‘Escolas quentes’: 41% das unidades de Fortaleza estão em locais com temperatura 1ºC acima da média da Capital

Essa situação atinge mais de 147 mil estudantes da Educação Infantil e do Ensino Fundamental de Fortaleza, entre unidades estaduais, municipais e particulares

Escrito por
Gabriela Custódio gabriela.custodio@svm.com.br
Crianças na biblioteca de uma escola municipal de Fortaleza
Legenda: São mais de 147 mil estudantes nessas instituições em locais mais quentes, o que corresponde a quase 40% dos alunos de Fortaleza mapeados na pesquisa, entre unidades estaduais, municipais e particulares
Foto: Kid Jr

Em meio às mudanças climáticas e às frequentes ondas de calor que têm atingido todo o Brasil, as altas temperaturas podem ter diversos efeitos no corpo humano, podendo chegar a sintomas como cansaço, dor de cabeça e mal-estar. Nesse cenário, as crianças de até 10 anos estão ainda mais vulneráveis. Em Fortaleza, a cada cinco escolas de Educação Infantil e Ensino Fundamental, cerca de duas delas encontram-se em locais com pelo menos 1ºC acima da média de temperatura da superfície da Cidade.

A pesquisa “O Acesso ao Verde e a Resiliência Climática nas Escolas das Capitais Brasileiras”, produzida pelo Instituto Alana, organização que atua pelo direito de crianças e adolescentes, traça esse panorama. O estudo aponta que a temperatura de superfície de 41% das 773 unidades mapeadas na capital cearense é pelo menos 1°C maior que a média da temperatura de superfície de Fortaleza. Esse desvio, segundo a publicação, é um indicador de localização em uma ilha de calor urbana.

São mais de 147 mil estudantes nessas instituições em locais mais quentes, o que corresponde a quase 40% dos alunos de Fortaleza mapeados na pesquisa, entre unidades estaduais, municipais e particulares.

Os dados foram levantados para a pesquisa pelo MapBiomas e analisados pelo Instituto Alana em conjunto com a Fiquem Sabendo, organização especializada no acesso a informações públicas. Para esta reportagem, o Diário do Nordeste selecionou o recorte daqueles referentes à capital cearense.

Para gerar os valores de temperatura de superfície média das escolas e dos perímetros urbanos para o ano de 2023, o MapBiomas recorreu aos sensores de infravermelho térmico dos satélites Landsat 8 e 9, que medem a radiância térmica emitida pela superfície terrestre. Após calibrar as imagens dos satélites e remover nuvens e sombras de nuvens com o uso de um algoritmo, foi calculado o valor mediano de todas as observações.

Com esses cálculos, o valor da temperatura de superfície considerado para Fortaleza foi de 38,1°C. A escola com desvio mais expressivo teve a temperatura calculada em 43,6°C — superfície 5,52°C a mais quente que a da Capital.

Em números absolutos, Fortaleza é a 11ª cidade brasileira com maior número de escolas em locais com pelo menos 1°C a mais que a média de temperatura da respectiva cidade. O ranking é liderado por São Paulo (2.504), Rio de Janeiro (2.244), Manaus (718), Brasília (631) e Recife (617).

“Embora a intensidade do impacto do calor seja influenciada pelo contexto de cada escola, sabemos que um dia letivo sob calor extremo é um dia em que algum aprendizado é perdido, pois muitas vezes aulas são canceladas e a capacidade de concentração das crianças cai”, aponta o documento.

O estudo classifica o desvio entre as temperaturas da escola e da cidade como “alto” ou “muito alto” quando essa diferença é de pelo menos 3,57°C a mais na superfície da instituição.

Esses casos não são comuns em Fortaleza, e a cidade aparece em último lugar no ranking nacional, com apenas duas escolas nessa situação. Em primeiro lugar, Manaus tem mais de 77% das unidades com desvios de temperatura “muito alto”.

EFEITOS DO CALOR

Além de causar sensação de desconforto durante a aula, o calor pode ter impacto para a saúde e para o próprio aprendizado dos estudantes, dependendo da intensidade. O médico Henrique Sá, professor de pediatria do Curso de Medicina e do Mestrado em Ciências Médicas da Universidade de Fortaleza (Unifor), explica que o corpo humano busca adaptar-se às mudanças de temperatura.

Quando esquenta, a tendência natural do organismo é responder, tentando baixar a temperatura corporal com o aumento da sudorese e da frequência cardíaca e a redução da eliminação de líquidos, por exemplo, pela urina. Mas isso tem um limite, pondera Sá.

“Quando essa sudorese é muito intensa, quando a frequência cardíaca aumenta muito, vem cansaço, fadiga, fraqueza, dor de cabeça, mal-estar, náusea. Pode dar tontura, pode dar — naturalmente, em casos mais graves — confusão mental, agitação, até mesmo perda de consciência, a depender do grau de exposição e durante quanto tempo a pessoa está exposta a isso”, explica o médico.

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Já as crianças, especificamente, estão mais vulneráveis a essas alterações, principalmente quando elas são sustentadas. “Se você se mantém durante um período muito longo de tempo em um ambiente com uma temperatura muito elevada, com baixa circulação de ar, com confinamento e com pouca hidratação, as chances desse organismo se adaptar são muito menores”, complementa.

Quando a temperatura corporal ultrapassa os 40 ºC, o mecanismo de transpiração falha e o corpo não consegue se resfriar, caracteriza-se um quadro de insolação, segundo informações do Ministério da Saúde. Ela é causada exposição prolongada ao sol e ao calor, normalmente em situações com aumento rápido da temperatura corporal, como: 

  • Passar muito tempo exposto ao sol sem protetor solar;
  • Praticar atividades extenuantes, que causam esgotamento e enfraquecimento físico;
  • Usar excesso de roupas, especialmente no calor;
  • Ficar sem se hidratar por muito tempo.

Um ambiente nessas condições reduz a aprendizagem, a concentração e a atenção, ao mesmo tempo que a pessoa fica mais dispersa, explica o médico Henrique Sá. Consequentemente, o desempenho acadêmico cai. Como essa realidade não afeta todos da mesma maneira, isso se traduz em uma série de desigualdades e repercute no futuro dos jovens mais impactados.

Acho que as autoridades precisariam rever os processos, porque estamos falando de um sistema de iniquidades. Estamos falando de crianças em graus distintos de posicionamento dentro de uma trilha de aprendizagem. Então, crianças que estão em ambientes mais confortáveis, mais saudáveis, menos tóxicos do ponto de vista do conforto térmico, têm muito mais chance de aprender, têm muito mais chance de prosperar do ponto de vista educacional.
Henrique Sá
Médico, professor de pediatria do Curso de Medicina e do Mestrado em Ciências Médicas da Unifor

MEDIDAS A SEREM ADOTADAS

Em cenários de escolas e salas de aula em que os estudantes enfrentam calor, é importante que sejam adotadas medidas individuais e coletivas. Henrique Sá destaca a ventilação da sala e a hidratação das crianças como pontos críticos. Garantir ventiladores, janelas abertas, atividades em locais ventilados e acesso facilitado a água são medidas citadas pelo médico.

Ele também aponta a importância de, após as crianças realizarem atividades físicas — por exemplo, durante o recreio —, planejar momentos de hidratação antes de iniciar uma nova atividade escolar. O objetivo é que elas possam estabilizar a temperatura corporal, principalmente em momentos mais quentes, como no meio da manhã ou da tarde.

Crianças em uma biblioteca, segurando livros coloridos. Em primeiro plano, duas meninas aparecem com os rostos parcialmente cobertos pelos livros que estão lendo.
Legenda: Temperaturas muito intensas podem causar diversos impactos para o corpo, e as crianças estão ainda mais vulneráveis à variação térmica, principalmente quando ela é sustentada
Foto: Kid Jr

Há, ainda, medidas estruturais no âmbito educacional ou até mesmo das políticas públicas que podem ser implementadas. “Acho que temos que rever alguns paradigmas, como os horários das nossas atividades acadêmicas. Desde o início e o término, até o planejamento de cada turno letivo. Será que o melhor horário para recreio é três horas da tarde? Será que a atividade acadêmica deva se estender até meio-dia?”, exemplifica.

“Vamos precisar replanejar um pouco a dinâmica de horários dentro das escolas para diminuir a sobrecarga orgânica no período mais quente do dia, seja para o aluno que estuda pela manhã ou pela tarde”, acredita o médico.

Outro ponto destacado por ele é a presença de áreas verdes nas escolas e no entorno delas que possam ser utilizadas dentro do planejamento de aulas e ajudar na conscientização sobre a importância desses espaços. Esses dois aspectos também foram investigados pela pesquisa “O Acesso ao Verde e a Resiliência Climática nas Escolas das Capitais Brasileiras”.

As escolas com pátios escolares ricos em áreas verdes também são espaços mais adaptados para enfrentar a crise climática – com mais sombra, biodiversidade e solo permeável – e mais capazes de favorecer estratégias que pensem o currículo escolar a partir do acesso e do vínculo com a natureza e seus benefícios para a saúde, a educação climática e a sustentabilidade.
Pesquisa “O Acesso ao Verde e a Resiliência Climática nas Escolas das Capitais Brasileiras”

Em Fortaleza, quase metade das instituições mapeadas no estudo não apresentam áreas verdes no ambiente interno. Ao todo, são 49% das escolas nessa situação. Com isso, a capital cearense é a terceira do Brasil na proporção de escolas sem cobertura vegetal nos respectivos lotes (49%), atrás apenas de Salvador (63,4%) e São Luís (50,9%).

Além disso, 168 das escolas mapeadas — cerca de 22% — não têm área verde no entorno, considerando um raio de até mil metros. Nesse quesito, Fortaleza fica em 15º lugar no ranking nacional. Porto Velho lidera com 61,5%, seguido de Maceió (53,8%), Manaus (47,1%), Campo Grande (45,8%) e Macapá (45,1%).

RECOMENDAÇÕES DA PESQUISA

  • Planejar a infraestrutura de novas escolas e a reforma de escolas já existentes priorizando o conforto térmico, por meio de pavimentos “frios”, telhados com superfície branca, reflexiva ou permeável, materiais isolantes, ventilação, refrigeração, iluminação natural e salas de aulas abertas.
  • Aumentar o plantio de árvores e florestas urbanas para incrementar as áreas de sombra e favorecer o uso de espaços abertos para o aprendizado, a convivência e o brincar, reduzindo a necessidade de refrigeração artificial dos ambientes fechados.
  • Adaptar a organização, as rotinas e o tempo escolar para que as atividades ao ar livre ocorram nos horários mais frescos do dia, ou à sombra, para maximizar a atividade física, o conforto e a segurança dos estudantes. Disponibilizar água abundantemente, priorizar o uso de uniformes leves e incentivar o uso de chapéu ou boné.

O MapBiomas recorreu a diversas fontes de dados e métodos para calcular as métricas utilizadas na pesquisa, cuja metodologia está disponível neste link. As informações sobre as instituições de ensino foram obtidas a partir do Censo Escolar de 2023, do Instituto Nacional de Pesquisas e Estudos Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

O Diário do Nordeste entrou em contato com a escola que apresenta o maior desvio — com 5,52°C a mais que a Capital. Eva Lopes, diretora da Escola Municipal 11 de Agosto, aponta que essa poderia ser a realidade do prédio que a instituição ocupava anteriormente e que vai passar por uma reforma.

“Nós estávamos em um prédio grande, tínhamos uma parte (das salas) com ar-condicionado, outra com ventiladores. As salas que estavam voltadas para a avenida eram as que tínhamos ar-condicionado”, explica. No prédio atual, a diretora aponta que todas as salas têm dois aparelhos.

A reportagem também buscou os sindicatos que representam os professores da rede municipal de ensino e as escolas particulares para saber se essa situação é acompanhada pelas entidades e se elas fornecem recomendações às gestões das unidades.

O Sindicato União dos Trabalhadores da Educação (Sindiute) e o Sindicato dos Estabelecimentos de Educação e Ensino da Livre Iniciativa do Estado do Ceará (Sinepe-CE) não responderam os questionamentos até a publicação da matéria.

O QUE DIZ A SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO

Em nota enviada ao Diário do Nordeste, a Secretaria Municipal da Educação (SME) de Fortaleza afirmou que as requalificações e as construções de novos equipamentos da Rede Municipal de Ensino “são planejadas com infraestrutura que proporcione bem-estar e conforto para estudantes, profissionais e comunidade escolar”. De acordo com a Pasta, os projetos contam com soluções que contribuem para a qualidade térmica dos espaços, “incluindo o respeito às áreas verdes dentro e no entorno das unidades”.

No fim de janeiro, o prefeito Evandro Leitão (PT) anunciou que todas as salas de aula das escolas municipais terão ar-condicionado até o fim deste mandato, em 2028. Atualmente, o equipamento está presente em apenas 15% das unidades. Além disso, a SME aponta que há o incentivo para a realização de atividades curriculares ligadas ao tema.

“Um exemplo é o Selo Escola Amiga do Meio Ambiente, realizado em parceria com a Secretaria de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma), que estimula a participação das escolas na sensibilização para os problemas ambientais no município de Fortaleza”, aponta o comunicado.

A Pasta também destaca a implantação de “pátios naturalizados” para as crianças da Educação Infantil. “Esses espaços incentivam o convívio e o brincar com elementos da natureza, envolvendo o plantio de árvores frutíferas e espécies nativas”, afirma.

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O QUE DIZ A SECRETARIA DA EDUCAÇÃO DO ESTADO

Entre as escolas públicas que aparecem no levantamento, a minoria é estadual. A reportagem questionou a Secretaria da Educação (Seduc) sobre essa situação nas escolas do Governo do Estado. Entre as medidas apontadas para tornar as instituições escolares adequadas “em termos de estrutura e aprendizagem” está a adoção da “Educação Ambiental, Sustentabilidade e Emergência Climática” como tema norteador para ações pedagógicas e reflexões no ano letivo de 2025.

“Dessa forma, ações como plantio de árvores em espaços escolares estarão em debate, mostrando por exemplo, a importância para um ambiente mais agradável. O tema norteador vai direcionar projetos importantes da rede estadual de ensino como ‘Ceará Científico’, ‘Alunos que inspiram’, além de influenciar direta ou indiretamente em todos os programas, projetos e ações da Seduc”, afirma, em nota.

Além disso, o comunicado destaca o Programa Selo Escola Sustentável, voltado à conscientização sobre o uso racional dos recursos naturais e públicos, envolvendo toda a comunidade escolar. “A ação está organizada em quatro eixos: Currículo, Gestão Ambiental Escolar, Espaço Físico e Educomunicação Socioambiental”, diz.

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Outros aspectos citados foram a climatização e as construções. Atualmente, 58% das salas na rede pública estadual em Fortaleza (4.194) são climatizadas. Nos últimos anos, segundo a Seduc, os novos estabelecimentos construídos e entregues já contam com esse item e existe um estudo voltado à expansão desse atendimento para as escolas, que são acompanhadas pelas Coordenadorias Regionais de Desenvolvimento da Educação (Crede) e pela Superintendência das Escolas Estaduais de Fortaleza (Sefor).

“As escolas são projetadas de forma a permitir o aproveitamento da ventilação e iluminação naturais, com a respectiva minimização da insolação na edificação. Os espaços são contemplados com ventilação cruzada e iluminação natural. Além disso, os jardins têm a função de amenizar as altas temperaturas”, finaliza.

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