Maternidade dupla: da relação entre duas mulheres nascem famílias que revolucionam pelo amor
Experiências situam carinhos, cuidados e desafios de maternar em par
“Amo minhas mamães”, exclama Maria Flor Patricio Sales Cardoso Marques. Tem três anos de idade. Gosta de declarar esse amor. Quando o faz – e é sempre – ergue os bracinhos e abraça a família. As mães a envolvem em sinal de carinho e força. Escutá-la assim, plena de aconchego, é motivo para seguir lutando. Esticar o tempo da beleza.
Maria Flor é filha da artista visual, designer e arquiteta Joana Cardoso e da médica humanista, ginecologista e obstetra Luciana Patrício. Juntas há 10 anos e casadas em cartório há sete, elas exercem a dupla maternidade desde 2018. Foi quando o choro de Flor irrompeu anunciando vida. “É um mergulho profundo a chegada de um pequeno ser”, situa Joana.
No caso de famílias com essa configuração, os sentimentos se misturam e confundem. A ansiedade, dizem as mamães, é gigante. Os preconceitos sociais também, iniciados muito antes da concepção da criança. Atravessam desde o casamento em cartório – condição para o casal estar apto a registrar o rebento no nome de duas mães. No Ceará, a primeira conquista judicial validando a dupla maternidade ocorreu somente em maio de 2019. Avanço e esforço.
“Toda hora é preciso ajustar formulários arcaicos porque tudo é feito para casais héteros. Até para o registro de nascimento da nossa filha são necessários documentos oficiais de laboratórios”. No hospital e em outros ambientes, a mesma cartilha: o casal está sempre explicando que não existe pai naquele contexto, e sim um doador. “São pequenas grandes lutas e resistências”.
Conceber Maria Flor também foi complexo. Ocorreu quando o casal cearense ainda residia em São Paulo. Elas fizeram tratamento de fertilização in vitro (FIV) pela USP Ribeirão Preto. Na ocasião, Luciana era residente de Ginecologia e Obstetrícia na universidade – referência no País de tratamento para FIV. Ainda assim, o processo foi longo. Muitos hormônios e tentativas. Seis, no total. E então a luz. A Flor.
“Na última, colocamos dois óvulos – um meu e um da Lu – e chegamos na nossa filha”, divide Joana. “Só quem vive a jornada de tratamentos de fertilização sabe como é difícil a caminhada. Pra duas mulheres, então… Foi uma grande odisseia de muitos desafios”.
Rotina de malabarismos
A aventura continua. O cotidiano de Joana, Luciana e Maria Flor é um enorme trabalho em equipe. As mamães ajustam rotinas, planejamentos e compromissos semanalmente para dar conta de tudo. Hoje em Fortaleza, o casal cuidou da bebê sem rede de apoio enquanto morava na capital paulista.
“Sempre foi um grande malabarismo. A Flor cresceu indo pra exposições de arte e pro ateliê comigo, e indo trabalhar no consultório com a mãe Lu. Éramos apenas nós três e uma grande metrópole. A gente colocava a Flor na mochila e levava pra onde ia”, ri Joana.
Sobreviveram, exaustas. Não é fácil uma rotina 24 horas no ar, mantendo a casa e os filhos – trabalho que, segundo a artista, a sociedade patriarcal não valoriza. Assim, elas decidiram retornar para Fortaleza antes da pandemia de Covid-19. Em solo cearense, a família é gigante e a rede de apoio se fortalece.
Outros ares vieram. A própria relação conjugal de Joana e Luciana foi modificada devido à presença da filha. Antes da criança, a vida das duas sempre foi itinerante, por exemplo. O fato de duas mães cuidarem da mesma pessoa promoveu estabilização geográfica, multiplicação de conversas, estabelecimento de rotinas.
Conforme Joana, a fase do puerpério – em média um ano ou mais após o nascimento do bebê – deve ser observada com carinho e cuidado. Muita coisa acontece no corpo da mulher que virou mãe (gerou) e na vida da parceira. "Recebi dois conselhos super importantes nessa fase. Um, inclusive, antes da Flor nascer: se curtam, se divirtam juntas, façam uma viagem, dancem. Quando forem uma família, os primeiros anos serão os mais puxados”.
A segunda dica foi: quando o bebê chegar, as atenções e cuidados também devem ser direcionados a Luciana, pois geralmente as pessoas só tem olhos para a criança e invizibilizam a mãe. “Nós duas tivemos puerpérios diferentes. Não vou romantizar, foi bem difícil. Fico imaginando como seria para uma mãe solo (que existem muitas). A conexão do casal é muito importante, entre conversas e parcerias. Feito num time”, vibra.
Companheirismo capaz de transpor discriminações em nome do amor. Joana, Luciana e Maria Flor estão entre as mais de 80 mil famílias homoafetivas existentes e formalizadas no País, segundo dados da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg). Lares que, apesar dos retrocessos, estão resistindo e lutando pelo direito de ser.
“A sociedade brasileira é arcaica e machista. Os abismos são gigantes. Sempre questionam sobre como a Flor cresceria sem uma presença paterna, ou quem é a mãe de verdade (quem gerou). São muitos desafios, é difícil de listar. Só quem passa vive. Nosso sonho é um mundo mais justo, precisamos evoluir muito como nos outros países. Respeitar as mulheres e seus direitos. Sem preconceitos, com mais educação e cultura”.
Adotar o amor
O desejo ergue igual bandeira na vida de Andrea Peixoto, Patrícia Groke e Maria Júlia. Esta é filha das duas primeiras, dentistas e empresárias cearenses. É também milagre: desde que iniciaram o relacionamento, Andrea e Patrícia pensavam em ser mães. A vinda da criança, hoje com cinco anos, representou bênção.
“Há oito anos nos casamos e iniciamos um processo de inseminação artificial para tentarmos conceber. Porém, as várias tentativas foram frustradas. Desde sempre também pensávamos na possibilidade de adoção. Isso nunca foi um problema para nós, pelo contrário”, explica Andrea. Não à toa, o casal estava na fila há tempos quando recebeu a notícia: uma pessoa ia dar à luz a uma menina, porém gostaria de dá-la em adoção.
Maria Júlia chegou feito farol, para iluminar e preencher de alegria o cotidiano das duas companheiras. “Graças a Deus, tudo deu muito certo para nós. A ansiedade é sempre muito grande. Compramos o enxoval com muita antecedência, já que não sabíamos quando ficaríamos grávidas ou quando adotaríamos”.
Mas o medo de nada ocorrer conforme o previsto também afligiu o casal. No processo de fertilização, “os hormônios eram de enlouquecer”. O que nunca as angustiou foi a dúvida se seriam ou não mães. “Isso já era uma certeza para nós. O sentimento de amor incondicional já existia. Isso seria como carimbar a instituição da nossa família”.
Sentimento que cresce à medida que os direitos se concretizam. Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram o aumento do índice de casamentos homoafetivos no País. Em 2018, o crescimento foi de mais de 61%. Já em 2019, o índice subiu 35% em relação ao ano anterior.
Até hoje, Andrea, Patrícia e Maria Júlia nunca sofreram constrangimentos ou qualquer tipo de preconceito. Mas é bem claro que, quando se decide formar uma família assim – ter um filho com duas mães na certidão de nascimento – é necessário disposição e força para enfrentar qualquer desafio. “Não tem como esconder ou voltar atrás”, resume Andrea.
Fortalecer o orgulho
O esforço, além de cultivar ternura, igualmente empodera Maria Júlia. É que ela precisa ter coragem para enfrentar o que vier pela frente – seja o que for. O convívio com famílias iguais ou semelhantes a da criança, na visão das mães, auxilia na compreensão de que o lar formado por elas é “normal”.
“Nosso dia a dia é muito natural. Não existe, por exemplo, uma divisão de tarefas. Sempre que possível, as duas vamos deixá-la na escola. O restante das atividades, assumimos por aptidão”, conta Andrea. Se for para desenhar, esta assume o leme; caso seja para algum tipo de jogo, Patrícia comanda. Entre lápis e joysticks, sempre juntas.
No momento, Andrea e Patrícia não pensam em adotar mais filhos. Gostam das coisas como estão. Há um esforço diário de mostrar à Maria Júlia que o amor é lindo e sagrado. Amor é a plenitude de ser mãe sendo mãe em duas.
“Para mim, ser mãe é algo que não tem como pôr em palavras. É a representação do amor mais profundo e verdadeiro. Quando começamos a ver aquele serzinho crescendo e reproduzindo palavras, frases e valores que nós ensinamos, é uma emoção muito forte. E ouvir um ‘eu te amo’ tão profundamente genuíno é a maior forma de amor que podemos receber. Partilhar a criação com outra mãe é ainda mais fantástico”, celebra a empresária.
Para Joana Cardoso, maternar é ser espelho e estar constantemente vigilante. Resistir diariamente ao patriarcado e ter tripla jornada. O mundo não espera e nem valoriza o ser mãe como trabalho. Não entende que gerar, nutrir e criar são funções essenciais (e árduas) para perpetuar a humanidade de forma digna e carinhosa.
“Quando falamos em dupla maternidade, o apagamento é ainda maior, pois não existe reconhecimento de um dos pares – e lutar contra isso é por muitas vezes exaustivo. Mas sermos reconhecidas e amadas por nossas crias é o que nos move diariamente”.
Movimento que é também emoção. Agora Joana comprova isso na carne. No útero. Depois de Luciana gerar no próprio ventre Maria Flor, chegou a vez dela, aos 42 anos de idade, carregar em si o sentimento do mundo. Em julho, chega Serena, segunda filha do casal. Fruto de um novo tratamento, de novos desafios. De novas possibilidades.
“Queremos que as crianças possam ser livres e ser quem desejarem ser. Que o trabalho de maternar seja mais reconhecido, e que os direitos adquiridos não sejam anulados. Que nossos filhos sejam uma geração de mudança. E, para isso, precisamos de líderes que dialoguem com esse pensamento”, torce a nova mamãe. “Maria Flor já abriu muitos caminhos pra Serena”. Que o universo se abra para tantos outros trajetos também.