De cabras a veados: por que o Ceará clona animais e para que servem as pesquisas
Estudos para “multiplicar” os bichos impactam áreas como saúde e até meio ambiente
Criar um ser vivo idêntico a outro em laboratório pode soar fictício, mas é prática no Ceará há anos. De cabras a veados, pesquisadores cearenses replicam os animais com diversos objetivos – desde encontrar novos medicamentos até salvar espécies de extinção.
Na Universidade Estadual do Ceará (Uece), por exemplo, a preocupação é ambiental. Há cerca de 5 anos, pesquisadores do Laboratório de Fisiologia e Controle da Reprodução (LFCR) criam clones do veado-catingueiro para evitar o desaparecimento do animal.
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Vicente Freitas, professor da Faculdade de Veterinária (Favet/Uece) e pesquisador do LFCR, aponta que o animal “é o único cervídeo do Nordeste do Brasil”, e tem risco de extinção nos próximos anos devido aos impactos da ação humana.
“Embora não sendo considerado em risco de extinção agora, as diversas atividades humanas, empreendimentos imobiliários, a caça e sobretudo o tráfico de animais estão deixando essa espécie com risco de desaparecer nos próximos anos”, pontua.
O professor destaca que, de todas, o tráfico é a ação mais prejudicial. É quando “o traficante mata a mãe e prende o filhote”. Segundo Vicente, filhotes de veado-catingueiro chegam a ser anunciados em páginas na internet por até R$ 10 mil.
Devido à população diminuta de veados-catingueiros, o processo de clonagem realizado pelos estudiosos é “interespecífico”: não são utilizados óvulos do cervídeo, mas células da pele para obter o material genético, que junto a óvulos de vacas e cabras formam os embriões de forma bem sucedida.
A pesquisa é apoiada pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap) e pela Secretaria do Meio Ambiente e Mudanças do Clima (Sema), e entrará, em breve, em nova fase: a implantação dos embriões feitos em laboratório nas receptoras – ou “barrigas de aluguel”.
Como a gestação de um veado catingueiro dura 7 meses, o nosso objetivo é fazer as transferências no primeiro semestre de 2024, pra que no início do segundo semestre tenhamos os primeiros nascimentos. Não é um processo fácil, mas necessário.
O objetivo principal, reforça Vicente, “é multiplicar o número de indivíduos e aumentar a população silvestre” de veados-catingueiros. “Não queremos mantê-los em cativeiro, mas introduzi-los na natureza”, finaliza.
Produção de medicamentos
Se de um lado a clonagem visa à preservação de uma espécie e da biodiversidade do Ceará, do outro o objetivo está ligado à saúde. Na Universidade de Fortaleza, pesquisadores clonam cabras, desde 2009, para produção de biofármacos.
Leonardo Tondello, professor de Medicina Veterinária e pesquisador do Núcleo de Biologia Experimental (Nubex) da Unifor, explica que a clonagem dos caprinos “é uma ferramenta de produção” desses medicamentos, voltados tanto à saúde humana quanto à animal.
“A clonagem é uma técnica repetível, previsível. Você sabe que vai conseguir produzir os clones. Há décadas, não funcionava assim, tinha eficiência muito baixa, mas os protocolos estão muito avançados. Trabalhamos com ela como uma ferramenta”, cita.
Leonardo pontua que os biofármacos “são medicamentos que precisam de algum organismo vivo para serem produzidos, drogas altamente inteligentes e específicas, com baixíssimos riscos de efeitos colaterais”.
A clonagem permite, então, que os cientistas produzam animais geneticamente modificados, e obtenham, a partir do leite deles, um anticorpo chamado “anti-VEGF”, eficaz para reduzir o tamanho de tumores cancerígenos e inibir a multiplicação deles pelo organismo.
“Os biofármacos hoje são utilizados no tratamento das doenças mais complexas, como cânceres e doenças autoimunes. O câncer de mama, por exemplo, leva no tratamento a quimioterapia e um anticorpo monoclonal, que é um biofármaco”, frisa.
O pesquisador do Nubex afirma que alguns biofármacos ainda estão “em ambiente laboratorial”, mas que, em breve, “a pesquisa vai alcançar o desdobramento que se almeja: a conexão direta com a saúde humana e animal”.
Isso porque o projeto “Plataforma animal: uma solução para a indústria farmacêutica nacional preencher lacunas na cadeia produtiva de biofármacos” foi um dos vencedores do edital “Programa Pesquisador Empreendedor – Formação de Spin-Offs Acadêmicas”, da Funcap.
O objetivo é financiar “projetos com potencial de inserção no mercado e geração de impacto socioeconômico para o Ceará”. As “spin-offs”, explica a fundação, “são empresas que se originam nas universidades a partir de inovações resultantes de atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação que já apresentam elevado nível de maturidade tecnológica”.