A Páscoa é um convite para fazermos as mudanças que precisam ser operadas em nosso tempo
Um emprego, um relacionamento são galhos provisórios e podem se quebrar a qualquer momento. O que nos faz nos levantar e alçar o voo é o tempo do Kyros

Existem duas grandes linhas do tempo: o cronos e o Kyros. Cronos é o tempo material, o tempo/quantidade, o tempo monetizado: “tempo é dinheiro”. Constitui o período de trabalho exaustivo, de acumular e consumir energia e dinheiro mais do que necessitamos para viver. Esta linha cronológica, horizontal, é onde acontecem nossos traumas e sofrimentos diversos: conflitos, preconceitos, perdas, catástrofes, violências, exclusões, guerras, migrações forçadas… deixa cicatrizes em nosso corpo físico, em nossa alma e na sociedade.
Ele nos consome, nos adoece e nos envelhece. Esvazia-nos de nossa essência e nos desvia do sentido profundo da vida, que é conviver bem conosco, com os outros e com o planeta. Os pés pisando na terra, tocando a matéria e o olhar no eterno, na luz que não se desfaz quando a matéria se decompõe. É o tempo do burnout, do tânatos existencial, da morte pessoal e relacional. O 'ter' ofusca o 'ser', a quantidade eclipsa a qualidade. Essa é uma das fontes dos desequilíbrios que dificultam a convivência humana, gerando sofrimento pessoal, familiar e social.
Este período caótico decorre do desequilíbrio entre as diversas partes que constituem o ser humano como um ser biológico, psicológico, social e espiritual. Se considerarmos somente um destes aspectos, o tempo cronológico, material, não teremos vida saudável nem paz em nossas famílias, na sociedade e em nossas vidas. O Kyros é o tempo do amor eterno, da luz que toca nas profundezas de nossas vidas, da espiritualidade que ilumina e redimensiona o que acontece no tempo cronológico. O Kyros tenta agregar o que o Cronos desconsidera.
O burnout deixa de ser somente uma doença psiquiátrica e revela uma filosofia de vida frenética e desumana. Se não incluirmos esta dimensão e revisarmos nossos valores e filosofia de vida, a cura se limitará a um tratamento exclusivamente medicamentoso, será sempre provisória. O Kyros é o lado invisível, a luz, a alma e a consciência do Cronos, baseado somente no tempo material. Ele sempre nos convida a refletir os acontecimentos numa dimensão imaterial, transcendente, eterna.
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Um exemplo muito claro é revelado pelo provérbio que diz: “um pássaro pousado em um galho de uma árvore não teme que o galho se quebre, porque sua confiança está em suas asas que o permitem voar”. O galho é o tempo cronológico, material que se desgasta com o tempo. Quando o galho se quebra, caímos com ele e nos machucamos. É quando descobrimos a provisoriedade de todos os galhos provisórios onde nos encontramos.
Um emprego, um relacionamento são galhos provisórios e podem se quebrar a qualquer momento. O que nos faz nos levantar e alçar o voo é o tempo do Kyros. Aqueles que ainda não descobriram que não são galhos e sim pássaros, são os que adoecem de depressão, crises de ansiedade e permanecem caídos ao chão sem rumo nem direção. O que nos faz levantar voo é o sentido do Kyros.
O tempo imaterial, os valores eternos que a verdadeira espiritualidade nos ensina. A qualidade da vida cronológica provem do Kyros. O Kyros é a alma do Cronos. É quando nos conectamos com a consciência/espiritualidade/valores ancestrais que o milagre acontece, que surge a esperança. A queda do galho nos trouxe uma lição. É hora de despertar e começar outros voos para descobrirmos coisas novas. Não se trata de opor um ao outro, mas de gerar uma dinâmica dialógica entre estes dois tempos essenciais da vida humana.
A Páscoa surge como um convite para fazermos as mudanças que precisam ser operadas em nosso tempo cronológico, à luz do Kyros, de nossos valores espirituais e culturais. É na Páscoa, quando estas duas linhas se cruzam, uma na horizontal (tempo material) com outra na vertical (tempo do amor eterno), formando uma cruz, símbolo cristão da morte e ressurreição de Cristo. Pascoa é tempo do cruzamento, do encontro do Cronos (quantidade material) com o Kyros (qualidade imaterial de vida), de tal forma que ambas as dimensões se atritam, produzindo a luz necessária para clarear o caminho pessoal de cada ser, da família e da humanidade inteira.
Pascoa é convite a nos levantar das quedas inerentes a quem caminha neste tempo que nos consome. A sair dos guetos de desesperança e violência fratricidas à procura de novos horizontes que nos permitam viver em paz e harmonia. É o tempo dos governantes das grandes nações despertarem que uma nação não vive somente de troca de mercadorias. Cristo já nos lembrava que não se vive somente do pão material.
É o tempo do Kyros, da espiritualidade, do eterno, que nos traz luz para clarear e nortear nossa caminhada como pessoa e cidadão. Quando se insiste em manter a permanência de ideologias estagnantes, para garantir ganhos materiais, privilégios, se inicia um ciclo de poder material, de intolerância. E isso impede a passagem de um estado de consciência a outro, de um pensamento a outro diverso, de um modo de vida a outro, do tempo do Cronos ao tempo do Kyros.
Pessoas e governos tornam-se autoritários. Tudo é feito para evitar que os humanos pensem por si, eles devem se conformar com o que é pensado por uma elite materialista, na prática, travestida de um discurso espiritualizado, manipuladora de consciências estéreis para não haver mudanças. Para que a matéria, o dinheiro prevaleça sobre os valores eternos. A história mostra, com muita recorrência, o desastre humanitário destes regimes totalitários, sejam de direita ou de esquerda.
O mundo político e econômico está nos conduzindo a desertos estéreis e suicidas. Estão destruindo os poucos oásis que ainda nos restam. A guerra comercial está transformando pessoas e nações em obstáculos que precisam ser subjugados e destruídos a todo custo. Os muros medievais que protegiam as cidades estão sendo reconstruídos por políticas excludentes. O “primeiro eu” contrasta com o Ubuntu, eu sou porque somos.
A consciência do respeito aos recursos humanos e naturais está sendo substituída por tudo que é possível e permitido a quem tem o poder das armas destrutivas. A humanidade está passando por uma travessia nesse deserto desumano. São muitas as miragens e pesadelos. Para nós cristãos, trata-se de uma passagem, de um período transitório que nos leva a refletir sobre os valores indispensáveis para reconstruir essa sociedade competitiva e egoísta.
É também o prenúncio da esperança do ressurgimento de um mundo mais solidário, justo e valorizador da vida. Parece que o modelo político crescente, que visa os bens materiais e comerciais, está levando o mundo ao caos, ao apocalipse. Estão acumulando tesouros materiais em detrimento de tesouros que resistem ao tempo. Cristo já nos alertou sobre a importância de não acumular tesouros materiais de maneira excessiva.
Em Mateus 6:19-21, Ele disse: “Não ajunteis para vós outros tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem consomem, e onde os ladrões minam e roubam; mas ajuntai para vós outros tesouros no céu, onde nem a traça, nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam. Porque onde estiver o seu tesouro, aí estará também o seu coração.” Esses versículos destacam a necessidade de focar em valores espirituais e eternos, em vez de se prender somente ao acúmulo de bens materiais.
O que realmente importa são as riquezas espirituais. A Europa já está preparando um manual orientando como se proteger quando a guerra chegar. Se esta lógica do tempo político do mundo atual, defendido pela extrema-direita, não se deixar tocar pelo tempo imaterial de uma espiritualidade que desperta a alma, a essência do Kyros, conheceremos o apocalipse em vida. Será talvez o fim da humanidade, como aconteceu com os dinossauros.
A Páscoa é um convite para virarmos as páginas dos livros de nossas vidas, que nos impedem de avançar na evolução natural, tanto na vida pessoal como na civilização. Somente pelo exercício de uma consciência crítica e inclusiva, a Páscoa trará os frutos de que precisamos para crescermos juntos em harmonia conosco, os outros e todo o Planeta. Como nos diz o poeta cearense Bráulio Bessa: “Recomece! Se refaça! Relembre o que foi bom. E se um dia, lá na frente, a vida der uma ré, recupere a sua fé e recomece novamente".
*Esta texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.