Um a cada 3 adolescentes em medida socioeducativa no CE fez tratamento psiquiátrico no início do ano

Retrato feito em janeiro deste ano mostra que meninos e meninas infratores acumularam 22 tentativas de suicídio em 6 meses

Escrito por Lucas Falconery e Theyse Viana , ceara@svm.com.br
Adolescente em privação de liberdade em centro socioeducativo do Ceará
Legenda: Adolescente em privação de liberdade em centro socioeducativo do Ceará
Foto: Emanoela Campelo de Melo

Cuidar da saúde mental na adolescência já é, em si, tarefa complexa. Quando o foco são meninas e meninas em conflito com a lei, o desafio cresce. No Ceará, em janeiro deste ano, um a cada três adolescentes do Sistema Socioeducativo estava em tratamento psiquiátrico por meio de medicamentos.

O retrato foi identificado por estudo do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e Socioeducativo (GMF), criado em dezembro do último ano e composto por diversos órgãos do sistema de Justiça, de proteção e da sociedade civil.

No primeiro mês de 2024, quando começou a coleta dos dados, 471 adolescentes cumpriam medidas socioeducativas, e 166 estavam em tratamento de saúde mental – o equivalente a 34% do total.

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O Ceará tem instalados, hoje, 19 centros socioeducativos: 11 em Fortaleza e 8 no interior do Ceará. Do total, apenas três unidades de semiliberdade não possuem demandas de adolescentes com agravamento de saúde mental.

O levantamento mostrou que, em média, cada menino e menina faz o uso de dois psicotrópicos. Quatro adolescentes precisaram de internação de saúde em unidades psiquiátricas como Hospital Filantrópico Sopai e Hospital Mental de Messejana, ambos na capital cearense.

Além deles, entre 2017 e 2023, pelo menos 96 receberam atendimento psiquiátrico no Sopai. Já neste ano, até o dia 22 de maio, oito meninos e meninas precisaram ser assistidos no equipamento de saúde.

Em média, três adolescentes do Sistema Socioeducativo são atendidos por mês no Sopai. As principais demandas que chegam ao hospital são tentativa de suicídio e automutilação, de acordo com dados levantados pelo GMF. Os meninos e meninas permanecem hospitalizados por cerca de 12 dias.

Foram registradas ainda 22 tentativas de autoextermínio pelos adolescentes entre agosto de 2023 e janeiro de 2024 – e somente dois deles tiveram a medida socioeducativa suspensa pelo Poder Judiciário. 

Nos últimos dois anos, contudo, não houve registro de mortes por este motivo.

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adolescentes estiveram em “protocolo de suicídio” nas Unidades Socioeducativas do Ceará em 2023. 

Os principais motivos dos danos à saúde mental, apontados pelos adolescentes aos pesquisadores, estão relacionados a:

  • Própria situação de privação de liberdade; 
  • Idas à “tranca”; 
  • Julgamento de socioeducadores; 
  • Situações de violência no centro por parte de socioeducandos e socioeducadores; 
  • Inseguranças na unidade.

Precariedades na estrutura física dos centros socioeducativos também foram listadas como fatores que expõem a saúde mental dos jovens e agravam os transtornos.

“Algumas unidades apresentam locais insalubres, pouca ventilação, confinamento em alas e situações constantes de violência física e psicológica, que são causadores e intensificadores de sofrimentos e transtornos mentais”, pontua o relatório do GMF.

Os quadros mais comuns entre os adolescentes em conflito com a lei “são compatíveis com ansiedade, ideação suicida, autolesão, tentativas de suicídio e alucinações”. Transtornos de moderados a graves foram diagnosticados em 37 meninos e meninas: 15 em Fortaleza, 15 em Juazeiro do Norte e 7 em Sobral.

Foco das políticas

Roberto Bassan, titular da Superintendência do Sistema Socioeducativo do Ceará (Seas), aponta que “é uma necessidade focar na formação e capacitação das equipes profissionais que atuam” nos centros, para que “estejam preparados para atuar nesses casos com sensibilidade”.

Para isso, o superintendente avalia que é fundamental “qualificar a política para cuidar do cuidador, chegar na questão de saúde mental do jovem a partir do cuidado com o trabalhador do sistema socioeducativo” – além de fortalecer políticas públicas que previnam os atos infracionais.

O principal desafio é a incompletude institucional: trazer a corresponsabilidade de outras políticas públicas para o sistema socioeducativo. Há uma invisibilidade na atenção ao adolescente que comete ato infracional, e isso precisa ser visto na integralidade das políticas. Esse jovem vai voltar pra comunidade, a família tem que ser incluída no processo.
Roberto Bassan
Superintendente do Sistema Socioeducativo do Ceará

Questionado sobre as denúncias de precariedade na estrutura dos centos, o superintendente reconhece que “algumas unidades estão no padrão Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo) e outras precisam de adequações, mas há investimento em reformas”.

“Mas a privação de liberdade é adoecedora por natureza. Há uma contradição em privar o ser humano de liberdade, e isso vai implicar. Temos que fazer estudos pra que isso seja minimizado.”

Surgimento do grupo

O desembargador Eduardo Scorsafava, supervisor do GMF, contextualiza que a iniciativa surgiu a partir da percepção da necessidade de tratar do tema. Após a pandemia, como frisa, a demanda por atendimento de saúde mental cresceu.

“Estamos a trabalhar e construir ações e planejamento do atendimento de jovens em conflito da lei, dando cumprimento ao que estabelece a constituição. Para nós, é um desafio muito forte e que muitos ainda não compreendem a importância”, avalia Eduardo. 

O GMF tem por missão monitorar e fiscalizar toda a política estabelecida dentro das unidades. “Ao fazermos isso, detectamos essa necessidade de um olhar específico para a política antimanicomial. Isso tem sido estabelecido pelo CNJ”, completa.

Foto: Emanoela Campelo de Melo

Luciana Teixeira, coordenadora do GMF, explica que a rede de saúde estadual e de alguns municípios, além da Defensoria Pública, Ministério Público do Ceará (MPCE), universidades, instituições sociais e sociedade civil foram acionadas para reunir informações sobre o tema.

“Entendemos que, para desenhar ou redesenhar uma política de saúde mental eficiente e qualificada para os adolescentes, precisávamos conhecer o que existe. Construímos questionários voltados para cada instituição”, detalha.

Os resultados mostram uma rede fragilizada em quantidade e condições de atender a demanda, como avalia.

Não existem fluxos ou os que existem não são cumpridos a contento, porque os equipamentos da rede não conseguem atender com a velocidade necessária. Tem que haver essa mudança de cultura manicomial, e entender que é preciso de cuidado, e não olhar sancionatório.
Luciana Teixeira
Coordenadora do GMF

Direito aos cuidados

Legenda: Sopai, hospital filantrópico em Fortaleza, é uma das unidades que atendem adolescentes do socioeducativo em emergências de saúde mental
Foto: Fabiane de Paula

O direito ao tratamento integral em saúde mental está previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pela lei nº 12.594/2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase).

Edinaldo César Santos Júnior, juiz auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), frisa a necessidade de democratizar as informações sobre os direitos do público infantojuvenil.

“Precisamos conhecer um pouco mais sobre as questões de saúde mental: tanto juízes, promotores, defensores e o sistema de Justiça, mas também o sistema de garantia de direitos e quem trabalha especificamente com a saúde”, completa o doutor em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo.

O juiz observa a necessidade de enxergar os internos de forma aprofundada, considerando o contexto social. "Esse adolescentes tem história e tem cor: 75% de quem está nos centros são negros como eu. Eles têm lugar e origem", completa.

Ao entender esses aspectos fica evidente, por exemplo, a ausência de políticas públicas para quem precisa. “Nesses lugares não tem saúde, lazer e cultura. Muitos adolescentes conhecem o Estado pela primeira vez quando eles infracionam. Tenho ouvido 'meu filho teve a primeira consulta odontológica quando ele infracionou”.

Onde buscar ajuda

Caso você esteja se sentindo sozinho, triste, angustiado, ansioso ou tendo sinais e sentimentos relacionados a suicídio, procure ajuda especializada em sua cidade. É possível encontrar apoio em instituições como o Centro de Valorização da Vida (CVV) e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) (veja a relação completa das unidades de Fortaleza).

• Postos de saúde: as unidades são portas de entrada para obter ajuda especializada, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

• Centro de Valorização da Vida – CVV
Atendimento 24h 
Contatos: 188 ou chat pelo site https://www.cvv.org.br
 
• Corpo de Bombeiros Militar do Ceará (CBMCE)
Contato: 193 
Endereço: Núcleo de Busca e Salvamento Av. Presidente Castelo Branco, 1000 – Moura Brasil – Fortaleza-CE
 
• Hospital de Saúde Mental de Messejana
Contatos: (85) 3101.4348 | www.hsmm.ce.gov.br 
Endereço: Rua Vicente Nobre Macêdo, s/n – Messejana – Fortaleza/CE
 
• Programa de Apoio à Vida – PRAVIDA/UFC
Contatos: (85) 3366.8149 / 98400.5672 | contato.pravida@gmail.com
Endereço: Rua Capitão Francisco Pedro, 1290 – Rodolfo Teófilo – Fortaleza/CE

 • Instituto Bia Dote
Contatos: (85) 3264.2992 / 99842.0403 | contato@institutobiadote.org.br / institutobiadote@gmail.com | www.institutobiadote.org.br 
Endereço: Av. Barão de Studart, 2360 – Sala 1106 – Aldeota – Fortaleza/CE

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