Chacina de Messejana: como tudo começou
Antes das mortes das 11 pessoas, testemunhas revelam que PMs à paisana já rondavam o bairro
A propagação de um boato de traição. Esse teria sido o primeiro acontecimento de uma série de outros mais violentos e sangrentos, que culminaram na maior chacina da história de Fortaleza, em novembro do ano passado, na qual 11 pessoas foram executadas sumariamente nos bairros Curió e São Miguel, na Grande Messejana. Depoimentos presentes em um processo que apura o homicídio de um adolescente e a tentativa de homicídio de um pedreiro narram cenas de intimidação por parte de policiais, supostas omissões de socorro de órgãos públicos, assassinatos, ameaças de vingança e execuções sumárias.
Os primeiros fatos, ocorridos entre 25 e 30 de outubro do ano passado, estariam diretamente ligados aos acontecimentos da madrugada do dia 12 de novembro. Somente duas pessoas que teriam participação na chacina foram presas, mas por crimes anteriores aos assassinatos de novembro. Os outros 45 denunciados pelas 11 mortes ainda não tiveram as prisões decretadas pela Justiça.
Paz quebrada
Conforme testemunhas relataram no processo, os bairros Curió e São Miguel estariam vivendo um momento de "tranquilidade" após um "acordo de paz" feito entre os traficantes de drogas da região. No entanto, no dia 25 de outubro, a "paz teria sido quebrada".
Segundo o processo, naquela noite, por volta das 22 horas, o pedreiro Raimundo Cleiton está com a namorada, no bairro Curió e encontra com duas mulheres; uma delas é irmã do policial militar Marcílio Costa de Andrade. Cleiton confronta as duas sobre o boato que teriam espalhado de que a namorada dele teria sido vista num motel com outro homem.
Conforme o testemunho de Cleiton, ao ficar diante das duas mulheres para "tirar a limpo" a história de que havia sido traído, é surpreendido pelo policial Marcílio, que desce armado de um veículo Fox, de cor preta, e diz: "é a Polícia, vagabundo".
Cleiton afirma que o PM bateu na boca e no tórax dele com a pistola. Ele sai do local com a namorada em uma moto para denunciar a agressão sofrida e encontra uma viatura. Após narrar os fatos, é orientado pelos PMs a ligar para a Coordenadoria Integrada de Operações de Segurança (Ciops).
Ele ligou várias vezes. Antes da chegada das viaturas, é abordado pelo adolescente Francisco de Assis Moura de Oliveira Filho, o 'Neném', que o questiona sobre o motivo de ele ter chamado a Polícia para o bairro, o que segundo 'Neném', poderia "causar problemas".
Conforme o processo, enquanto conversam, 'Neném' e Cleiton são surpreendidos pelo policial militar Marcílio e por Giovanni Soares dos Santos, o 'Lorim Giovanni', que é namorado de uma sobrinha do PM. Conforme a denúncia do MPCE, 'Lorim Giovanni' e o soldado Marcílio efetuam vários disparos, causando a morte de 'Neném' e ferindo Cleiton. A situação gera um grande problema na região.
Os parentes de 'Neném 'descobrem que o PM e Lorim Giovanni' seriam os autores da morte do adolescente e a partir desse acontecimento, de acordo com depoimentos presentes no processo, começa a ser criado o ambiente propício para a atuação de uma milícia formada por policiais militares e outras pessoas, que culminou na chacina.
Parentes de 'Neném' prometem vingança e os familiares do policial Marcílio abandonam suas casas. 'Lorim Giovanni' sai de casa no dia 25 e nos dias 26, 27 e 28 de outubro de 2015, os demais parentes do soldado Marcílio deixam as residências.
Um grupo de "justiceiros" entra em ação, conforme as testemunhas. Gravações da Ciops no dia da execução sumária de 'Neném' e do pai dele Francisco de Assis Moura de Oliveira (ver quadro) indicam como os policiais agiram. O homem que era deficiente físico teve a casa invadida no dia 29 de outubro por bandidos encapuzados, supostamente policiais militares, e morto a tiros. Pai e filho teriam envolvimento com o tráfico de drogas da região.
Lampião
Uma testemunha relata à Ciops no dia 29 de outubro que policiais militares à paisana estavam invadindo o Curió. "Parece o tempo do Lampião", se referindo aos homens armados e agredindo às pessoas na rua.
Testemunhas revelam ainda que desde a morte do pai de 'Neném' houve um toque de recolher imposto por policiais militares aos moradores dos bairros Curió e São Miguel. Quem fosse visto na rua depois das 19 horas, seria morto.
Dezoito dias depois da morte do pai de 'Neném', o soldado Valtemberg Serpa é morto em um assalto, no bairro Lagoa Redonda. Uma fonte da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) disse que a morte do militar criou "a cortina de fumaça" que os policiais precisavam para executar traficantes que ainda moravam naquela região.
Segundo o relato de uma testemunha, os policiais, com a ajuda de 'Lorim Giovanni' se organizaram e se armaram, como já haviam feito para matar o pai de 'Neném', e foram atrás de um homem chamado Robério, que seria o traficante de drogas, agora responsável pela área.
A testemunha informou que Robério teria prometido dizer quem tinha matado o soldado Valtemberg, mas como não cumpriu a promessa, os PMs voltaram à casa dele, por volta da meia-noite e mataram quem encontraram na rua. Uma das vítimas da chacina foi um tio de Robério. Além dele, outras pessoas sem envolvimento com crimes foram mortas, inclusive oito adolescentes.
Antônio Robério Aquino, 21, que depôs como testemunha da chacina, foi morto numa operação da Polícia Civil no dia 8 de julho deste ano. O caso está sendo apurado pela CGD, mas a princípio não teria ligação com o depoimento dele.
A SSPDS informou por e-mail "que toda e qualquer composição policial que se deparar com uma ocorrência deve atendê-la por iniciativa própria, criando uma ocorrência de campo, por meio do sistema embarcado na viatura, independente do acionamento via Ciops". A Pasta disse ainda que "as circunstâncias do suposto envolvimento de policiais nas duas ocorrências citadas estão sendo apuradas pela CGD".