População idosa relata os ‘sofrimentos de envelhecer’ e cobra medidas de saúde física e mental
Expectativa de vida cada vez maior exige organização das redes de atendimento psicossocial e especialização de profissionais
A realidade do envelhecimento na população cearense requer providências que atendam às demandas de vida de pessoas idosas, inclusive uma das mais discutidas atualmente: a saúde mental. Afinal, o “futuro” com o qual muitos sonhavam na juventude, agora, é recebido quase como inimigo.
Os discursos modernos estimulam a elaboração de políticas públicas que criem condições para um “envelhecimento ativo”, recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Ele compreende princípios como independência, participação social, autorrealização e dignidade, fatores necessários ao chamado “protagonismo do idoso”.
No entanto, a realidade é mais crua. Abandono familiar, problemas de saúde, aposentadorias compulsórias, falta de novas oportunidades no mercado de trabalho e sucessivos processos de luto assombram. Podem incapacitar e até mesmo paralisar quem já é vulnerável.
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Para refletir sobre a saúde mental desse grupo, o Diário do Nordeste publica a série Segundas Chances, que lembra os 20 anos do Estatuto da Pessoa Idosa, completos no último domingo, 1º de outubro, e seus impactos na população cearense. Nesta segunda reportagem, falamos sobre o sofrimento psíquico do envelhecer.
“Eu me cuido”, diz Otávio (nome fictício), 62 anos, um dos internos do Hospital de Saúde Mental Dr. Frota Pinto (HSMM), em Fortaleza. Não deixa a barriga crescer e faz limpezas odontológicas constantes, garante à reportagem. Bagunçado mesmo é o interior: foi diagnosticado com transtorno bipolar em 1998, alternando períodos “bons” e outros “nem tanto”.
Nos últimos tempos, a situação se complicou. Brigas com a mulher e com os filhos se tornaram constantes, deixando-o nervoso, preocupado, às vezes sem saber o que fazer. Por isso, em alguns momentos, busca ajuda médica voluntariamente: nas instalações do hospital, tem outras companhias e se afasta dos problemas.
“Sou consciente do que eu tenho, mas minha família jamais perguntou se eu queria ajuda”, confessa. Essa dificuldade na percepção de quem convive com um idoso em sofrimento é comum, segundo a psiquiatra Lorena Feijó, coordenadora do ambulatório de Psicogeriatria do HSMM, onde são atendidos de 120 a 150 pacientes por mês.
“A depressão do idoso é atípica. Não é só chorar ou dizer que está triste, mas fica mais isolado, sem energia, com tonturas e muitas dores no corpo, na cabeça, no estômago, falando menos ou ficando mais irritados. São vários sinais aos quais a família tem que ficar de olho”, recomenda.
A coordenadora das Redes de Atenção Primária e Psicossocial da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), Luciana Passos Aragão, explica que, embora os pacientes atendidos pela Prefeitura apresentem transtornos de humor e quadros ansiosos ou depressivos, o que mais aflige a população no envelhecimento são as perdas cognitivas e de memória.
Conforme a gestora, as articulações de políticas públicas com outras secretarias buscam garantir a funcionalidade e a independência dessas pessoas. “O objetivo sempre vai ser promover um idoso autônomo para que ele possa estabelecer o autocuidado e fazer suas atividades de vida diária”, ressalta.
Ao todo, a cidade dispõe de 16 Centros de Atenção Psicossocial (Caps) com serviço porta aberta. O usuário maior de 18 anos pode procurar diretamente uma dessas unidades ou um dos postos de saúde da Capital. Nos Centros, é feita uma avaliação inicial e, de acordo com a necessidade, o encaminhamento a outros serviços de saúde.
Redes não estão preparadas
Contudo, só realizar atendimentos em saúde não são suficientes, como pondera Rodrigo da Silva Maia, doutor em Psicologia e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) - campus Sobral. Para ele, embora o Estatuto da Pessoa Idosa estabeleça a “preservação de sua saúde física e mental”, apenas a primeira ganha destaque e investimentos. Além disso, percebe, há uma lacuna na formação de profissionais voltados a esse público.
“A efetivação da legislação caminha a passos lentos. São muito poucos os psicólogos especialistas em atendimento gerontológico porque a formação é voltada para o universo infantojuvenil, para que os jovens não desenvolvam quadros preocupantes que perdurem ao longo da vida”, explica.
E as demandas não são poucas. Segundo Rodrigo, o processo de envelhecimento abrange eventos que podem amplificar o sofrimento de idosos, como a morte de parentes, amigos e companheiros; a perda de autonomia e da capacidade de tomar decisões; a diminuição de vínculos sociais; e as morbidades de comprometimento cognitivo.
“Temos idosos com demência, como Alzheimer, geralmente apresentando confusões sobre a própria vida. Em função do envelhecimento patológico, esses quadros de adoecimento podem se estender até mesmo à família e aos cuidadores”, alarma.
No Hospital de Saúde Mental, as demências são o carro-chefe dos atendimentos, segundo a psiquiatra Lorena Feijó, ao lado da depressão e da ansiedade. A profissional observa que a pandemia “piorou muita coisa” porque os idosos “ficaram presos” em casa, acuados e penalizados, muitas vezes tendo piora em quadros de esquizofrenia e bipolaridade.
Outro agravante da saúde mental dessa população é que mesmo espaços destinados a oferecer assistência podem não ser ideais. O Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) inspeciona Instituições de Longa Permanência Para Idosos (ILPIs) - são mais de 80 em todo o Ceará - para avaliar as condições concretas a que estão submetidos os institucionalizados e, em muitos casos, precisa expedir termos de ajustamento.
Segundo o promotor de Justiça e secretário-executivo das Promotorias de Justiça atuantes na Defesa do Idoso e da Pessoa com Deficiência no Ceará, Alexandre de Oliveira Alcântara, infraestrutura deficitária, irregularidades documentais e precariedade de equipe técnica são os principais problemas encontrados nos abrigos do Estado.
Já chegamos a requerer interdição judicial porque, em vez de dar cuidado, a entidade estava violentando as pessoas. O grande desafio é oferecer essa modalidade na rede pública e fiscalizar muito bem as filantrópicas e privadas. A demanda é enorme, crescente, e fazemos uma inspeção criteriosa para essas pessoas terem o cuidado que merecem.
Como cuidar da saúde mental do idoso
Em vez da negligência, em alguns casos, a preocupação familiar é exagerada, como percebe o psicólogo Orozimbo Leão, de 74 anos. Ele já tem mais de 50 anos de consultório e segue atuando com pacientes também idosos, em Fortaleza. Segundo o profissional, “o trauma fantasma do Alzheimer” está sempre à espreita e preocupa os parentes.
Contudo, para Orozimbo, as pessoas idosas não devem ser tratadas com coitadismo. Acima de tudo, devem prevalecer sua história de vida e capacidades individuais. “Os filhos precisam entender que o idoso faz parte da família. Ele não é o encosto que só dá preocupação. Se a família incentivar uma vida social, cultural e de lazer, trazendo o idoso para o contexto social, ele se integra muito bem”, recomenda.
Essa é a mesma análise do professor Rodrigo Maia, da UFC: a prevenção do adoecimento mental na velhice passa por uma socialização de qualidade. Não basta ter pessoas presentes ao redor, mas os vínculos devem ser capazes de promover bem-estar e segurança. Do contrário, essas pessoas tendem a permanecer solitárias.
Como exemplo público de favorecimento dessa vinculação, ele cita o Centro do Idoso Rosa Maria Rodrigues, na cidade de Sobral, no Norte do Ceará. Inaugurado em janeiro de 2022, ele atende a cerca de 50 idosos com atividades coletivas, atendimento especializado de terapeuta ocupacional, pedagogos, psicólogos e assistentes sociais, refeições e medicação.
“Além da atenção à saúde, esse serviço promove a estimulação cognitiva e cuidados psicossociais. É uma iniciativa que pode ser replicada em outros contextos e trazer muitos benefícios”, sugere o professor.
Infraestruturas assim demandam recursos financeiros que, muitas vezes, os municípios não são capazes de arrecadar, lembra o promotor Alexandre Alcântara. Por isso, ele defende “orçamentos do Tesouro Estadual e Federal”, ou consórcios entre municípios, “destinados de forma inteligente, com projetos fundamentados e intersetoriais”. “Precisamos de cooperação federativa para construí-las”, argumenta.
Conforme o Portal da Transparência do Governo do Estado, o Fundo Estadual do Idoso do Ceará (Feice) teve orçamento atualizado para R$10,5 milhões no ano de 2023, destinado a financiar programas, projetos e serviços de assistência social. Cidadãos interessados em contribuir podem destinar parte do Imposto de Renda a essa arrecadação. Em Fortaleza, a Lei Orçamentária Anual (LOA) 2023 destina R$8,5 milhões ao Fundo Municipal.
Como envelhecer bem?
A expectativa de vida da população brasileira está cada vez maior. Ela saltou de 66 anos, em 1990, para 76,2 anos em 2023, de acordo com a OMS. Já em 2043, deve ultrapassar os 80 anos. Diante desse cenário, o professor Rodrigo Maia enumera 3 “dicas” para um envelhecimento saudável:
- Cuidar da saúde física: “podemos ter doenças, mas também manejar o sintomas e viver por longos anos com equipe multiprofissional”;
- Buscar psicoterapia: “para lidar com a experiência subjetiva que é a vida. Viver não é fácil e precisamos zelar por essa dimensão”;
- Fortalecer os vínculos de qualidade: “ter uma rede de apoio traz um benefício que não podemos mensurar. Eles são protetivos à nossa saúde de maneira geral”.
Desde já, também é preciso se programar, complementa a psiquiatra Lorena Feijó. Não só em relação às reservas financeiras, mas às atividades que ocuparão o tempo no futuro. “Ninguém pensa no que vai fazer quando se aposentar. Qual vai ser o meu hobby? O que vou aprender? Para prevenir demência, temos que tentar novas habilidades e criar novas conexões no cérebro”, aconselha.