Pacientes no Ceará aguardam há meses medicações atrasadas na rede pública que custam até R$ 1,3 mil
Os remédios evitam os prejuízos da puberdade precoce, como câncer, e a responsabilidade dos repasses é do Governo Federal
As prateleiras da rede estadual de medicamentos estão sem receber um item importante contra puberdade precoce, o Neo Decapeptyl LP, para pacientes atendidos no Ceará, devido a falhas no repasse de recursos federais. A falta de regularidade na aplicação da substância pode ter consequências a longo prazo na saúde e no crescimento de crianças.
Alguns pais relatam ausência da substância há dois meses em Fortaleza enquanto outros se queixam da irregularidade na distribuição de forma recorrente desde o ano passado. O tratamento também pode ser feito com a medicação Lectrum, que tem sido alternativa.
Ambos funcionam da mesma forma e variam de preço conforme a dosagem. O Neo Decapeptyl LP de 11,25 mg, por exemplo, foi encontrado em uma farmácia de Fortaleza por R$ 1.350.
Já o Lectrum de 3,75 está em R$ 233,00. A dosagem maior tem uma periodiciodade de 84 dias, enquanto a menor fica em 28 dias. Os medicamentos com maior duração do efeito não são encontrados em algumas redes de farmácias.
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“Esses pacientes, se não fizeram o tratamento adequado, vão ter o risco de menstruação precoce que, além das questões psicológicas para a criança, há aumento do risco de alguns tipos de câncer”, alerta Izabella Tamira, médica pediatra endocrinologista.
O câncer de endométrio e de mama são exemplos dessas doenças evitáveis com o tratamento adequado em meninas. Além disso, problemas no crescimento das crianças também são regulados com a medicação.
“A gente acaba impedindo o crescimento adequado dessa criança e esse tempo perdido não dá para reverter. Não tem como recuperar e por isso realmente precisa de uma constância com dias contados”, completa.
A falta do medicamento acontece devido ao atraso na transferência de recursos do Ministério da Saúde (MS), conforme a Secretaria da Saúde do Ceará. Não foi repassado o número de cearenses que utilizam o remédio.
“A aquisição do medicamento sofreu atrasos devido à demora do repasse do recurso pelo MS e está sendo regularizada da forma mais célere possível, conforme cronograma de distribuição do Estado para maio”, explicou a Secretaria em nota.
Dessa forma, a Sesa indica que a distribuição do remédio deve ser retomada ainda neste mês. O Ministério da Saúde também foi procurado para explicar a falta de repasse e como a situação deve ser resolvida, mas ainda não houve resposta da Pasta.
O medicamento faz parte do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (Ceaf) e o financiamento acontece a partir da transferência de recursos do Ministério da Saúde. Os estados, nesse caso, ficam responsáveis pela entrega do remédio.
E, enquanto a situação não é regularizada, há o comprometimento inclusive de quem vai começar a receber as doses. “Quem está recebendo a indicação de começar o tratamento agora, esperar dois ou três meses para começar a tomar é complicado, porque a gente perde muito tempo com isso”, ressalta Izabella.
Essa, inclusive, é uma realidade compartilhada rotineiramente por seus pacientes. “É bem difícil tentar resolver o problema da criança e chegar o pai ou mãe e dizer ‘doutora, eu não consegui a medicação’, é bem angustiante”, reflete.
Incertezas do tratamento
A psicóloga Roberta Costa, de 45 anos, acompanha a filha no tratamento contra a puberdade precoce desde novembro do ano passado, quando começou a utilizar o Decapeptyl. No entanto, em abril desse ano precisou comprar a medicação, porque foi informada que estava em falta na rede pública.
"Ontem (18) ao levar minha filha para a aplicação do medicamento, houve a informação de que estava em falta pela 2ª vez consecutiva. Novamente foi correria para conseguir a receita da medicação, depois desembolsar o valor da mesma e ainda encontrar alguém para aplicar, pois nas farmácias não aplicam em menores de 12 anos", acrescenta.
O tratamento da menina é realizado em Fortaleza, mas Roberta destaca que pacientes de outros municípios chegam até a Capital para receber as injeções.
Gostaria que houvesse um zelo maior para que o tratamento não fosse interrompido. E também a questão do respeito com os pacientes, com pelo menos o aviso antecipado no caso da falta do medicamento, evitando deslocamentos e custos desnecessários
A correria citada pela mãe acontece pela preocupação de que a filha tenha prejuízos no desenvolvimento pela falta da medicação. "O que o endócrino me informou, no início do tratamento, foi que o atraso de apenas um dia poderia colocar a perder todo o tratamento", frisa.
Quem também convive com o receio de não ter injeções de Decapeptyl para a filha é uma moradora de Sobral, que opta por não se identificar. "Ela começou a usar a medicação em 2020, que era feita a cada trimestre, mas a gente começou a ter uma falta no ano passado", explica.
A menina, de 9 anos, precisa da substância para evitar os prejuízos da puberdade precoce e, de forma similar ao que acontece com Roberta, a mãe precisa ir em busca de alternativas.
"Não é uma medicação que a gente encontra facilmente nas farmácias e a gente se preocupa sobre como vai ser a resposta da criança e as alterações hormonais que ela pode apresentar", reflete sobre a possibilidade de atraso.
Como funciona o Decapeptyl?
A substância presente no remédio é a triptorrelina que atua nos hormônios para evitar a puberdade precoce e os prejuízos à saúde que podem ser ocasionados, como explica Izabella Tamira.
“São medicações com prazo certo para ser aplicada - a de 3.75 mg a cada 28 dias e a de 11.25 mg a cada 84 dias - quando tem atrasos na medicação, quando o paciente toma de novo pode ter uma piora do quadro”, destaca.
Realmente é uma medicação que não dá para ficar sem, o que às vezes acaba acontecendo, na prática, é a gente tentar substituir pela leuprorrelina, que é um medicamento da mesma classe e que alguns locais do Estado estão conseguindo receber
Mesmo com essa alternativa é preciso manter uma constância para obter os resultados positivos do tratamento. Isso porque as substâncias bloqueiam as mudanças causadas pela transição da infância e adolescência.
“Enquanto esse hormônio está ligado no receptor, não deixa a puberdade avançar, mas a partir do momento que vai perdendo a sua eficácia e uma nova dose não é feita, a criança volta a entrar na puberdade”, explica.