Idosos passavam fome, andavam nus e sofriam violência em abrigo clandestino de Fortaleza; veja imagens

Casa de repouso no bairro Carlito Pamplona foi interditada no início deste mês após fiscalização de comissão pública

(Atualizado às 17:14)
Quarto escuro em abrigo para idosos em Fortaleza
Legenda: Espaços internos da unidade tinham sinais de umidade, mofo e bolor
Foto: Divulgação/MPCE

Pessoas com transtornos psiquiátricos e idosos passando fome, andando nus e com indícios de violência física. Esse foi o cenário degradante encontrado por autoridades públicas que fiscalizaram o abrigo São Gabriel, no bairro Carlito Pamplona, em Fortaleza, entre janeiro e fevereiro. O local foi interditado pela Justiça no início deste mês após serem constatadas irregularidades e condições inadequadas no acolhimento de mais de 60 pessoas idosas ou com deficiência.

As informações foram repassadas pelo Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), em coletiva de imprensa na manhã desta terça-feira (25). A entidade atuou junto a outros órgãos municipais e estaduais na interdição do abrigo. 

Ao todo, o São Gabriel tinha apenas quatro cuidadores para 65 pessoas. Todos ficavam misturados, homens e mulheres, em quartos sujos de necessidades fisiológicas ou que ficavam alagados em dias de chuva. Mais de 30 internos também apresentam suspeitas de tuberculose e necessitam de cuidados em saúde.

Um dos quartos do prédio verificados na unidade é escuro, molhado e com uma cadeira com ataduras nas pernas e no encosto dos braços, revelando indícios de que pacientes eram amarrados.

"Como se mantêm 65 pessoas naquelas condições extremamente precárias, na perspectiva de cuidado? Nós ressuscitamos os manicômios, isso de forma muito triste", lamentou o promotor de Justiça Alexandre Alcântara na coletiva de imprensa. "É como se reforma psiquiátrica não tivesse valido nada".

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Para ele, este não foi o primeiro nem será o último caso se não forem feitos investimentos na área assistencial para o público mais vulnerável.

"Essa situação é sintoma de uma omissão de políticas públicas tanto para acolhimento de pessoas idosas como de residências inclusivas para pessoas com deficiência, incluindo transtornos mentais", afirma.

No dia 10 de fevereiro, uma decisão liminar da 7ª Vara da Fazenda Pública interditou a instituição privada, que também foi proibida de manter ou receber novos residentes, sob pena de multa diária de R$ 1 mil.

Após visita da Polícia Civil do Ceará, a proprietária da casa de repouso foi presa em flagrante, na última segunda-feira (17), por suspeita de maus-tratos e outras violações. A mulher de 58 anos foi conduzida à Delegacia e teve a prisão convertida em preventiva.

Pátio interno do abrigo São Gabriel, no bairro Carlito Pamplona
Legenda: Local tinha apenas quatro cuidadores para mais de 60 pessoas institucionalizadas
Foto: Divulgação/MPCE

Problemas no abrigo

As visitas do Núcleo de Apoio Técnico do MP do Ceará, Vigilância Sanitária de Fortaleza e Corpo de Bombeiros detectaram uma série de irregularidades no local, incluindo:

  • falta de documentação
  • não comprovação de limpeza do reservatório de água potável
  • irregularidades na acessibilidade e na instalação elétrica e hidráulica
  • ausência de portas em banheiros e em dormitórios
  • fissuras em paredes
  • insuficiência de limpeza e iluminação nos ambientes
  • manchas de umidade, mofo e bolor
  • presença de cupins
  • telhas quebradas e ferragens expostas no teto
  • extintores de incêndio subdimensionados, obstruídos ou vencidos
  • ausência de piso antiderrapante

Tomada sem proteção e quarto escuro em abrigo para idosos
Legenda: Prédio tinha condições insalubres e exposição de risco aos idosos
Foto: Divulgação/MPCE

Pedido de interdição há 6 anos

Em outubro de 2019, o MPCE já havia protocolado um pedido para a interdição judicial da mesma casa de repouso. À época, a fiscalização constatou a ausência de alvará de funcionamento, acomodações inadequadas, ausência de suporte adequado de saúde mental, falta de recursos humanos capacitados e irregularidades na infraestrutura do imóvel.

No entanto, segundo o promotor Alexandre Alcântara, a empresa continuou a funcionar utilizando métodos suspeitos para continuar atuando.

"Infelizmente, a fiscalização sempre está atrás porque, muitas vezes, eles são clandestinos, se escondem e sabem da lentidão do Judiciário. Eles se valem de artimanhas como mudar de endereço e a nomenclatura, abrir novas empresas e reiniciar todo o processo de fiscalização", observa com a experiência de 15 anos na área.

Alcântara explica ainda que o grupo responsável pelo abrigo São Gabriel já é conhecido por burlar a legalidade. Veja o retrospecto: 

  • 2013 a 2016: administravam o lar de amparo ao idoso Filhos de Maria, no bairro São Gerardo, interditado por "total falta de condições";
  • 2016 a 2019: em Caucaia, fundaram o lar de amparo Filhos de Maria, na Iparana; o lar Paz e Bem, no mesmo bairro; e a FF Casa de Apoio, no Pacheco. Todos foram interditados por denúncias de maus tratos e negligência;
  • Janeiro de 2019-2025: abrem a casa de repouso São Gabriel, inicialmente no São Gerardo, e depois no Carlito Pamplona, "novamente sem qualquer regularidade".

"Esse histórico mostra que esse grupo nunca quis trabalhar de forma correta e séria", aponta o promotor.

O que diz a defesa

Em nota enviada à reportagem, o advogado da proprietária da casa de repouso afirmou que ela estava à frente da administração do local “há aproximadamente sete meses”, após a morte do ex-esposo – que, segundo a defesa, centralizava a gestão da empresa.

“Desde então, ela tem se esforçado para garantir um mínimo de qualidade no atendimento aos institucionalizados, mesmo com recursos limitados”, pontua, negando irregularidades. “Não houve escassez de alimentação ou negligência no fornecimento de medicamentos, como foi alegado”, frisa.

A nota da defesa reconhece que, “embora a Casa de Repouso São Gabriel não fosse a melhor opção para os pacientes, a situação se deteriorou consideravelmente após a intervenção das autoridades”.

“O que realmente precisa ser apurado são as questões relativas à falta de suporte e à verdadeira responsabilidade pela situação que, infelizmente, está resultando em mais mortes e sofrimento para os pacientes da Casa de Repouso São Gabriel”, complementa o posicionamento.

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