Enem, viroses e saúde mental: quais os desafios da volta às aulas no segundo semestre de 2022

Estudantes, pais e professores enfrentam pressões escolares e sociais intensificadas na reta final do ano letivo

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Sala de aula vazia no Ceará
Legenda: Agosto marca retorno de alunos das redes pública e privada à rotina de aulas
Foto: Thiago Gadelha

Com a chegada da reta final do ano letivo – num contexto de 4ª onda de Covid, casos de viroses, avanço da pobreza e de transtornos mentais –, manter a escola como ambiente saudável e de proteção é desafio. Mas quais são as maiores dificuldades a serem enfrentadas por estudantes, famílias e trabalhadores a partir deste mês?

O Diário do Nordeste conversou com especialistas para entender em que gestores da educação pública e privada devem focar para cuidar física e mentalmente da comunidade escolar nesta volta às aulas.

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“A pior pressão é a psicológica”

Para a estudante Thays Cruz, 17, as questões sociais e escolares se mesclam e constroem um clima de volta às aulas muito mais tenso. Pré-universitária na rede privada, a adolescente é categórica ao afirmar: “a pior pressão é a psicológica”.

Enem e saúde mental
Legenda: No segundo semestre, preocupação de estudantes com o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) se intensifica
Foto: Shutterstock

“Porque o Enem tá bem aí, e ficam milhões de matérias acumuladas. Ainda tem as deficiências no aprendizado, também, por causa da pandemia, que até hoje tem sequelas. São muitas coisas”, lista.

Muitas matérias foram perdidas, porque nós e os próprios professores não tínhamos estrutura suficiente pra lidar com isso no ensino remoto. Muita coisa que eu deveria ter aprendido antes pra usar agora não aprendi.
Thays Cruz
17 anos

Os impactos educacionais e mentais superaram, inclusive, o medo que a estudante tinha de contrair Covid, após um isolamento rígido que amargou por 2 anos inteiros. 

“Ainda tenho medo, mas com a vacina me sinto mais segura pra voltar. Até porque não tem mais aula remota, e mesmo se tivesse, eu não ia aguentar ficar. Pioraria muito mais meu ano letivo e meu aprendizado, principalmente neste ano de Enem”, considera Thays.

Os déficits causados pelo período de ensino remoto, aliás, atingem todas as idades. A autônoma Gilmara Freire, 35, comemora a volta às aulas, já que, para ela, a filha Mariana, de 5 anos, “aprende e se desenvolve muito mais indo pra escola”.

“O aprendizado presencial é mais avançado, ela pode entender as coisas muito mais do que online. Nessa fase dela, de crescimento, isso é o principal”, pondera a mãe.

Apesar disso, justamente pela pouca idade da filha, Gilmara se preocupa em reforçar, “sempre que pode”, as orientações para que Mariana mantenha medidas de prevenção contra a Covid.

“Ela está com duas doses da vacina, mas ainda tenho medo de ela adoecer. Oriento tanto que, quando a gente sai, ela mesma cobra a máscara, o álcool em gel. Porque a gente sempre mostrou pra ela o perigo e a importância de se proteger”, pontua.

“Existe um cansaço de todo esse tempo de privações”

A sensação de que o tempo de férias foi insuficiente pode ser um dos desafios latentes nessa volta, como avalia a psicopedagoga Renata Pires. Ela observa que “essas férias foram de forma mais intensa, devido ao cansaço de todo esse tempo de privações”.

“Existe uma sede grande de contato. Sinto no discurso das crianças e adolescentes um desejo de mais tempo (de folga). Existem dificuldades de entrar num ritmo padrão de funcionamento, que exige disciplina e dedicação”, pontua.

Têm surgido muitas questões entre crianças e adolescentes que geram demanda por psicopedagogia, psicologia e outras terapias. É importante estar atento, acompanhar de perto essas faltas, angústias, medos e tensões.
Renata Pires
Psicopedagoga

Renata destaca ainda que é preciso ter cuidado especial com os adolescentes. “A aproximação do Enem gera ansiedade, e temos essa cultura de que a véspera é hora de dedicar mais energia. Mas é preciso regular o sono, a alimentação”, frisa.

A também psicopedagoga Ticiana Santiago, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), reforça que “reestruturar a rotina de forma equilibrada e saudável” está mais difícil para as escolas, que veem “pais, professores e alunos mais cansados”. “Conseguimos superar o desafio do retorno, agora é consolidar isso de forma saudável”, sugere.

As escolas devem colocar estrategicamente horários, divisão de tarefas, fazer reuniões, orientar as famílias e equilibrar a quantidade de demandas para casa. As atividades remotas exigem atenção, e considerar o contexto das famílias é importante.
Ticiana Santiago
Psicopedagoga

O cenário político impacta as escolas?

Para Ticiana, sim, porque “a sala de aula é o microcosmos da sociedade: tudo o que acontece de relações de poder, raça, classe, etnia, política e saúde mental interfere na escola, sim, de forma significativa”. 

A professora afirma, então, que, nesse momento político no Ceará e no Brasil, “é importante criar fóruns de debate, desmistificar as fake news, entender que a escola não é só lugar de conteúdo, mas de proteção social, de reflexão, produção e transformação da cultura”.

“Exercer a cidadania, reflexão crítica, posicionamento, debates e pluralidade de ideias é extremamente saudável. Tanto pra que os estudantes entendam o que veem nas notícias como pra que consigam exercer com mais propriedade a cidadania”, diz Ticiana.

Já para Renata, é importante que existam “ambientes livres desse discurso, para não deixar que as questões políticas penetrem todas as áreas”.

“É preciso que se mantenha ambientes de tranquilidade, entrega total, onde essas questões não se misturem. Para evitar comentários e julgamentos em momentos que não devem caber”, sugere a psicopedagoga.

Como tornar a volta às aulas mais saudável

Aviso sobre uso de máscaras em escola do Ceará
Legenda: Aviso em escola da rede estadual, em 2021, antes do retorno das aulas presenciais
Foto: Thiago Gadelha

Estimular momentos de escuta, de partilha de histórias de vida entre estudantes e professores, além de realizar feiras, gincanas e oficinas, são estratégias importantes para reintegrar a comunidade escolar, após anos tão difíceis, como observa Ticiana Santiago.

“A escuta e o acolhimento” também são colocados por Renata Pires como pilares para cuidar tanto da dimensão do aprendizado como da saúde física e mental de alunos e trabalhadores da educação.

Tenho ouvido muito de crianças e adolescentes que eles sentem que as pessoas que trabalham nas escolas não gostam deles. Que se sentem vigiados, e não ouvidos. Muitos dos maiores problemas deles poderiam ser minimizados ou evitados se eles fossem acolhidos. É fundamental organização, limite, escuta e acolhimento.
Renata Pires
Psicopedagoga

“Recompor a aprendizagem é o nosso foco”

Volta às aulas em Fortaleza
Legenda: Agosto marca retorno de alunos das redes pública e privada à rotina de aulas
Foto: Fabiane de Paula

A Secretaria da Educação do Ceará (Seduc) afirmou, em nota, que "a rede estadual seguirá com ações em torno da recomposição de saberes", além de reforçar a formação continuada de docentes.

Outro aspecto a ser intensificado nas escolas cearenses, como informa a Pasta, são as competências socioemocionais dos estudantes, por meio do acompanhamento e da ampliação do número de psicólogos educacionais e contratação de assistentes sociais.

O Diário do Nordeste conversou também com Jefferson Maia, secretário adjunto da Educação de Fortaleza, para saber como a Capital, que tem a maior rede municipal de ensino do Ceará, deve lidar com o retorno das crianças para o 2º semestre.

Confira a entrevista:

Quais os maiores desafios da volta às aulas neste segundo semestre?

O primeiro grande desafio é mantermos em alerta os cuidados com a pandemia em si. Os números em Fortaleza vêm caindo, mas tivemos recentemente uma 4ª onda. Vamos continuar reforçando a campanha de vacinação dos alunos e mantendo a estratégia de controle e prevenção.

O outro é o que chamamos de ‘recomposição da aprendizagem’. Durante 2 anos, as crianças estudaram na modalidade remota. E mesmo a rede municipal tendo feito esforços pra garantir a aprendizagem, já diagnosticamos, em avaliações internas, que as crianças precisam de auxílio. Esse é o nosso foco agora.

"Notamos é que as crianças estavam faltando demais no 1º semestre, então fortalecemos a busca ativa. Hoje, a frequência escolar voltou ao status de antes da pandemia. Porque quando retornamos, o número era bem complicado."

E o que tem sido feito para lidar com esses gargalos de aprendizagem e de saúde mental?

Estamos ampliando nosso tempo integral, fortalecendo os programas de aprendizagem no contraturno, tudo focado em recuperar o que se perdeu ou não se consolidou durante a pandemia.

Temos também o serviço de psicologia escolar, que implantamos durante a pandemia, com 12 psicólogos. Eles atuam na rede municipal identificando demandas coletivas e individuais dos estudantes, tanto na prevenção como na intervenção mais direta.

O serviço surgiu porque percebemos que no retorno da pandemia poderíamos nos deparar com desestímulo, falta de foco e até depressão entre os estudantes, o que tem sido comum.

Os professores também precisam estar fortalecidos. De que forma eles são assistidos?

Quando a equipe de psicólogos vai à escola, não atende individualmente, trabalha a comunidade como um todo. Temos em fase de consolidação um programa em que o nosso professor tem essa atenção à saúde mental e vocal.

Nesse retorno totalmente presencial, em 2022, fomos entender como o professor e o aluno retornaram. E por isso algumas iniciativas foram possíveis de serem implementadas, como a contratação de psicólogos e estagiários de psicologia. 

Com o avanço da pobreza, o contexto socioeconômico das crianças se tornou muito mais precário. Há estratégias para cuidar das famílias e aproximá-las da escola?

Não podemos falar que num cenário trágico como a pandemia teve algo positivo, mas algumas coisas se fortaleceram. Uma delas foi a nossa aproximação com a comunidade: com toda certeza, o vínculo hoje é ainda mais forte. 

Porque durante a pandemia, adotamos estratégias para, literalmente, entrar na casa das nossas crianças, com ensino remoto, grupos de estudos, contato com os pais no dia a dia, entrega de chips com dados de internet, entrega de kits de alimentação. 

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Tudo isso aproximou a escola da comunidade, fortaleceu um vínculo fundamental. A rede municipal de ensino atende as faixas mais carentes da nossa população, essa atenção é necessária.

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