Pacarrete: filme cearense gravado em Russas emociona ao falar de sonhos e paixão pelas artes

Competindo com mais seis produções no 47º Festival de Cinema de Gramado, filme dirigido pelo cearense Allan Deberton é uma comovente obra para tempos marcados pela ignorância contra a arte brasileira

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@diariodonordeste.com.br
Legenda: A atriz paraibana Marcélia Cartaxo dá vida à protagonista Pacarrete

Após a estreia internacional no 22º Festival Internacional de Cinema de Xangai, o longa "Pacarrete" finalmente teve sua primeira exibição nacional. O feito aconteceu na última noite de terça-feira (20) e teve como cenário a Serra Gaúcha. A obra, dirigida pelo cearense Allan Deberton, disputa o prêmio de Melhor Longa Brasileiro no 47º Festival de Cinema de Gramado.

Estrelada por Marcélia Cartaxo ("A Hora da Estrela", "O Céu de Suely"), a obra é baseada em fatos reais e investe na existência de uma icônica moradora do Município de Russas, localizado a 165 km da Capital. A sessão reuniu diretor, elenco, equipe e foi marcada por uma reação tocante da plateia. O trabalho foi aplaudido de pé no Palácio dos Festivais, palco principal do evento.

Os cearenses terão a chance de acompanhar a produção no próximo Cine Ceará, evento a ser realizado de 30 de agosto a 6 de setembro.

O filme será exibido no dia 6 de setembro, no Cineteatro São Luiz. Trata-se de uma sessão imperdível e a chance do público local conferir uma obra audiovisual realizada totalmente no Estado do Ceará.

A memorável participação em Gramado reuniu também a indignação. Trabalhadores da cultura, a equipe criticou a atual política do Governo Federal destinada à área. O desmonte do Ministério da Cultura e as declarações em prol da censura por parte do presidente, Jair Bolsonaro, foram algumas das questões apontadas no Festival.

Completa o triste momento a série de ataques desferidos pelo mandatário a séries de temática LGBT pré-selecionadas a um edital para TVs públicas. Na quarta-feira (21), o Governo decidiu suspender o processo de seleção, via portaria assinada pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra, e publicada no Diário Oficial da União (DOU).

Assim, "Pacarrete" ganha ainda mais relevância e brilho pelo caráter maduro e necessário que apresenta ao público. Ao iluminar temas como sanidade mental, luta por sonhos e paixão pelas artes, o longa já nasce como um relevante documento histórico de embate ao preconceito.

Amor incondicional

A arte na vida de Pacarrete é tão preciosa quanto o próprio ar que ela respira. A partir do balé, convenciona todo um mundo intimista e alimentado pela delicadeza. Escuta música clássica em velhos LPs, se mune do francês no momento de diálogo com os convivas e possui a ideia fixa de montar uma grande apresentação artística na festa de aniversário da cidade na qual reside.

No entanto, nada é fácil no cotidiano desta senhora espevitada. Devido aos gostos refinados e exóticos que possui, aos olhos de uma maioria, trata-se de mais uma "doida varrida". Assim, é importunada por vizinhos. Moleques da rua infernizam a campainha da casa, bebuns da área lhe assediam.

Diante de tal cenário, o corpo frágil opta por dançar. Entregar os pontos, jamais. A língua é ferina e não se curva aos detratores.

Encara a realidade bem vestida, circula pelas ruas do Município tal qual estivesse no caminho de uma grande ópera. Em casa, cuida da irmã doente, Chiquinha (Zezita Matos). Maria (Soia Lira) é outro braço amigo e às vezes desafeto. Falta falar do compreensível e amável Miguel (João Miguel), dono de um bar e mercearia visitada às manhãs pela protagonista. Lá, compra jornais. Deseja se informar da cotação do euro. Isso mesmo.

Este é o universo guiado por Allan Deberton. É dele também o roteiro escrito em comunhão com André Araújo, Samuel Brasileiro e Natália Maia. A história reflete as memórias afetivas do realizador, da Russas natal e dos 'causos' de uma habitante nada usual. Das coincidências do destino, essa testemunha ocular também seria um apaixonado pela cultura. A sétima arte cuidou deste reencontro.

Nos primeiros minutos de projeção, Pacarrete dança enquanto varre a calçada. A cena é fotografada em tons solares. Existe otimismo nas bochechas rosadas da sexagenária interpretada por Marcélia Cartaxo. O apelido, defende a protagonista, remete à margarida em francês. É chique.

Legenda: Pacarrete dança enquanto varre a calçada

Enquanto isso, ensaia passos para a futura apresentação. Desenha o imponente vestido com minúcia. Perde horas tentando convencer os gestores locais a incluir sua arte na festa de 200 anos da cidade. Pacarrete incomoda. Leva chá de cadeira. Solta impropérios. Resiste.

Na primeira parte da obra, Deberton apresenta uma mulher em constante embate com a decadência. Evidencia uma personagem intimamente incomodada com o desprezo dos outros à cultura. Mas "Pacarrete é forte como o mandacaru", como a mesma posiciona firme. Sua batalha solitária e por vezes esquisita vai, passo a passo, dominando o espectador.

Essa senhora já teve dias de glória, foi importante. Era professora na Capital. Aprendeu a cantar, dançar e apreciar as coisas do estrangeiro. Hoje, aposentada, resta o conforto e apego do passado. Cerca-se de joias, bibelôs, fitas VHS de balé e nutre uma atenção exacerbada pela limpeza da calçada de casa. No entanto, habita o desejo de ainda ter voz. Autonomia. Do dividir com o próximo algo tão íntimo.

Existem amor e esperança. Miguel é cavalheiro, bem diferente das cascas grossas que habitam na região. O comerciante vivido por João Miguel é pintado em cores sutis. É amoroso com a militância solitária da protagonista.

Legenda: João Miguel interpreta Miguel

Entretanto, o mundo de Pacarrete é centrado na relação das três mulheres principais. São elas que conduzem e permitem ao espectador codificar as motivações da protagonista. O trio até pode enfrentar dilemas banais da vida. Estranhamente, mesmo com embates, estão unidas. São companheiras.

Nesse serviço de primeiro encontro com o mundo da idosa dançarina, o humor é um recurso utilizado por Deberton. O gestual de Pacarrete, a voz, o caminhar, nos dá a impressão de que ela vive numa constante interpretação de si. Como uma atriz que fala constantemente para uma plateia vazia. Pode até parecer caricatural. Podia, felizmente não é. Entendemos no decorrer da obra, sem entregar demais da trama, tratar-se de uma defesa. Lembro o quanto isso é algo comum em nossas relações. Afinal, interpretamos a todo instante no mundo real com o intuito de nos beneficiarmos de algo.

A possível loucura da bailarina passa a ser nossa também.

A trilha sonora de Fred Silveira incrivelmente cresce e afaga o interesse pelas desventuras da protagonista. Sutil, se arma de temas montados ao acordeom que unem música clássica e sensações culturalmente ligadas à canção francesa. É viva e também personagem.

Hora da Estrela

"Pacarrete" é de Marcélia Cartaxo. Domina a tela na mesma intensidade quando esbraveja ou se prende ao silêncio. É fúria e dor. Paixão e tristeza. Delicada, poderosa e comovente. O domínio do corpo, do olhar, nos conforta e desgarra. Estamos tão imersos que, ao fim da obra, estamos órfãos de sua presença.

Outra força em cena é a Chiquinha, de Zezita Matos. Seu sofrimento físico e a preocupação com o estado mental da irmã são dilacerantes. A cena na qual acorda de um pesadelo é cortante. Soia Lira, por sua vez, também permite que Maria evolua na história. Mesmo com poucos elementos em mãos para isso.

Deberton divide uma fábula contra a ignorância. Sua "Pacarrete" denuncia o quanto a truculência desferida aos que se alimentam da arte é um caminho de retrocesso capaz de atingir a todos dentro da sociedade. A decadência dos valores, dos afetos, reflete a negação da história e do conhecimento. A obra resulta do esforço e empatia de toda uma equipe, de toda uma indústria, da responsabilidade, angústia e valentia dos trabalhadores da cultura ligados ao audiovisual brasileiro.

Sem comparações diretas, não é o interesse aqui, "Pacarrete" até nos lembra o tapa na cara desferido por Billy Wilder (1906-2002) no irretocável "Crepúsculo dos Deuses" (1950). O primeiro esgarça decadência, loucura e preconceito. Assuntos também explorados por Deberton. Entretanto, estamos em Russas, Nordeste, Brasil, e o soco no estômago, ao fim da exibição, doeu bem mais. A desventura da heroína é muito mais comum a nós do que imaginamos. Trata-se de um filme denúncia dos tempos sombrios no qual estamos atolados.

*O repórter viajou a convite do Festival de Cinema de Gramado.

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