Oito artistas cearenses expõem obras na Espanha sobre gênero e sexualidade; conheça trabalhos

No mês do Orgulho LGBTQIAP+, produções ganham projeção internacional em linguagens como fotografia, videoarte e objetos híbridos em tecido

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Cauê Henrique Ayo – nome artístico, caeu – foi selecionado para a mostra com o tríptico fotográfico Cyborgue, sobre gênero, fármacos e a relação entre máquina e corpo
Foto: Divulgação

Em 2021, o Brasil registrou 300 ocorrências de mortes violentas envolvendo pessoas LGBTQIAP+. O número é 8% maior em relação ao ano anterior, conforme relatório do Grupo Gay da Bahia. Uma morte a cada 29 horas. 35% dos casos na região Nordeste.

Mas este não é um texto sobre a dor. Falemos sobre modos de driblar a aflição. Instrumento poderoso, a arte se inscreve nesse contexto com força e ânimo. Prova disso é a presença de cearenses do outro lado do Atlântico para comprovar o alcance do talento. De 18 de junho a 25 de julho, oito nomes de nossa terra terão trabalhos expostos na Espanha.

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As obras integram a exposição “Imaginários Queer”, em cartaz no Museo de Bellas Artes de Xàtiva, localizado na província de Valência. A mostra integra a edição 2022 do panorama artístico presencial do Museari Quer Art – iniciativa online internacional sem fins lucrativos, vinculado ao Icom Unesco. Desde 2015, promove a educação artística e histórica como instrumentos para defesa dos Direitos Humanos, sobretudo ligados à diversidade sexual.

Anualmente, o projeto faz uma exposição presencial dos 12 últimos artistas a exporem no museu online. Os suportes utilizados por nossos conterrâneos envolvem fotografia, videoarte, videoperformance e objetos híbridos em tecido. Por aqui, tudo acontece com apoio da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE) por meio do Porto Dragão e do Hub Cultural.

Legenda: Obra “Sutura sobre fotos de criança trans(viada)”, de Aires
Foto: Divulgação

De acordo com Waldírio Castro, um dos curadores da ação, a exposição tem vários objetivos – alguns em ressonância ao projeto do Museari Queer Art. Entre eles, o pensamento acerca das possibilidades de pensar a arte a partir de outros corpos e as respectivas dissidências de gênero e sexualidade.

“Outro ponto é a internacionalização da produção artística do Ceará, principalmente no recorte da dissidência de Gênero e Sexualidade. A curadoria dos trabalhos se deu em uma perspectiva centrada na diferença. Nos interessava pensar esses artistas queer a partir das questões que poderiam ser abordadas e debatidas por meio das obras”.

Máquina e corpo

Jornalista de formação, artista visual e escritor, Cauê Henrique Ayo – nome artístico, caeu – foi selecionado para a mostra com o tríptico fotográfico Cyborgue. O trabalho integra um processo de auto pesquisa e estudo de visualidades. É sobre gênero, fármacos e a relação entre máquina e corpo. “Os meninos se interessaram e a gente se organizou com ele”, diz.

Para o criador de 23 anos – nascido em Fortaleza, mas residente no Crato há uma década – sempre existem dificuldades de se posicionar enquanto artista quando os limites ultrapassam o Ceará. Sendo queer, então, o muro se agiganta cada vez mais

“Mas também acho que a arte queer tem possibilitado expansões para a arte cearense. Talvez a temática rompa aquela ideia de ‘artista local’ que projetam sobre nós, do Nordeste, em geral”. Além de Cauê, compõem a Imaginários Queer: Aires, Filipe Alves, João Paulo Lima, Marília Oliveira, Rhamon Matarazzo e Terroristas Del Amor. 

Legenda: "A arte queer e a exposição têm essa potência enorme", observa Cauê Henrique Ayo sobre o próprio trabalho e o dos colegas da mostra
Foto: Divulgação

“Ainda é muito doido pra mim, minha arte sair do interior do Ceará pra Espanha”, divide. No Mês do Orgulho LGBTQIAP+, a percepção ganha nova leitura. “O mês de junho ainda é uma época em disputa. Muitas vezes ficamos entre empresas e propagandas que, visando só o lucro, não dão conta das nossas existências. Mas a arte tem esse quê a mais, né? Posso estar falando de uma especificidade minha, mas por aí existem vários pra se ver naquilo que faço. A arte queer e a exposição têm essa potência enorme”.

Que o diga Eduardo Bruno. Outro curador da exposição, o artista e doutorando em Artes pela Universidade Federal do Pará (UFPA) considera que pensar a relevância de um mês para o Orgulho LGBTQIAP+ é entender como esse período pode operar fora da lógica do capitalismo

Legenda: Trabalho “Nosso Senhor dos Des-votos”, de Filipe Alves
Foto: Divulgação

O Imaginários Queer é inventado a partir de uma LGBTQIAP+centralidade. “Ou seja: desde a curadoria nacional e a curadoria do Museria Queer Art, até es artistas, todes são corpos dissidentes de gênero e sexualidade”.

O projeto, assim, se apresenta como criação de uma rede de resistência, apoio e formulação de diferenças, sem abandonar a multiplicidade. Ao contrário: investe-se nelas para destacar a fragilidade da norma que impõe uma cisheteronormatividade compulsória sobre todos os corpos, desde o nascimento até comerciais de produtos.

Acessar a cidade e a sexualidade

Diretrizes que perpassam a vivência de Marília Oliveira. Artista da imagem e professora, ela catalogou 153 situações de assédio nos espaços públicos e privados pelos quais passou. “Em seis meses, meu corpo foi assediado 153 vezes. Assim como o meu, o de quantas outras?”, provoca. A reflexão foi base de “Remissão”, um trabalho de fotoperformance também presente na Imaginários Queer.

Ele mescla catalogação simbólica e gesto performático. Para cada assédio, Marília levou para casa (e para a galeria) uma pedra. Assim, uma montanha delas se avoluma pelo chão e sobre o corpo nu da artista – desvelado à força, desnudado de assalto, em dias comuns. 

“Com as pedras, encho mochilas, crio obstáculos no chão de granito, monto jogo de xadrez em que as damas estão juntas. As pedras se estendem para pregos, espetos de carne, vestido de noiva – tudo que pesa e atravessa nosso direito de acesso à cidade e à nossa própria sexualidade”.

Legenda: "Remissão", fotoperformance de Marília Oliveira presente na mostra
Foto: Divulgação

Conforme avalia, somos um dos países que mais mata pessoas LGBTQIAP+ no mundo. Assim, toda possibilidade de proteção da memória e de sistematização dos conhecimentos e criações desse público é ação importante de fortalecimento da comunidade. “Celebrar que estamos vivas, que seguimos criando, que encontramos nas dobras estéticas das nossas vidas um jeito de nos protegermos, nos reconhecermos e estarmos próximas das nossas”, vibra.

“Precisamos estar mais juntos, formar e fortalecer nossas redes para que consigamos projetar nosso trabalho e fazê-lo acontecer. Além disso, acho que é importante lembrarmos que a arte é também um trabalho que precisa ser remunerado, e que cachês, bolsas de estudos e subsídios diversos para a criação artística precisam se multiplicar”.

Legenda: “Devotees” é um ensaio de João Paulo Lima sobre o corpo e os desejos
Foto: Divulgação

Waldírio Castro festeja o fato de este ser o primeiro trabalho totalmente internacional da Plataforma Imaginários. Criada em 2018, ela vem produzindo o festival de performance Imaginários Urbanos – que, neste ano, estará na quarta edição – além da publicação de livros e outros eventos de arte contemporânea, sobretudo produzidos no Nordeste brasileiro. 

“Como nossa primeira experiência internacional de curadoria, vislumbramos que a experiência será extremamente enriquecedora, além de produzir um evento local que já tenha sua primeira edição em um cenário internacional”. Driblar a aflição.


 > Conheça cada um dos trabalhos, descritos pelos próprios artistas

“Sutura sobre fotos de criança trans(viada)”, de Aires

Impressão em papel fotográfico com costura, 2022. A obra começa no Seminário Imaginação e Memória na Arte Contemporânea, feito em parceria com o MAC a partir da interlocução das pesquisadoras Rodrigo Lopes e Lucas de Lacerda. Durante o seminário, a partir de uma provocação, revisitei fotos da minha infância. Minha mãe me contou na época que comecei a entender a minha sexualidade que havia rasgado fotos que eu tinha uma performatividade feminina. Nesse trabalho, escolho fotos que ainda consigo ver essa performatividade. A partir disso, realizo uma investigação com quatro fotos de infância. Para a exposição, a obra se dá por meio de uma impressão da imagem e costura à mão do rasgo que realizo nela.

“Cyborgue”, de caeu

Cyborgue é parte de um auto-estudo das possibilidades do corpo e da relação implícita entre os processos de construção de gênero e a montagem de um ser envolvido na relação entre fármaco, acessórios, próteses e maquinários. A oleosidade dos hormônios se confunde com os fluidos que giram engrenagens e, na possibilidade de si, o eu emerge da transgressão das ferramentas de conformidade (hormônio, roupa, etc). Cyborgue é um processo visual das experimentações vivas e dos corpos projetados. Tríptico fotográfico com edição digital. Manuseio de agulhas, ampolas, hormônios e sangue.

“Nosso Senhor dos Des-votos”, de Filipe Alves

Trabalho que apresenta o resultado de um processo criativo desenvolvido na residência em  performance do Porto Dragão (2021). No estandarte, é apresentado o santo das graças não-atendidas criado pelo artista, e orações são distribuídas aos moradores de uma rua da cidade de Nova Olinda-CE. Nesta criação, Filipe Alves segue em procissão pelas causas não-escutadas, representadas pelos Des-votos – reivindicação dos pedidos não-realizados, o contrário do Ex-voto, que traz um  agradecimento ou pedido para a graça alcançada. 

“Devotees”, de João Paulo Lima

“Devotees” é um ensaio sobre o corpo e seus desejos. O direito ao corpo, ao sexo, à sexualidade. Todo corpo é desejado e desejante. As cenas se desenrolam dentro de clichês e ousadias de um corpo def, que se apodera de fetiches sobre corpos não-hegemônicos e compõe partituras de movimentos que incitam ou rompem com os paradigmas de corpo e desejo.

“Remissão”, de Marília Oliveira

De janeiro a junho de 2016 cataloguei 153 situações de assédio nos espaços públicos e privados pelos quais passei. Em seis meses, meu corpo foi assediado 153 vezes – assim como o meu, o de quantas outras?. Com isto, me propus a um trabalho que mescla catalogação simbólica e gesto performático: para cada assédio levei para casa (e para a galeria) uma pedra. Uma montanha delas se avoluma pelo chão e sobre meu corpo nu, desvelado à força, desnudado de assalto, em dias comuns. Com elas encho mochilas, crio obstáculos no chão de granito, monto jogo de xadrez em que as damas estão juntas. As pedras se estendem para pregos, espetos de carne, vestido de noiva. Tudo que pesa e atravessa nosso direito de acesso à cidade e à nossa própria sexualidade.

“Paz no futuro e glória no passado”, de Rhamon Matarazzo

O processo de criação se deu a partir do momento em que vi meu corpo como alvo da politicagem brasileira. Desenvolvo, desde 2017, uma pesquisa voltada em teatro sobre HIV/AIDS, me colocando enquanto uma pessoa vivendo com HIV. E me vi extremamente vulnerável com a imunidade um pouco baixa, vivendo duas pandemias  ao mesmo tempo. Por causa da irresponsabilidade dos governantes desse país, vi vários colegas meus indo embora sem ter a possibilidade de falar. Foram silenciados para sempre. Passei a refletir sobre o que eu poderia criar cenicamente pra todo esse caos que estamos vivendo. Então lembrei que um de nossos símbolos é o nosso hino nacional. Mas como é que um brasileiro vai cantar o seu próprio hino com os pulmões cheios de líquido? Como ter imunidade suficiente para sobreviver ao HIV, a AIDS, a Covid 19 e ao fascismo? Esse trabalho é uma crítica à atual conjuntura do governo brasileiro. 

“terraaterra”, de Terroristas Del Amor

Como contra-atacar uma cidade que é tão violenta com nossos corpos? Como desmoronar a cidade e viver em suas ruínas? Como criar novos países? A partir de memórias e simbologias, as artistas constroem bandeiras, colocando em prática a criação de um novo lugar. Um lugar seguro, um futuro onde todas nós somos possíveis. Um projeto de reconstrução feito em conjunto, a partir das suas memórias.

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