, obstetra, doutora em Saúde Coletiva, professora do curso de Medicina da UFC e presidente da Socego, Sammya Bezerra Maia, reitera que o Hospital César Cals "era a terceira maior maternidade do Estado em número de partos. Costumava fazer mais de 400 procedimentos obstétricos ao mês e tinha um serviço de emergência obstétrica com porta aberta, onde atendia diariamente em torno de 60 pessoas, ou seja, cerca de 1800 ao mês".
Ela reforça que a localização central facilitava o acesso da população e lembra que o caráter terciário do hospital permitia atendimento especializado a gestantes de alto risco tanto da Capital quanto do interior.
Para a médica, o fechamento ocorre em um momento em que a rede já enfrentava falta de leitos, agravada por reformas prolongadas em unidades municipais como nos Gonzaguinhas do José Walter, Messejana e Hospital Nossa Senhora da Conceição que acabaram "deslocando gestantes para serviços de maior complexidade, sobrecarregando toda a estrutura".
Sammya avalia que, nesse momento, será necessária a mobilização dos gestores e reorganização rápida da rede, com novas contratações e cumprimento das medidas do plano de contingência. Para ela: "haverá um período de sobrecarga na rede municipal e estadual, sendo necessárias novas contratações de pessoal em todos os hospitais do plano de contingência, idealmente de forma definitiva”.
A obra e a reabertura do HGCC com emergência de porta aberta no Centro, pondera, e a adequação da estrutura do HUC para receber os casos de alta complexidade, "são os norteadores iniciais para equilibrar a situação de forma mais perene", avalia.
Nesta segunda-feira (17), o Diário do Nordeste fez os seguintes questionamentos a Sesa:
- Quantos leitos ativos o Hospital César Cals tinha antes do incêndio e quais os tipos? Destes, 203 eram obstétricos/neonatais?
- Na abertura de leitos, a rede estadual irá ofertar 185 leitos obstétricos/neonatais no HUC. Houve então um "pequeno recuo" em relação ao que era ofertado no hospital fechado?
- Sobre o atendimento ambulatorial, quantas e quais especialidades eram atendidas no anexo do César Cals?
- Quantos pacientes eram acompanhados no ambulatório?
- Quantos profissionais e trabalhadores da saúde estavam lotados no César Cals?
Em nota, a pasta afirmou que “não houve redução na oferta de leitos em razão da readequação de funcionamento do César Cals” e reiterou a abertura de 285 leitos nas redes estadual e municipal, garantindo que o remanejamento “assegura que toda a demanda assistencial do HGCC continue sendo plenamente atendida, sem qualquer prejuízo aos pacientes”.
A Sesa acrescentou que “recentemente, a unidade passou por um processo de adequação do seu perfil assistencial, reforçando o atendimento materno-infantil à população”, o que levou à migração dos serviços de Clínica Médica e Clínica Cirúrgica para o HUC. Antes do incêndio, o César Cals concentrava Ginecologia, Obstetrícia, Neonatologia e subespecialidades como Medicina Fetal e ambulatórios multiprofissionais.
Os questionamentos sobre a quantidade de pacientes acompanhados no ambulatório e a de profissionais lotados no César Cals não foram respondidos.
Atendimentos ambulatoriais
Outro público afetado é a população atendida nos ambulatórios, cuja assistência era prestada no prédio anexo do César Cals, também na Avenida Imperador, no Centro. Sobre esses serviços, o superintendente da Região de Saúde de Fortaleza da Sesa, Lino Alexandre, disse que houve um remanejamento desses atendimentos que incluem consultas e exames.
“Hoje, nós temos outra ultrassonografia e tomografia de tórax sendo realizada na Santa Casa de Misericórdia. Os exames laboratoriais tipo hemograma, creatinina e potássio estão sendo realizados no Hemoce, e temos também raio X sendo realizados no Hospital da Polícia Militar”.
Outros exames como os de mastologia, segundo o gestor, serão realizados no Instituto de Prevenção do Câncer. "Além disso, nós temos vários ambulatórios que estão sendo realizados tanto no Hospital Universitário do Ceará, que tem ambulatório do tipo psicologia, pequena cirurgia, ginecologia e pediatria".
De acordo com o médico, até domingo (16), foram feitas 350 ligações para pessoas que estavam com procedimentos marcados no César Cals. Caso o paciente não tenha respondido à ligação, ele informa que o mesmo “pode se dirigir ao Hospital César Cals, porque nós temos uma equipe lá recepcionando essas pessoas para dirigi-las aos locais e serviços que estão sendo realizados os exames”.
Sobre a transferência do mobiliário, o gestor destaca que eles serão distribuídos para os equipamentos da própria rede Sesa enquanto o hospital estiver fechado.
Hospital referência para formação na saúde
A ginecologista e obstetra Sabrina Forte conta que a própria trajetória é profundamente ligada ao César Cals, onde fez residência entre 2016 e 2019, e lembra que essa relação atravessa gerações: “eu assumi o setor Covid na época da pandemia 2020, 2021. Meu pai fez residência médica no Hospital César Cals, há 30 anos. Meus avós trabalharam no César Cals, que na época era o Moreirinha (em referência aos fundadores do hospital) Estamos falando de 80 anos”.
Para ela, o fechamento expõe a dimensão histórica de uma unidade que “formou uma legião de médicos” e marcou “muitas gerações de obstetras, clínicos, pneumologistas, fora as enfermeiras, nutricionistas, fisioterapeutas e estudantes”.
Ela também ressalta a dificuldade de “interditar” um hospital que “era o fim de linha, que resolvia”, absorvendo demandas e superlotações de outras maternidades. Lembra ainda que, além da obstetrícia e neonatologia, o César Cals “tinha uma importância para a clínica médica, para a hematologia, reumatologia, pneumologia”, reunindo profissionais com décadas de atuação.
Sobre os impactos, o superintendente da Região de Saúde de Fortaleza da Sesa, Lino Alexandre, afirma que episódios como esse podem gerar efeitos emocionais, já que “a alteração psíquica ela pode vir posteriormente 15 a 20 dias, que chamamos de estresse pós-traumático”, provocando sensação de perda à comunidade.
Porém, ele destaca que a situação está sendo conduzida e que o HUC garante a continuidade da assistência, reforçando a necessidade de avaliar a estrutura do prédio do César Cals para proteger “tanto os trabalhadores que ali se encontram como na população que vai utilizar os nossos equipamentos”.