Terroristas del Amor: artistas cearenses expõem a ancestralidade e afetividade lésbica em murais
Coletivo formado por Dhiovana Barroso e Marissa Noana ganha notoriedade a partir de obras autobiográficas sobre vivências dissidentes e periféricas
Dhiovana Barroso, 28, e Marissa Noana, 24, fazem terrorismo diário. Terrorismo de carinho. Somente o fato de estarem bem, vivas e lutando pelo que acreditam, radicalizando o próprio afeto, provoca turbulências na configuração padrão da sociedade. São artistas, sonhadoras, crentes no amanhã. Amantes e amigas. São as Terroristas del Amor.
A escolha por esse nome se deu em 2018, ano em que decidiram potencializar as trajetórias enquanto jovens artistas visuais. “Quando nos conhecemos no curso de Artes Visuais do IFCE, notamos que nossas pesquisas se completavam, falávamos das mesmas coisas e tínhamos os mesmos pensamentos artísticos. Resolvemos juntar nossos fazeres”, contam.
A aposta foi bonita e certeira. Ganhando cada vez mais notoriedade dentro e fora do Ceará, as Terroristas del Amor podem ser vistas em diversos espaços de Fortaleza. “Solos Férteis para Habitar”, por exemplo – primeiro grande mural do coletivo, feito na empena de um prédio no bairro Grande Jangurussu – ocupa o espaço público com cores vibrantes e formas singelamente conhecidas por elas.
O mamoeiro retratado no painel de 11 metros de altura é árvore que cresce entre entulhos, dá frutos, alimenta-se da terra e nutre as companheiras, feito Dhiovana e Marissa. O casal enuncia práticas de raízes ancestrais, busca força no chão, ramifica-se por meio da bravura e frutifica pelo amor.
Outra grande obra de destaque é o reservatório de água da Cagece Pici, com 1450 m² e mais de 35 metros de altura. A partir do convite do duo de artistas cearenses Acidum, as criadoras realizaram a pintura dentro do Festival Internacional de Arte Urbana Além da Rua.
No centro do trabalho, duas mulheres que, ao toque das mãos, fazem brotar vida – além da representação da água como lugar de encontros, conexão e abundância. A pintura é tão grande que já receberam imagens de pessoas que a viram do metrô, do ônibus e até do avião.
Um último projeto de maior projeção é “capim-santo”, recém adquirido pelo Museu de Arte Contemporânea do Ceará. A criação é fruto de pesquisa sobre ancestralidade. Capim-santo é a planta que liga os quintais da existência das artistas.
“Cultivado pelas nossas avós e usado na obra para falar sobre a releitura desse território que nos antecede, representa uma nova construção de símbolos nacionais. A bandeira do meu país é o retrato de minha avó”. Essa relação de afirmação das vidas não-normativas e do afeto como modo de construção de novas possibilidades espaciais e culturais são fatores que impulsionam o alcance dessas produções – inúmeras nesses quase cinco anos de coletivo.
Identidades e rede de apoio
O acúmulo de realizações tão distintas e unas demonstra a espinha dorsal do coletivo artístico: apontar para a urgência de mudanças. Dhiovana e Marissa registram, na pele das cores, experiências de corpos dissidentes e periféricos, enfatizando a força que identidades e redes de apoio têm nesse movimento.
A intenção, em suma, é criar diálogo com a cidade e os habitantes como posturas de alerta à violência que os corpos heterodoxos vivenciam. “Nossas vivências se sobrepõem em nossas obras e, apesar das nossas similaridades (tanto estéticas quanto conceituais), fomos criadas em lares com realidades diferentes. Isso nos faz criar caminhos de encontro na arte”, situam.
Cada uma delas veio de famílias matriarcais e sustentadas por meio da atividade têxtil. Logo, apesar de serem apenas duas, os trabalhos contam histórias de muitas. Com obras autobiográficas, registram os próprios corpos em diversas linguagens no contexto da arte contemporânea, arte urbana e web 3.0.
“Acreditamos que as técnicas podem se complementar uma à outra e buscamos experimentar e testar cada materialidade a que temos acesso, tais como fotografia analógica, pintura digital, muralismo, bordado etc”, enumeram. “Queremos que nosso trabalho chegue a outros lugares, outros países, que ele converse com outras realidades. Desejamos produzir mais, testar outras técnicas e conquistar um espaço seguro para habitar e produzir”.
Mas há os desafios. Ainda é árduo viver de arte no Nordeste – sobretudo pessoas dissidentes, historicamente apagadas e violentadas e continuamente excluídas pela sociedade. A falta de políticas públicas de apoio aos artistas, além da ausência de incentivo refletida na precariedade dos editais, também ganha coro na fala do coletivo. “Fortaleza só tem uma premiação anual para artistas, o Salão de Abril, que neste ano ainda não aconteceu”.
“Proteja suas amigas”
Nada as impede de realizar, porém. As duas já participaram de diversas exposições no País com trabalhos diferentes. Um dos mais expostos foi “Proteja Suas Amigas”, uma grande bandeira de 6mx3m, integrante da mostra Rarefeito, no Sobrado José Lourenço. A obra provocou bem-vindo frisson e reflexões ao estampar o equipamento cultural cearense.
Nela, a frase grita no meio do Centro a importância do afeto e do cuidado entre nós. “Criando esse diálogo da rua e do museu com o habitante da cidade, conseguimos ativar memórias e desejos em cada um que se sente afetado pelo trabalho. E isso, por si só, já é uma das grandes alegrias de se fazer arte, ver como ela pode mudar o dia a dia das pessoas”, vibram.
Outro trabalho bastante importante é “Terraaterra: Como construir nosso próprio país”, instalação que aponta para o desejo de edificar o novo sobre a estrutura violenta e traumática do Brasil. A obra já circulou por diversas galerias, espaços culturais nacionais e premiações.
Em junho, esse mesmo projeto fará parte da mostra Imaginários Queer, edição 2022 da exposição do Museari Queer Art no Museo de Bellas Artes de Xàtiva, em Valência (ESP). A mostra tem curadoria de Eduardo Bruno e Waldirio Castro.
“Levamos para as ruas e para os museus narrativas que se correlacionam, conseguindo chegar nas mais diversas pessoas e histórias. Produzimos sublinhando a importância do afeto e do reconhecimento de existências divergentes, ainda invisíveis, que se constituem no campo das artes”, reiteram.
E, quando sonham – e é sempre – pensam em meios propícios para continuar vivendo de arte, se aproximando de novos personagens e lugares. Também querem ser ouvidas e respeitadas ao falar sobre a própria ancestralidade e futuro. Futuro em que estejam seguras, vivendo com abundância, “nós e nossas famílias, amigas, vivas e bem; queremos fartura para todes”.
“Desejamos um mundo em que podemos ser o quê e quem quisermos. A arte nos dá chance de sermos ouvidas. Nossas vidas são políticas. Só de estarmos vivas já vamos contra as estatísticas. Se posicionar é dar voz aos que falam e não são escutados”. Terrorismo de amor.
Serviço
Terroristas del Amor
Disponíveis no perfil @terroristasdelamor e do e-mail terroristasdelamor2018@gmail.com