Marvel no Pirambu: Há 15 anos, Wolverine encontrava o único X-Men cearense em Fortaleza
No Ceará, o mutante mais famoso encarou o dilema de crianças em condição de rua na HQ “Wolverine: Saudade”
Wolverine surgiu em 1974, após breve (e impactante) aparição nos quadrinhos do Hulk. Prestes a completar meio século, o anti-herói já encarou toda categoria de aventura pelo mundo. Foi do Japão ao Vietnã e até já tomou umas com o escritor Ernest Hemingway (1899-1961) na Guerra Civil Espanhola (1936-1939).
Em 2006, o mutante mais popular da Marvel adicionou outro destino a esta jornada. A partir da criatividade de dois artistas franceses, Logan teve uma história oficial ambientada no Ceará. Na HQ “Wolverine: Saudade”, o canadense conheceu o bairro Pirambu em Fortaleza. É onde aprendeu o significado do sentimento que nomeia a graphic novel.
Não era a primeira vez de Wolve no Brasil, diga-se. Editada nos Estados Unidos, “Wolverine - Rio de Sangue” (1998) mostrou o personagem lutando em terras cariocas. Já “Wolverine: Saudade” foi produzida na Europa pela Panini e coube ao roteirista Jean-David Morvan e o compatriota Phlippe Buchet falarem do Pirambu para o mundo.
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Chama o Batman?
A história se passa no início dos anos 1990. Wolverine curte umas merecidas férias por Fortaleza. Tudo desanda quando ele descobre a presença de outros mutantes na região. É quando conhecemos o caso do adolescente Andre Mexer, conhecido como Xexeu.
“Nascido na favela e criado na rua, o personagem usa os poderes para proteger ele e os amigos do Esquadrão da Morte”, diz a sinopse. A pedido do professor Xavier, Wolverine busca recrutar Xexeu e integra-lo à escola dos X-Men. Missão nada fácil até mesmo para o herói que se cura sozinho.
O gringo apanha feio da bandidagem e tem o corpo jogado no mar. Salvo graças à intervenção de uma entidade mitológica (mistura de Iemanjá e sereia) ele parte na vingança contra Kuhrra Daizonest. O vilão é apresentado como um perigoso mutante que se disfarça de curandeiro e ordena o sequestro de Xexeu.
Já deu para perceber que os nomes “Andre Mexer” e “Kuhrra Daizonest” possuem quase nada de brasileiro. Esse é só um dos muitos elementos passíveis de análise na única aventura de um X-Men no Ceará. O trabalho da dupla Jean-David Morvan e Phlippe Buchet se equilibra entre críticas e elogios.
X-Men cearense
“Wolverine: Saudade” é uma das obras apreciadas na tese “Por uma sociologia da imagem desenhada: Reprodução, estereótipo e actância nos quadrinhos de super-heróis da Marvel Comics” (2015). No trecho em que aborda a HQ do mutante no Ceará, o estudo contextualiza que existem 26 personagens brasileiros na Marvel.
Para exemplificar como as mulheres são mostradas no universo da edtora, o doutor em sociologia Amaro Xavier Braga recorta uma personagem coadjuvante de “Wolverine: Saudade”. Trata-se de uma dançarina cearense de cabelos vermelhos que encanta o estrangeiro.
São mulheres com pouca roupa e dispostas ao contato mais íntimo. Na história do Ceará os esquemas são ainda mais estereotipados: Wolverine é roubado, logo que chega a Fortaleza por meninos de rua e aparecem morros na história (apesar de Fortaleza ser uma cidade plana, uma alusão direta aos morros cariocas).
À época do lançamento, em entrevista à publicação "Super Interessante", o roteirista Jean-David Morvan refletiu que uma aventura na favela faria o cara mais mal-humorado dos quadrinhos evoluir, a partir da compreensão e experiência de outra civilização.
"Wolverine vive nos EUA, uma sociedade muito fechada. Pensei que ele poderia ir a um país como o Brasil, um lugar cheio de qualidades e problemas, como nossos personagens. Os meninos de rua da história não são bons nem maus, os inimigos tambem não, e mesmo Wolverine não é de todo bonzinho".
Rolê aleatório
A Fortaleza retratada nas páginas do gibi europeu assemelha-se a uma paisagem caribenha. Não bastasse a geografia deslocada, parte da população da vila e dos personagens secundários guardam uma fisionomia aproximada de camponeses mexicanos. Mesmo assim, o traço de Phlippe Buchet guarda seus aspectos positivos.
Mesmo explorando a questão da proximidade com o mar, a religiosidade ou a “alegria”, as referências culturais à capital bem que poderiam ocupar mais espaço na obra. Outro detalhe curioso. A HQ “Wolverine: Saudade” chegou a ganhar edição especial que vinha com um CD de trilha sonora.As músicas foram assinadas pelo DJ Dolores.
Mesmo sendo uma ficção, sem qualquer responsabilidade de mensurar o real com precisão, o quadrinho aborda temas que ainda preocupam. Em 2011, cinco anos depois do gibi chegar ao mercado, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registrou o Pirambu como a sétima maior favela do Brasil.
Destino
É o nono no País com o número de domicílios em ocupações irregulares e o primeiro em Fortaleza sem forma correta de abastecimento de água. Outro drama que o faz de conta mutante alerta recai sobre a situação das crianças brasileiras. A violência mostrada na HQ da Marvel lembra episódios como as chacinas da Candelária (1993) ou da Messejana (2015).
Nem mesmo um super-herói indestrutível e praticamente imortal conseguiu lidar com a dura realidade da periferia de Fortaleza. O rolê aleatório de Wolverine entrega um final pouco otimista. A história do único cearense X-Men (ou que poderia ser) encerra de forma bisonha. Caso não queira tomar spoiler, não leia o próximo parágrafo.
Sem conseguir salvar o adolescente, o herói descobre que o garoto foi lobotomizado (virou uma espécie de zumbi) e passou a ser escravo de um garimpo brasileiro. E o que o Wolverine faz? Ele leva Xexeu até os Estados Unidos para ser zelador da escola do Xavier. Amigão, hein?