Projeto de dança leva aulas de reggae ‘a dois’ e passinho do reggae para a Praia de Iracema
Idealizado pela professora Jéssica Marília Sousa, projeto Educa Reggae tem ampliado alcance do ritmo na Capital, levando música e dança para além dos bailes
Com bailes de segunda a segunda, casas de show especializadas e um jeito de dançar que é só nosso, não é exagero afirmar que Fortaleza é uma cidade apaixonada pelo reggae. Por aqui, o ritmo jamaicano começou a ganhar força entre as décadas de 80 e 90, mas foi nos anos 2000 que os clubes e bandas consagradas se estabeleceram, criando gerações de fãs cearenses.
Décadas depois, o gênero é de novo destaque na Capital, movido especialmente por projetos idealizados por coletivos de jovens regueiros, que mantêm a tradição viva sem deixar de inovar. Além dos grupos de passinho do reggae, que promovem festas, oficinas e aulões – além de conteúdos diversos nas redes sociais –, um dos grandes responsáveis pela ampliação do alcance do reggae nos últimos anos é o projeto Educa Reggae.
Idealizada pela professora de dança Jéssica Marília Sousa, de 28 anos, a iniciativa promove aulas e oficinas de reggae a dois e passinho em pontos descentralizados da Capital desde 2019, e após temporada de aulas em parceria com a Escola Porto Iracema das Artes, chegou à Ponte dos Ingleses em março deste ano.
Por lá, a professora oferece aulas de reggae a dois às segundas e quartas-feiras e de passinho do reggae às terças-feiras, sempre às 19h, pelo preço simbólico de R$ 20. Cada aula tem duração entre uma hora e meia e duas horas e costuma contar com pelo menos 15 alunos, entre iniciantes e iniciados.
A ocupação na Ponte dos Ingleses é temporária e surgiu de uma dificuldade: a falta de espaços para realizar as aulas, algo que busca apoio para conseguir. Mas, após a aceitação e aumento no número de alunos, ela estuda manter edições em praias e praças da Cidade mesmo após a chegada do sonhado espaço de dança.
“É muito legal ocupar a cidade com o reggae, as pessoas estão amando lá. É outra coisa você estar dançando, vendo a lua, sentindo o vento, se conectando”, afirma.
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Da dança de salão aos bailes de reggae
Jhessy, como é conhecida, conta que começou a se interessar pelo reggae ainda durante a faculdade de licenciatura em dança na Universidade Federal do Ceará (UFC), há cerca de sete anos.
Antes, se dedicou a danças de salão, como zouk e kizomba, mas não sentia que se encaixava ali; não via, nas marcações rígidas das coreografias e nos figurinos caros, um propósito maior. Ao se deparar com o primeiro baile de reggae da vida, decidiu que seu caminho seria outro.
“Fui entendendo a possibilidade da dança reggae, porque antes eu achava que o reggae não tinha essa possibilidade de ter uma dança a dois, de ter os passos. Quando conheci esse mundo, foi algo muito mágico, porque ali vi um lugar muito forte de humildade. A gente via pessoas dançando com os pés descalços, pessoas de periferia, de várias idades”, lembra a bailarina.
“Eu vi que lá as pessoas se conectavam de verdade, não dançavam para ser o melhor, para ser bonito, para não sei o quê. Lá, o foco não era essa estética do dançar, era mais ter a conexão. E eu fiquei com vontade de ver mais pessoas experimentando essa conexão”, completa.
Reggae como ferramenta de empoderamento
A trajetória de Jhessy como professora de reggae começou no estágio da licenciatura, em uma escola da periferia de Fortaleza, onde ministrava aulas de artes para crianças do Ensino Fundamental I e II. Aos poucos, entre as atividades, foi introduzindo passos de dança e quebrando preconceitos que alguns dos pequenos tinham sobre o ritmo musical.
Jhessy conta que, além do encantamento com o ritmo, percebeu que as crianças começaram a se sentir representadas pela cultura reggae.
Diferentemente do balé e de outras danças, ali os passos eram fáceis de assimilar e se faziam presentes na residência de muitas delas. Além disso, a professora era uma mulher jovem, “usando Kenner, com cabelo enrolado”. “Com isso, eles já se sentiam totalmente representados. Já criava de cara uma conexão”, lembra a professora, orgulhosa.
Uma das dificuldades de Jhessy foi desvencilhar o ritmo musical dos estereótipos que ligam o reggae ao uso de drogas – algo que se repete com diversos outros gêneros musicais de origem negra, como o funk.
“O lugar da arte para a criança é muito o lugar do direito a lazer. Então, tentei pegar esse assunto, que eles já tinham um pré-julgamento, e levar para um outro universo, o universo da cultura”, explica. “Tentava falar coisas como ‘a gente está em busca do quê? Amor, respeito, liberdade, não é isso? Pois as músicas de reggae falam exatamente sobre isso’”, completa.
Para a professora, as aulas de reggae também funcionam, especialmente entre crianças e jovens, como uma ferramenta de cuidado com a saúde mental. “A dança é justamente esse lugar em que você não pode nem consegue pensar em mais nada, porque você tem que ter, antes de mais nada, a conexão consigo mesmo”, pontua.
“O meu foco não é você sair da aula dançando o mais belo de todos. O foco é você se sentir bem e descobrir qual a sua dança, se prefere dançar sozinho, se prefere dançar com outra pessoa, se prefere dançar em coletivo com o passinho, que tem uma coreografia, uma energia legal, divertida”, completa.
Reggae jamaicano com jeito de forró cearense
Nas aulas na Praia de Iracema, hoje focada em alunos adultos, a professora busca passar os mesmos valores da reggae music. No início de cada aula, Jhessy abre uma roda de conversa para explicar brevemente a importância do reggae e como ele se configura em Fortaleza, nossas particularidades e influências.
“No Maranhão, eles têm um jeitinho em que eles mexem mais as pernas. O nosso reggae é totalmente parecido com o forró, algo que é muito natural nosso, aqui do Ceará. A gente tem um gingadinho que puxa mais o quadril, porque a gente tem um quadril super sinuoso”, explica. “No Maranhão, por exemplo, pouco se usa o quadril, usa-se mais as pernas. No Pará o reggae também é outra coisa” completa.
No entanto, a liberdade entoada nos principais hinos do reggae também se demonstra na forma como ele é dançado. E, apesar das influências do reggae jamaicano e do jeitinho “forrozeado” de dançar do cearense, há outros fatores que influem nos novos tipos de dançar reggae, como a constante produção de conteúdo de coreografias nas redes sociais – principalmente de passinho – e a mistura com outros gêneros.
“Ao longo dos anos, reggae tem mudado demais, ficando cada vez mais elaborado, porque as pessoas estão começando a criar novos passos. O reggae, hoje em dia, se você passar dois meses sem ir [aos bailes], já vai ter mudado”, afirma.
Além de dar aulas na Praia de Iracema e oficinas em outros espaços de Fortaleza, como equipamentos públicos de cultura, Jhessy tem ajudado a divulgar o nosso jeitinho de dançar reggae para, de certo modo, eternizá-lo. Nos últimos dois anos, o Educa Reggae já realizou oficinas em diversos lugares do País, como Pipa (RN), Rio de Janeiro (RJ) e São Paulo (SP).
Aos 78 anos, aposentado encontra tranquilidade e novas amizades no reggae
Entre os alunos assíduos das aulas na Ponte dos Ingleses está Geraldo Soares da Costa, 78, brasiliense aposentado que mora em Fortaleza há quase 20 anos. Apaixonado pela dança desde a adolescência, ao longo dos anos frequentou bailes de bolero, rodas de samba e aulas de lambada e zouk, mas foi no reggae que, há pouco mais de um ano, encontrou a tranquilidade que procurava.
“Quando cheguei aqui, fui fazer aulas de dança nas academias e descobri que eu não sabia dançar mais nada”, brinca. As marcações rígidas das danças de salão o atrapalhavam e tiravam um pouco do prazer que antes encontrava nos bailes, mas uma oficina do Educa Reggae o mostrou uma nova forma de se relacionar com a dança.
“Me identifico muito com o reggae, porque na dança a dois é tudo devagarzinho, não tem aquela agitação do zouk, da lambada. É tudo bem tranquilinho”, brinca.
Frequentador das aulas de Jéssica desde o ano passado, Geraldo conta que a dança pertinho da praia tem sido ainda mais especial, pelo visual e clima agradável do local. Mas, para ele, o aspecto mais importante vai muito além do espaço físico onde pratica os passos de dança.
“Nas aulas, a gente conhece pessoas. No último fim de semana mesmo, o pessoal alugou uma casa na praia, fui com eles e fiquei conhecendo mais gente. O meu negócio é colecionar amizades”, comenta.
Além das aulas de reggae a dois às segundas e quartas-feiras, Geraldo conta que mantém a agenda cheia, entre trabalhos pontuais na área de ensino de idiomas e a busca por novos pontos para dançar na Capital, como rodas de samba – e aconselha que outras pessoas de sua faixa etária procurem atividades de lazer para preencher suas próprias agendas.
“Às vezes, o pessoal fica muito travado para começar as coisas, sabe? As pessoas dizem que não tem mais idade para isso ou não sei lá o quê… Fica rotulando tudo, aí não sai de casa, não faz coisas novas, não aceita convites. Eu já faço o contrário: a pessoa me convida, eu vou. Nem que seja uma vez só, mas eu vou”, conclui.
Além do “dois pra lá, dois pra cá”
Ao contrário de seu Geraldo, a professora Ana Geny Costa Cipriano, 47, e o esposo, o realizador audiovisual Alex Nunes, 44, sempre tiveram o reggae como ritmo musical preferido. A paixão antiga foi intensificada por um fato especial: foi num dos bailes da Capital, na Praia do Futuro, há 16 anos, que o casal se conheceu. Desde então, frequentam festas de reggae em diversos lugares de Fortaleza, sempre juntos.
Apesar da dança a dois já fazer parte do DNA do casal – que, segundo Ana, já tem uma “malemolência” toda própria –, os dois nunca tinham feito uma aula de reggae até a última segunda-feira (21), na Ponte dos Ingleses. Por dançarem de forma intuitiva, natural, a ideia surgiu como modo de aprimorar a dança e conhecer novos passos.
“São novos conhecimentos nessa nova fomentação da cultura do reggae, que tá bem forte em Fortaleza, e vai além de ir pra noite”, afirma Ana, que vê o reggae como um “companheiro fiel” da relação com o marido.
“A aula trouxe um autocontrole do nosso corpo, do ritmo, de ouvir a música e tentar ir no ritmo, porque tem músicas que são mais agitadas”, comenta.
Para Alex, a oportunidade veio para colocar em prática os conhecimentos que ambos já tinham sobre musicalidade e dança, mas de modo a ampliar o repertório. Ele, que também é músico, conta que sempre acompanhou o movimento do reggae maranhense, e tem se voltado mais para as práticas típicas da capital cearense, com o reggae a dois.
“Nunca tive essa aptidão de dançar junto assim. Com ela, comecei a dançar junto, mas me confundia um pouco o passo da lambada, que dançava na juventude, e os passos do reggae”, explica.
Nas aulas, Jéssica também demonstra as aproximações e as diferenças entre o reggae a dois e outros ritmos, como o forró, para desconstruir alguns conceitos de dança já enraizados e facilitar novos passos. “Na minha cabeça, era o ‘dois pra lá, dois pra cá’. Com a aula, a gente cria uma noção melhor dos movimentos”, pontua Alex. “Agora, acho que vou pisar menos no pé dela”, ri.
Serviço
Educa Reggae
Onde: Ponte dos Ingleses (Praia de Iracema)
Quando: Aulas às segundas (reggae a dois iniciante), terças (reggae do passinho) e quartas-feiras (reggae a dois iniciado)
Horário: 19h às 20h30
Quanto: R$ 20 por aula
Mais informações: @educareggae