Biografia relata paixão imediata de Ney Matogrosso pela voz e pela “figura moura” de Fagner

Livro recorda momento em que os dois artistas se conheceram e viajaram juntos “cantando tudo o que vinha à cabeça”

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Raimundo Fagner e Ney Matogrosso na década de 1970
Foto: Divulgação

Iniciada na década de 1970, a amizade entre Ney Matogrosso e o cantor e compositor cearense Raimundo Fagner rendeu não apenas canções que até hoje ecoam nos ouvidos do público, como também uma esmerada parceria para além dos palcos, alicerçada por uma admiração mútua.

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À época, o autor e intérprete de “Canteiros” e “Espumas ao vento” já era um grande nome da música nacional, ao passo que Ney dava os primeiros passos na carreira solo. Eles gravaram, em 1975, duas músicas registradas no compacto homônimo à dupla: “Ponta do lápis” (Clodo/ Rodger Rogério) e “Postal de amor” (Fagner/ Fausto Nilo/ Ricardo Bezerra).

O processo de trazer à tona esse par de composições, ao mesmo tempo que mergulhando na forma como a dupla se conheceu, é narrado no livro “Ney Matogrosso - A Biografia”, escrito pelo jornalista e crítico musical Julio Maria – também à frente de “Nada será como antes” (Master Books, 2015), biografia de Elis Regina (1945-1982).

Lançada por ocasião dos 80 anos de Ney, celebrados neste domingo (1º), a obra é publicada pela Companhia das Letras, traçando desde a infância e adolescência do perfilado até o estrelato, culminando no momento em que Matogrosso recebe a primeira dose da vacina AstraZeneca, contra a Covid-19, em março deste ano.

Abaixo, você lê, na íntegra, o excerto presente no material referente aos primeiros contatos entre Ney Matogrosso e Raimundo Fagner, em 1975, frutos de uma paixão imediata do primeiro pela voz e pela “figura moura” do cearense. Confira:

Quando chegou julho e a temporada no Teatro Treze de Maio acabou, Ney se ajeitou no banco de trás do Fusca do jornalista José Márcio Penido ao lado de um cearense amigo de Belchior e de todos os cearense que havia conhecido do programa Mixturação. Raimundo Fagner já era um grande nome. Ele ganhara relevância com Manera Fru Fru, manera, de 1973, cantando “Mucuripe” e “Último pau de arara”, e estava para lançar Ave Noturna pela mesma gravadora de Ney, a Continental.

Mas, antes de qualquer sucesso, Ney se desnorteou por Fagner durante uma festa. Viu em sua figura moura uma beleza épica e na voz que cantava com trinados ibéricos um portal que o conduzia às arábias. Os dois cantaram algumas vezes juntos ao se encontrarem em festas de forma não premeditada e tudo se deu com tamanha força que sentiram o dever de premeditar algo. Fagner mostrou duas músicas a Ney, “Ponta do lápis” e “Postal de amor”, e, em poucos dias, os dois estariam com tanta vontade de mostrá-las ao mundo que submeteram a uma carona com Penido por quase oito horas de estrada e sacolejos em direção a Belo Horizonte.

Legenda: Capa do compacto lançado por Fagner e Ney Matogrosso em 1975, com as canções "Ponta do lápis" e "Postal de amor"
Foto: Divulgação

Ney e Fagner viajaram cantando tudo o que vinha à cabeça. Ângela Maria, Luiz Gonzaga, Nelson Gonçalves, Sílvio Caldas, Carmen Miranda, tudo amaciado pela acústica do teto de couro ovalado do Fusca. As vozes inventavam caminhos paralelos, se entrelaçavam, brincavam de trocar regiões. Fagner subia com um falsete exuberante para Ney descer com seus médios limpos.

A revista Pop, que cobria o evento e oferecia desconto aos seus leitores, e a própria condução do 1º Camping Pop de Inverno de Minas Gerais, uma espécie de Woodstock de butique, com barracas organizadas e reservadas a sessenta cruzeiros por três dias de shows no luxuoso Serra Verde Camping Club, pareciam mais empenhadas em anunciar as atrações noturnas O Terço, Os Mutantes, Som Nosso de Cada Dia, Lô Borges, Novos Baianos e Caetano Veloso do que em colocar holofotes em Fagner e Ney. Até porque, para muitos, quem era Ney? Seria a primeira vez desde o estouro dos Secos & Molhados que ele subiria sem maquiagem a um palco, um marco do qual só Ney e Fagner pareciam saber.

No grande palco ao ar livre, de frente para os 80 mil metros quadrados de área verde do clube de camping, Fagner cantou primeiro sozinho para então chamar Ney, vestido como um caubói, de chapéu-panamá e calça Lee. Eles mostraram as duas canções que haviam ensaiado e que, conforme anunciaram, estariam em breve num compacto simples. As pessoas da plateia só ligariam o Ney do palco ao Ney de suas memórias quando ouvissem o timbre da voz. Depois de cantarem juntos para 3 mil pessoas, voltaram de trem para o Rio fechados numa das cabines, cantando, rindo e cultivando uma nuvem de maconha tão intensa que parecia entrar em estado sólido e que tomaria todo o vagão assim que alguém abrisse a porta. Fagner ficou hospedado em um quarto na casa de Ney por três dias, o tempo que precisavam para gravar o compacto. Uma matéria de revista usou a expressão “celebrou-se a união” para falar da junção das duas vozes. Ney achou graça, Fagner não.

Ney Matogrosso - A Biografia
Julio Maria

Companhia das Letras
2021, 512 páginas
R$ 89,90/ R$39,90 (e-book)