Estresse tóxico: racismo afeta a saúde mental de crianças e efeito pode ser confundido com timidez

A violência cotidiana causa dificuldade de interação e prejuízos ao desenvolvimento, levando à necessidade de acolhimento

Escrito por Lucas Falconery , lucas.falconery@svm.com.br
Isolamento é uma estratégia de proteção para crianças com estresse tóxico
Legenda: Isolamento é uma estratégia de proteção para crianças com estresse tóxico
Foto: Kid Júnior

Gestos racistas são disfarçados de “brincadeiras”, mas machucam crianças negras e indígenas, podendo causar um dano à saúde mental: o estresse tóxico. Esse termo define a sensação de que algo ruim pode acontecer a qualquer momento – um alerta de perigo constante na mente de quem ainda não tem ferramentas para enfrentá-lo.

Um dos efeitos disso é a retração, quase como uma autodefesa, geralmente confundida com timidez na primeira infância, como avaliam os especialistas na área. Além disso, o quadro potencialmente prejudica a formação emocional e cognitiva, dificultando interações sociais ou até levando a casos de ansiedade.

O estresse tóxico acontece quando uma criança vivencia adversidades por um longo período sem suporte. Isso pode prejudicar o desenvolvimento saudável do cérebro e de outros sistemas do corpo

A definição foi feita na publicação "Racismo, Educação Infantil e Desenvolvimento na Primeira Infância", do Núcleo Ciência Pela Infância, em 2021.

Maíra Souza, oficial da primeira infância do Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef), contextualiza que é na infância quando se começa a entender sobre as características diferentes entre si.

“Mas essas diferenças também são hierarquias. O cabelo liso é o 'bonito e desejável' e isso serve para o nariz, boca… É algo muito sutil”, frisa sobre a importância de fortalecer a autoestima para a geração de um adulto saudável.

Sendo o racismo presente em diversos ambientes sociais e a escola estando entre os principais espaços de encontro das crianças, é preciso promover a primeira infância antirracista. “Estamos aqui séculos depois pensando em formas de quebrar esse conceito que está presente nas estruturas de poder e tomada de decisão", completa.

O racismo é uma forma de violência e promotor do estresse tóxico, aquela sensação de que a qualquer momento algo ruim pode acontecer e isso é nocivo para o desenvolvimento emocional
Maíra Souza
Oficial da primeira infância do Unicef

Aldemar Costa, psicólogo social e doutorando na área, pesquisador de temáticas envolvendo juventude, violência e raça, acrescenta que alguns estudos apontam também prejuízos para áreas do cérebro.

“São experiências de violência constante que as crianças vão enfrentar e elas não tem tantos mecanismos para lidar com isso”, frisa.

O médico psiquiatra Adalberto Barreto, colunista do Diário do Nordeste, observa que situações estressoras dentro de casa também levam ao estresse tóxico. "O clima familiar marcado por ameaças, medo, ciúmes, críticas e falta de apoio entre os membros, vai gerando um ambiente de insegurança e ansiedade", pontua.

Legenda: Estresse tóxico é ainda mais prejudicial na primeira infância
Foto: Shutterstock

"Quando além desses contextos desestruturantes ocorre uma vulnerabilidade social com crianças negras ou indígenas a situação fica mais dramática, porque tem os preconceitos que comprometem o maior patrimônio de uma pessoa: a confiança em si".

O Observatório da Saúde da Criança e do Adolescente, da Universidade Federal do Minas Gerais, lista alguns sintomas e sinais ligados ao estresse tóxico em crianças:

  • Irritabilidade
  • Distúrbios do sono
  • Falta de equilíbrio
  • Queda da imunidade e mudança brusca de comportamento
  • Queda no desempenho escolar (médio prazo e longo prazo)
  • Aparecimento de transtornos comportamentais, como ansiedade e a depressão (médio prazo e longo prazo)

Manifestações do estresse tóxico

Ao vivenciar uma situação de racismo, as crianças – ainda no processo de formação do repertório para dar significado ao mundo – podem acumular diversos prejuízos sem entender o motivo.

“Um dos principais efeitos do racismo é afastar a criança do convívio social, à medida que ao enfrentar essa violência precisa se afastar quase como um mecanismo de defesa. A criança pode ter dificuldade de interação social e isso vai ter repercussões sobre o seu desenvolvimento”, analisa.

Torna-se um adulto inseguro e que não se sente pertencente a grupos sociais são exemplos disso. “Outra questão diz respeito às perspectivas emocionais: esses efeitos da violência constante também podem gerar consequências psicológicas”, acrescenta Aldemar.

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Quando o estresse tóxico acontece na primeira infância, período até os seis anos, pode ter consequências mais sérias com alterações cerebrais e psíquicas profundas por toda a vida, como analisa Adalberto 

"O cortisol (hormônio que ajuda o corpo a lidar com o estresse) fica num nível mais baixo devido à constante ativação na infância e, quando adulto, acabam não reagindo bem aos desafios, mostrando uma resposta inadequada", completa.

O psiquiatra explica que as situações estressoras podem marcar uma pessoa ainda recém nascida. Ele lembra que a crença popular de deixar o bebê chorando para que se "resolva" sozinho é um grande equívoco.

"Essas crianças que choram a noite toda com fome ou frio sem os pais passam por um mal trato terrível, isso gera uma toxicidade nessa relação e a criança não se sente amada, reconhecida ou valorizada. Isso vai repercutir no futuro, sendo crianças inseguras ou tendo até problemas de depressão", conclui.

O que é possível fazer

Ainda há um cenário em que as situações racistas são tratadas como “mimimi” e, apesar do avanço, a questão precisa ser melhor debatida, como considera o psicólogo Aldemar. “Essa dificuldade de falar sobre o racismo diz muito sobre a forma de enfrentar isso”, conclui.

“É entender que isso é um problema de saúde pública e um fenômeno social, não tratar como casos isolados ou um problema individual, mas é estrutural e todos nós temos que nos empenhar no debate em relação a isso”.

Aldemar propõe que os professores precisam ficar atentos para situações de racismo e “acolher a experiência da criança de modo a ouvir e tentar encontrar caminhos para a solução do caso específico”, detalha.

Os pais e os adultos que acompanham essa criança é importante não só acolher, escutar de forma afetiva, mas também caminhar junto e reforçar para as crianças que o problema não está nelas
Aldemar Costa
Psicólogo social

Especialistas frisam a importância do acolhimento e o fortalecimento da autoestima de crianças negras
Legenda: Especialistas frisam a importância do acolhimento e o fortalecimento da autoestima de crianças negras
Foto: Kid Júnior

Para Adalberto, frisa esse aspecto como importante para evidenciar aos pequenos qual o lugar deles na transformação do mundo.

“É muito importante tratar as crianças com carinho, às vezes elas precisam apenas se sentir cuidadas e seguras, precisamos abraçar, dar um cafuné, conversar com voz baixa e ter paciência para que ela fique tranquila”, completa.

Também é importante ouvi-la, deixar desabafar e colocar para fora as emoções, raivas e medos. O período mais crítico acontece até os dois anos de idade, que é uma fase muito importante e precisamos estar atentos
Adalberto Barreto
Médico psiquiatra

Fortalecimento das crianças

Existem exemplos inspiradores de fortalecimento da  infância, passando pela temática racial, em Fortaleza. O “Coletivo Invenções das Crianças de Nova Canudos”, no Canindezinho, atua com público na faixa etária de oito a 16 anos e segue nessa perspectiva.

Atualmente, cerca de 20 crianças atuam de forma mais ativa, mas o projeto permite a participação de qualquer um que tenha interesse, sem a necessidade de inscrição prévia.

A iniciativa é apoiada pelo Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violências e Produção de Subjetividades (Vieses), do curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), desde 2019.

Grupo lida com crianças e adolescentes da periferia com atividades lúdicas e formativas
Legenda: Grupo lida com crianças e adolescentes da periferia com atividades lúdicas e formativas
Foto: Kid Júnior

"O Invenções tem se constituído como lugar potente, de fortalecimento das crianças, como lugar de referências e cuidado, que repercutem na construção de contranarrativas, antirracistas, não adultocêntricas, afetivas, cidadãs", avalia Érica Atem, coordenadora do "Maquinarias: infâncias em invenção", atuante no  projeto.

As relações étnico-raciais e o enfrentamento do racismo são trabalhos interseccionalmente às questões de classe social (pobreza), geração, gênero, sexualidade, território e pautados pela escuta das situações cotidianas presentes nas vidas dessas crianças e adolescentes e dos que lhes interessa conversar.
Érica Atem
Coordenadora

As atividades são quinzenais, aos sábados, e acontecem no Centro de Cidadania e Valorização Humana (CCVH). São feitas ações de brincadeiras ao ar livre e algumas ações dirigidas.

"É feito por uma escuta atenta das crianças e suas vivências, tecendo cuidadosamente processos de singularização e coletivos, de modo que o projeto se mantenha como referência onde possam tratar questões pertinente às suas vidas, respeitando suas particularidades e contextos", completa Érica.

Em uma das atividades com a pauta racial foi lido conjuntamente o livro "Amoras", publicado pelo artista Emicida em 2018, com uma roda de conversa sobre o tema. "Ao final da contação, as extensionistas levaram imagens de personagens, heróis e heroínas negras/os de histórias em quadrinhos, desenhos animados, filmes e realizaram um quizz em torno de quem conheciam e gostavam".

O vínculo e a confiança são fundamentais para uma relação honesta com crianças e adolescentes, como analisa a coordenadora. "Assuntos complexos, pois trazem a dimensão da conivência social e da construção de mundos possíveis, precisam de elaboração e diferentes formas de expressão", conclui.

Onde buscar ajuda

Caso você esteja se sentindo sozinho, triste, angustiado, ansioso ou tendo sinais e sentimentos relacionados a suicídio, procure ajuda especializada em sua cidade. É possível encontrar apoio em instituições como o Centro de Valorização da Vida (CVV) e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) (veja a relação completa das unidades de Fortaleza).

• Postos de saúde: as unidades são portas de entrada para obter ajuda especializada, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

• Centro de Valorização da Vida – CVV
Atendimento 24h 
Contatos: 188 ou chat pelo site https://www.cvv.org.br
 
• Corpo de Bombeiros Militar do Ceará (CBMCE)
Contato: 193 
Endereço: Núcleo de Busca e Salvamento Av. Presidente Castelo Branco, 1000 – Moura Brasil – Fortaleza-CE
 
• Hospital de Saúde Mental de Messejana
Contatos: (85) 3101.4348 | www.hsmm.ce.gov.br 
Endereço: Rua Vicente Nobre Macêdo, s/n – Messejana – Fortaleza/CE
 
• Programa de Apoio à Vida – PRAVIDA/UFC
Contatos: (85) 3366.8149 / 98400.5672 | contato.pravida@gmail.com
Endereço: Rua Capitão Francisco Pedro, 1290 – Rodolfo Teófilo – Fortaleza/CE

 • Instituto Bia Dote
Contatos: (85) 3264.2992 / 99842.0403 | contato@institutobiadote.org.br / institutobiadote@gmail.com | www.institutobiadote.org.br 
Endereço: Av. Barão de Studart, 2360 – Sala 1106 – Aldeota – Fortaleza/CE

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