8h de aflição, tumulto e dedicação: como era o cenário dentro e fora do César Cals após o incêndio

Além da tensão, eram nítidos o esforço de funcionários para transferir paciente e a solidariedade de quem estava no entorno.

Escrito por
Thatiany Nascimento thatiany.nascimento@svm.com.br
(Atualizado às 10:34)
Profissionais de saúde trabalham juntos para transportar um recém-nascido envolto em mantas, enquanto uma mulher em maca dentro da ambulância observa. A cena ocorre ao lado de um veículo de emergência, transmitindo urgência e cuidado.
Legenda: O incêndio trágico foi marcado também por uma tentativa generalizada de salvar vidas.
Foto: Kid Júnior

Primeiro a falta de energia elétrica. Depois, ela voltou e rapidamente faltou de novo. Em seguida, o odor da fumaça invadiu corredores e salas. A partir daquela hora, por volta de 10h45 da manhã de quinta-feira (13), a rotina dos pacientes - bebês, gestantes e puérperas - acompanhantes e profissionais de saúde do Hospital Geral Dr. César Cals, no Centro de Fortaleza, foi alterada. A unidade, que sofreu um incêndio, foi completamente esvaziada, às 18h54, quando o último bebê foi retirado sob aplausos, após mais de 8 horas de um cenário de aflição, tumulto e dedicação dos profissionais. 

Nesta sexta-feira (14), uma reunião - que incluirá a Secretaria Estadual da Saúde (Sesa) e a direção da unidade - irá definir onde os funcionários irão atuar nos próximos períodos até que a situação da unidade seja restabelecida. O encontro ocorre um dia após a movimentação no interior e entorno do hospital ter sido de gritos, correria e pânico diante do incêndio que atingiu os geradores de energia do hospital.

O fato trágico foi marcado também por uma tentativa generalizada de salvar vidas. Ao final do dia, quase 8 horas após o incêndio, mais de 117 bebês e 153  mães e acompanhantes foram transferidos para ao menos 6 outros hospitais, tanto da rede estadual, quanto da municipal de Fortaleza. 

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O incêndio, que durou cerca de 25 minutos, conforme o Corpo de Bombeiros, ficou restrito à casa de geração de energia do hospital, que é o mais antigo da rede estadual do Ceará, com quase 100 anos. A área atingida fica localizada nos fundos da unidade, onde há também um estacionamento e uma saída para a Avenida Tristão Gonçalves. Foi por lá que os bombeiros entraram para debelar o fogo.  Com o incêndio, a unidade foi completamente esvaziada. 

A reportagem do Diário do Nordeste passou horas no local com acesso ao interior da unidade e também ao entorno do prédio. Na parte da frente, na Avenida Imperador, pacientes tentavam sair da unidade por duas entradas - a emergência e a ambulatorial - e seguiram rumo ao “Beco da Poeira” e ao Anexo do César Cals, na mesma via.

Gestantes com crianças, mulheres puérperas e bebês acompanhados por profissionais da saúde passavam rapidamente para fora sob efeitos ainda da fumaça. Comboios de ambulâncias chegavam e saíam. 

Dentro de uma ambulância, uma profissional de saúde vestindo roupa cirúrgica verde segura um bebê recém-nascido envolto em um pano, enquanto outra profissional, de uniforme branco e calça verde, entrega um lençol. À frente, do lado de fora do veículo, uma pessoa de camiseta amarela observa a cena.
Legenda: Foram mais de 8 horas de uma operação para retirar e transferir todos os pacientes do Hospital César Cals após incêndio
Foto: Fabiane de Paula

Outro ponto de escape foi a entrada do serviço de imagem pela Rua Galeria Professor Brandão, na lateral, que separa o hospital da Praça da Lagoinha, local inclusive onde gestantes e puérperas foram colocadas, em cadeiras de rodas, assim que saíram da unidade em meio ao incêndio. A cena atípica comoveu e mobilizou. Na praça tão famosa pelo comércio ambulante de itens diversos, pacientes ficaram sentadas aguardando um desfecho.  Abaladas, emocionadas e apreensivas. 

Na frente da unidade, muita gritaria e solidariedade. Bebês foram “socorridos” para dentro do famoso “Beco da Poeira”, centro de comércio popular. Incubadoras foram ligadas dentro dos boxes do local. Era preciso deixar o hospital e a saída dos bebês se deu em meio à multidão que tentava agilizar o processo. Os pequenos pacientes foram retirados da unidade amparados e sob monitoramento de enfermeiros, médicos e técnicos de enfermagem nos equipamentos ou nos braços das próprias mães.

Comerciantes, moradores de ruas, ambulantes, transeuntes do Centro e funcionários do hospital, em uma correria intensa, se colocaram em missão para ajudar a salvar centenas de pacientes. Guarda-sóis das bancas de ambulantes foram usados para bloquear o sol no trajeto dos recém-nascidos. 

Em um revezamento contínuo, médicos, enfermeiros, técnicos, socorristas, assistentes sociais, maqueiros e diferentes trabalhadores da unidade compartilhavam cuidados e esforços na operação de apoio e retirada dos pacientes. Um entra e sai de macas, incubadoras e cadeiras de rodas marcava o ritmo do processo de transferência - alguns internados há dias, outros há meses. 

'Salvar o filho'

Do lado de dentro, susto, medo e tumulto. “Eu vim acompanhar minha filha porque meu neto está internado, e ela vem todos os dias visitar ele. Ele nasceu prematuro e tá na UTI. Ela entrou para o banco de leite e aí começou o tumulto, a fumaça. Eu fiquei desesperada do lado de fora. Tudo muito escuro, um terror”, relatou a dona de casa Medris Pereira que acompanhava a filha Aline Pereira na visita ao neto. 

Na correria, Aline, que estava no banco de leite, se direcionou à UTI para “salvar o filho”, mas ele já havia sido retirado, registra a avó. “Não tinha mais nenhum (bebê) quando ela chegou lá. Aí saímos procurando fora olhando para todos os bebês para achar ele”. 

Legenda: População se uniu para ajudar no resgate
Foto: Ismael Soares

O recém-nascido que estava na incubadora foi encontrado na área externa do hospital. As equipes o haviam conduzido. Depois, seguiu para o anexo, voltou para o hospital e mais tarde foi transferido. 

A situação também foi vivenciada pela dona de casa Damara Feitosa, mãe de Henry, nascido no César Cals há menos de 1 mês. Prematuro, o neném estava internado na unidade e aguardava por alta na fatídica quinta-feira (13). O incêndio veio antes da liberação, então mãe e filho passaram juntos pela ocorrência, 

“Mandaram a gente entrar e ficar nos quartos, mas com menos de 10 minutos começou a subir a ‘catinga’ de fumaça, porque tava perto de onde explodiu o gerador. E começaram a gritar que era pra evacuar o hospital”, descreve.

Após o tumulto e à medida que a situação foi sendo administrada, os médicos cogitaram manter a internação da criança, relata a mãe. Mas, após apelos dela mesma e avaliações, liberaram os dois para retornar para casa. Damara “agradeceu o livramento”, e assim como outras mulheres, depois do momento de pânico, deixou o hospital para seguir junto ao filho rumo ao lar. 

Outras gestantes seguiam apreensivas. Durante as mais de 8 horas de transferência, depoimentos de medo, ansiedade e pavor pela ocorrência se repetiam na entrada do hospital por onde passaram mais de 100 mulheres, acompanhadas ou sozinhas. 

Legenda: Paciente sendo retirada do Hospital
Foto: Fabiane de Paula

Nessas entradas passaram dezenas de ambulâncias durante o tempo de transferência em um movimento quase initerrupto de contato dos socorristas com as equipes do hospital. Funcionários do César Cals se alternavam na liberação, elencando nomes, unidades para onde seriam levadas e conferiam se havia materiais necessários em cada veículo. 

“Eu estou muito ansiosa com tudo isso”, relatou ao Diário do Nordeste uma gestante de 5 meses, que vivencia uma gravidez de alto risco e por isso está na unidade. Na tarde de ontem, acompanhada do pai do neném, ela seguiu transferida para o Hospital Universitário, no Itaperi. 

Acompanhantes buscavam notícias

Na mesma entrada, acompanhantes chegavam de bairros diversos em busca de notícias sobre os bebês ou sobre as mulheres. “Vim atrás da minha nora. Ela está com 8 meses e veio fazer uma consulta ontem e ficou internada. Está assustada. Na hora que começou o incêndio, ela me ligou e eu vim”, relatou a sogra, que não quis se identificar e até o final da tarde aguardou para saber que a nora ia para o Gonzaguinha de Messejana. 

Dois profissionais do SAMU empurram uma incubadora neonatal sobre uma maca em uma calçada, próximos a uma ambulância vermelha estacionada. Um veículo oficial do Governo do Ceará está ao lado, e uma pessoa observa a cena mais ao fundo, na rua movimentada.
Legenda: Várias incubadoras com bebês foram transferidas para outros hospitais de Fortaleza após incêndio no César Cals
Foto: Kir Júnior

Além da tensão pela ocorrência em si, apontou ela, muitas pacientes estavam sem ter como carregar os celulares, já que parte da unidade ficou sem energia após o incêndio. Isso fez com que algumas ficassem sem contato. 

No processo, a Enel Ceará instalou geradores para garantir o funcionamento da Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTI Neo), e de outras alas da instituição para que fosse assegurada a transferência dos pacientes. Esse processo mobilizou mais de 60 ambulâncias. Por volta das 15h, após inúmeras chegadas e partidas de veículos do tipo, mais de 20 ambulâncias estavam enfileiradas nos dois lados da Avenida Imperador. Seguiam em comboio para os demais hospitais escoltados por motos da Polícia Militar. 

Agentes de segurança motorizados, usando capacetes e coletes táticos, circulam e vigiam uma rua onde várias ambulâncias do SAMU estão alinhadas. Ao fundo, moradores aparecem próximos a cadeiras brancas encostadas em uma parede grafitada.
Legenda: Ambulâncias foram escoltadas pela Polícia Militar para atravessa o trânsito.
Foto: Fabiane de Paula

Após a partida e durante o processo, funcionários também externaram cansaço e emoção. Alguns, inclusive, chegaram a passar mal, como uma técnica de enfermagem que caiu na saída do hospital e logo recebeu auxílio. Comovidos e abalados, lamentavam a ocorrência que alterou não só a rotina daquele dia, mas que marca a história deles mesmos, da unidade e tantos pacientes sob seus cuidados.     

No local, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Nível Médio e Técnico que atuam na saúde do Estado do Ceará (Sindisaúde), Quintino Neto, reforçou que o César Cals não tinha queixas destacadas em relação à estrutura. Mas que esse tipo de ocorrência evidencia a necessidade de melhora também física dos equipamentos. 

Com o esvaziamento do hospital e fechamento momentâneo, a orientação da Sesa é que as gestantes de alto risco devem buscar atendimento na Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac) e no Hospital Geral de Fortaleza (HGF). Já as gestantes de baixo risco serão encaminhadas aos Gonzaguinhas de Messejana, José Walter e Barra do Ceará. 

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