Ney Matogrosso completa 80 anos agigantado por novo disco e com trajetória esmiuçada em biografia

O cantor e compositor fez da arte um contundente modo de afirmação e prossegue inspirando pela liberdade

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Ney e seus 80 anos: artista segue insubmisso, sem talento para morrer
Foto: Leo Aversa/Divulgação

Assim que pôs os pés num palco pela primeira vez, Ney Matogrosso teve certeza de que seu lugar era ali. O teatro que havia conhecido em peças escolares, sempre escondido do pai, abriu a caixa responsável por tudo se tornar possível. Era sobre um tablado que histórias, personagens, figurinos, luzes e falas germinadas nas imaginações mais solitárias poderiam se tornar reais. O canto era um adereço, a ferramenta que os bons atores deveriam dominar, e a voz daquele até então jovem rapaz dava sinais de que estava no bom caminho.

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Este é um dos excertos cruciais de “Ney Matogrosso - A Biografia”, escrita pelo jornalista e crítico musical Julio Maria e recém-lançada pela Companhia das Letras. Um trecho no qual somos convidados a reviver frontalmente os sentimentos e expectativas sedimentados ali, em tão tenra idade, por aquele que se tornaria um dos mais importantes artistas brasileiros. Alguém que renasce em elástica herança toda vez que serpenteia, sem limite de insubmissão, por entre corpo, alma e som.

Neste domingo (1º), quando Ney celebra oito décadas de vida, é esse audacioso legado que se esparrama pela audiência – e, por que não, pelo próprio interior do cantor e compositor – lançando as bases para novas perspectivas e encaminhamentos. Nesse cenário escuro e frio, alimentar a substância necessária para continuar. Prova disso é a movimentação que guia os passos do aniversariante neste dia dedicado a ele.

Legenda: Capa do novo disco do cantor e compositor, "Nu com a minha música"
Foto: Divulgação

Hoje, Ney lança as primeiras quatro faixas de seu novo álbum, “Nu com a minha música” – título herdado da composição de Caetano Veloso, que já poderá ser conferida nesta data. Além dela, o repertório inclui “Gita”, de Raul Seixas; “Se não for amor, eu cegue”, de Lenine e Lula Queiroga; e “Unicórnio”, de Silvio Rodriguez. O disco completo, com total de 12 canções, será lançado até o fim do ano, fruto de contrato assinado com a Sony Music.

Outras músicas escolhidas por Ney para integrarem o álbum são “Sua estupidez” (Roberto Carlos e Erasmo Carlos, 1969), “Quase um segundo” (Herbert Vianna, 1988), “Sei dos caminhos” (Itamar Assumpção e Alice Ruiz, 1991), “Espumas ao vento” (Accioly Neto, 1997), “Xique Xique” (José Miguel Wisnik e Tom Zé, 1997), “Faz um Carnaval comigo” (Pedro Luís, 2019) e “Boca” (Felipe Rocha, 2020).

Para além disso, já estão à venda os ingressos para o Breve Festival 2022, evento agendado para acontecer em 9 de abril do próximo ano, na Esplanada do Mineirão (BH). Ney Matogrosso será uma das atrações, ao lado de Gal Costa, Pitty, Elba Ramalho, Alceu Valença e Geraldo Azevedo (com O Grande Encontro), Racionais MCs, Djonga, entre outros. Será a primeira edição do festival desde 2019. Mais informações podem ser conferidas aqui.

Legenda: Resultado de cinco anos de pesquisa, biografia esquadrinha trajetória de Ney Matogrosso em 25 capítulos
Foto: Leo Aversa/Divulgação

Sem talento para morrer

A já citada biografia é outro medalhão a ser desbravado de modo a festejar a efeméride. Resultado de cinco anos de pesquisa, a obra esquadrinha o perfilado em 25 capítulos, estes começando e terminando com o título “Um lugar chamado fronteira”.

Faz sentido. Da zona de demarcação do Mato Grosso – da qual o avô do artista retirou o sobrenome da família – aos palcos do Sudeste, toda a trilha galgada por Ney foi construída num desfiladeiro, em que a coragem e o talento para não morrer se sobressaíram.

O biógrafo Julio Maria parte dessa premissa e costura, com sagacidade, todos os principais fatos responsáveis por alavancar o espírito incontestável do intérprete para além das divisas, dos limiares. Estão lá o teatro como paixão e a música por acidente – Ney, não sem motivo, teve a sua entrada efetiva no cenário musical com mais de 30 anos, e direto no grupo Secos & Molhados, no final de 1972 –; a descoberta da singular identidade, permeada por tentativas de silenciamento, uma vez tendo crescido em seio de espírito militar; as glórias e os insultos, as vontades e os interditos, mergulhando ainda no namoro com Cazuza (1958-1990) e na tristeza revestida de força ao ver tantos amigos e namorados vencidos pelo vírus da Aids.

Legenda: O olhar de Ney era tão temido pela censura dos anos 1970 quanto os seus rebolados
Foto: Luiz Fernando Borges da Fonseca/Divulgação

A abordagem proposta pelo livro é profunda e sem rodeios, feito o biografado. Lembrado pela presença que brilha e desnorteia, revestida de sensualidade e magnetismo, Matogrosso é apresentado detalhadamente tanto diante dos holofotes, como a quilômetros de qualquer rastro de luz, numa entrega sem precedentes da ponta do palco ao isolamento das quatro paredes.

O que Julio Maria confere é uma viagem pelo interior do interior, abraçando dos mais críticos momentos do artista às complexidades nascidas com o apogeu de sua figura, além das diversas parcerias musicais e a generosa atuação de Ney frente à vida e à humanidade. Relatos se espraiam pelo livro atestando uma força contumaz, possível de reverter quadros de segregação e prover algo que leve para um caminho melhor. Um insuspeito vigor do homem com H.

Fortuna imagética

Com texto de orelha assinado por Caetano Veloso e dedicada ao musicólogo Zuza Homem de Mello (1933-2020) – falecido no ano passado – a biografia de Ney Matogrosso também é fartamente permeada por imagens. 

Em fotografia de 1944, por exemplo, o cantor e compositor aparece minúsculo, sentado em uma cadeira, quando ainda residia em Salvador – época em que o pai, o sargento Matto Grosso, integrava as forças brasileiras na Itália durante a Segunda Guerra Mundial.

Também pequeno, é registrado ao lado da mãe, Beíta, nesse mesmo período, antes da viagem de navio para encontrarem o pai no Rio de Janeiro; por sua vez, mais crescido, é apresentado brincando com os sobrinhos em um Natal na casa da família, em Ilha Solteira, interior de São Paulo.

Corta para os registros de sua carreira, quando, ainda jovem, assombrava plateias ao se postar – em figurino, presença e performance – como meio homem, meio bicho; num ensaio nas águas do Pantanal Mato-Grossense, para o amigo Luiz Fernando; com impetuoso olhar, capaz de ser temido pela censura dos anos 1970, tanto quanto seus rebolados; e ao lado de Cazuza, do cearense Fagner e de muitos outros artistas, abrilhantando os palcos Brasil afora, como no show “Destino de aventureiro” – tido como o mais ambicioso da carreira, iniciado em 1984.

Uma lista com todos os entrevistados para a biografia – com destaque para o próprio Ney, visitado “incontáveis vezes entre 2016 e 2021, presencialmente e por telefone” – e um índice onomástico igualmente podem ser conferidos no vasto material, cujas linhas alcançam até os dias de hoje, depois de Matogrosso rodar o Brasil por catorze meses e sair de cena no ano passado, por conta do cenário pandêmico.

Julio Maria narra que, antes de decretar-se em isolamento, o artista decidiu ajudar cada um dos 24 profissionais de sua equipe de técnicos e músicos, pagando por algum tempo quantias mensais entre R$1500 e R$2500. E, então, seguiu para ficar alguns dias ao lado da mãe no sítio mantido em Saquarema (RJ).

Sem filhos e, à época, próximo das oito décadas de existência, estabeleceu uma quarentena revezada entre temporadas no apartamento do Leblon, acompanhado apenas pela ajudante Helena e pela macaquinha Garota.

“Ao contrário do HIV, que misteriosamente não o infectou mesmo depois de ele ter mantido relações sexuais com aos menos duas pessoas infectadas, Marcom e Cazuza, o chamado novo coronavírus entrou em seu organismo, mas ficou inativo, sem provocar sintomas. Ainda assim, sabendo que já tinha sido ‘tocado pelo mal’ e sobrevivido, decidiu não acreditar na ideia infundida sem comprovação científica da imunização natural e permaneceu afastado, vivendo em uma situação que nem os piores dias da Aids haviam imposto”, narra o biógrafo.

Legenda: Ney Matogrosso recebendo a primeira dose de vacina contra Covid-19, no Rio de Janeiro, em março deste ano: biografia alcança até este momento do artista
Foto: Reprodução

Triste pelo luto das famílias e revoltado com o descaso e escárnio do presidente da República, Ney passou a ouvir mantras, ler mais livros e seguir uma rotina de alongamento, ginástica e musculação.

Até que, no dia 1º de março deste ano, se dirigiu ao posto de saúde no Planetário do Rio (RJ) para receber a primeira dose da vacina AstraZeneca, levando a mãe, de 99 anos, para também ser imunizada com a segunda dose pouco tempo depois, em 13 de março. É até esses momentos, por sinal, que a biografia de Julio Maria alcança.

Decidido a não mudar a postura de seguir em isolamento social e continuar a usar máscara e álcool em gel, Ney percebeu, porém, que poderia voltar a ter esperança de ver o fim do pior pesadelo que viveu em seus 80 anos e, um dia, voltar a cantar sobre um palco. Para ocupar de novo um espaço fronteiriço, alimentando uma história perene e já infinda de exaltação da vida.

Serviço
Quatro primeiras faixas do disco “Nu com a minha música”, de Ney Matogrosso
Disponíveis a partir deste domingo (1º) nas principais plataformas musicais


Ney Matogrosso - A Biografia
Julio Maria

Companhia das Letras
2021, 512 páginas
R$ 89,90/ R$39,90 (e-book)

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