Jovem cearense quilombola cria sorvete com sabor farinhada feito à base de mandioca

Tradições alimentares do quilombo de Conceição dos Caetanos, em Tururu, inspiraram Joélho Caetano a criar projeto de sorvete que atua como vetor de ancestralidade e renda

Escrito por João Gabriel Tréz , joao.gabriel@svm.com.br
Aos 21 anos, Joélho Caetano atua na manutenção da cultura alimentar do Quilombo de Conceição dos Caetanos, no município de Tururu
Legenda: Aos 21 anos, Joélho Caetano atua na manutenção da cultura alimentar do Quilombo de Conceição dos Caetanos, no município de Tururu
Foto: Acervo pessoal

Da tradição das casas de farinha do quilombo de Conceição dos Caetanos, no município cearense de Tururu, a 107 km de Fortaleza, surge um sorvete inovador feito à base de mandioca, sem conservantes ou produtos industrializados, cujo arremate de sabor é proporcionado por uma farofa doce que leva farinha, coco, rapadura e manteiga de garrafa.

A iguaria foi criada pelo jovem quilombola cearense Joélho Caetano, de 21 anos, como forma de preservar práticas da cultura alimentar do território. O Sorvete Farinhada tem previsão de disponibilização no mercado, tanto em Fortaleza quanto em Conceição dos Caetanos, entre o final de maio e o começo de junho.

A criação foi desenvolvida no Laboratório de Criação em Cultura Alimentar e Gastronomia da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco, equipamento da Secretaria da Cultura do Ceará.

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Casas de farinha como cultura alimentar

A inspiração inicial do jovem gastrólogo em se debruçar nas práticas alimentares do quilombo foram o gosto pessoal pela área e ter como referências figuras como a mãe Medina Caetano, agricultora, e a avó Maria Caetano de Oliveira, matriarca da comunidade e liderança quilombola.

“As pessoas da comunidade têm práticas fortíssimas em cultura alimentar, só que não reconheciam. A gente tem em torno de seis casas de farinha ativas (no quilombo), só que as pessoas das farinhadas conheciam a prática apenas como meio de sobrevivência, não sabiam o que era cultura alimentar”, contextualiza.

Nestes espaços, são produzidas farinha, goma e outras formas de aproveitamento da mandioca plantada no próprio território. “São coisas utilizadas tanto na alimentação diária da população quanto como meio de sobrevivência, porque as pessoas vão para cidades vizinhas vender a produção”, explica.

Já o interesse especial em sorvete foi fruto da primeira vez que Joélho deixou o quilombo e veio a Fortaleza com o padrinho, aos 15 anos, durante as férias. “Fui visitar pela primeira vez uma sorveteria. Nunca tinha visto uma, sorvete era apenas aquele já embalado que se comprava no mercado”, lembra.

O acesso a um estabelecimento como aquele impactou o então adolescente. “Como um jovem sonhador, gostei da experiência e vi a possibilidade de levar para o quilombo, para que outras pessoas, jovens e crianças pudessem ter a mesma experiência que eu”, segue.

Foi a semente para que ele e a mãe, que sempre desejou ter um negócio próprio, decidissem investir em algo que parecia um sonho arriscado. “A gente tinha zero condições financeiras e muito menos conhecimento. Muita gente chamou a gente de louco: como é que um jovem de 15 anos e uma mulher agricultora sem ensino completo podiam querer abrir um negócio?”, lembra o gastrólogo.

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Busca por sabores da terra

Após um empréstimo, pesquisas, força de vontade e um tempo, a família conseguiu concretizar, ainda em casa, a sorveteria Caetanos Sabores. “A gente começou do zero, mesmo. Pra nossa surpresa, foi um sucesso”, recupera.

Um pouco mais velho, Joélho buscou formação em gastronomia e passou a ter maior contato com teorias da área, o que ajudou no negócio. No entanto, ele sentia um incômodo específico.

“A gente começou a trabalhar com sorvete a partir de receitas da internet, só fazia sabores comuns. Tinha zero da nossa cultura alimentar na sorveteria e isso me pegava: eu estava dentro de uma comunidade que tinha uma cultura alimentar forte, só que ela não tinha visibilidade e, na minha sorveteria, também não tinha nada do meu quilombo”, narra.

Gastrólogo formado, Joélho seguiu na pesquisa e aprendizado na Escola de Gastronomia Social
Legenda: Gastrólogo formado, Joélho seguiu na pesquisa e aprendizado na Escola de Gastronomia Social
Foto: Andressa Mesquita / Divulgação

A inquietação levou o jovem a querer aproximar as práticas alimentares do território quilombola e a sorveteria. “Para que ela contasse um pouquinho da cultura da minha comunidade, tivesse traços e elementos característicos da cultura alimentar da minha comunidade”, define.

Um passo definitivo para a concretização dessa aproximação foi a aprovação na Escola de Gastronomia Social, que oportuniza pesquisas com impacto social que trabalhem a cultura alimentar cearense.

Com o gastrólogo Bruno Modolo como mentor, Joélho levou ao laboratório da escola a ideia de produzir um sorvete com elementos tradicionais do quilombo de Conceição dos Caetanos. O processo de criação do produto também contou com apoio da Bellucci Gelateria, de Fortaleza.

Mandioca na base e na cobertura

“Chego lá já pensando em trabalhar a mandioca na base do sorvete. Levo uma receita pro meu mentor e a gente cria um sorvete onde as fibras da mandioca entram para substituir emulsificantes e liga neutra”, reconta o jovem. "Ela entra tanto como cultura quanto para substituir industrializados, fazendo com que a gente conseguisse ter um sorvete o mais artesanal e natural”, explica.

A conquista de uma base de sorvete feita de mandioca foi celebrada, mas outro desafio se impôs. “Ela, por si só, não deu um sabor específico, ficou muito neutro, então a gente precisava dar um sabor real”, conta o gastrólogo.

Sorvete Farinhada é feito à base de mandioca e leva, na cobertura, 'farofa doce' feita de farinha, coco, rapadura e manteiga de garrafa
Legenda: Sorvete Farinhada é feito à base de mandioca e leva, na cobertura, "farofa doce" feita de farinha, coco, rapadura e manteiga de garrafa
Foto: Joélho Caetano / Divulgação

“A gente chegou a pensar em usar tapioca, mas sorvete de tapioca já existia, não ia ser uma inovação”, divide. A resposta foi encontrada também nas práticas tradicionais do quilombo.

“Pegamos a farinha de mandioca e fizemos uma farofa doce com coco, rapadura e manteiga de garrafa, que são elementos da comunidade, presentes todo dia na nossa alimentação”, afirma. Foi, como descreve Joélho, “uma combinação perfeita” cuja junção, ele destaca, é a cara não somente de Conceição dos Caetanos, mas do próprio Ceará. 

O sabor foi batizado como Farinhada. Ao descrevê-lo, o jovem define: tem gosto de memória afetiva. “Quando a gente fez a análise sensorial, muitas pessoas relataram que lembraram da infância, de ter comido farinha com leite, farinha com rapadura. Foi muito na memória afetiva”, afirma.

Lançamento deve ocorrer até início de junho

O Sorvete Farinhada foi apresentado oficialmente em março na  IV Mostra de Gastronomia Social e Cultura Alimentar da escola. “Conseguimos levar pessoas da comunidade, das farinhadas, para Fortaleza, para elas assistirem e provarem em primeira mão”, destaca. Entre o público presente, não podiam faltar as principais referências e influências do jovem.

“Minha mãe está vendo isso como algo muito importante pra vida dela. Ela começou na agricultura, a sorveteria hoje em dia é dela. É outro sonho realizado. Pra minha avó, nem se fala. Era um dos sonhos ver um dos dela, filho ou neto, dando continuidade nas ações dela no quilombo”, celebra.

Joélho teve como referências figuras como a mãe Medina Caetano, e a avó, Maria Caetano de Oliveira, conhecida como dona Bibiu
Legenda: Joélho teve como referências figuras como a mãe Medina Caetano, e a avó, Maria Caetano de Oliveira, conhecida como dona Bibiu
Foto: Acervo pessoal

Após a primeira apresentação, as expectativas — da comunidade e do mercado — têm aumentado. “A gente já tem demanda grande, muitos restaurantes entraram em contato querendo entender um pouquinho do sorvete”, compartilha.

O lançamento oficial do Sorvete Farinhada está previsto para ocorrer entre o final de maio e o início de junho. Em Fortaleza, ele estará disponível na Bellucci Gelateria. Em Conceição dos Caetanos, na Caetanos Gelateria e Confeitaria — que contará com todos os sorvetes produzidos à base de mandioca.

O impacto da iniciativa é medido por Joélho em termos concretos e simbólicos. “A pesquisa no geral teve três intuitos: apresentar a cultura alimentar da comunidade, apresentar o quilombo e desenvolver um produto de inovação”, aponta o pesquisador.

Integrantes da comunidade quilombola ligadas às práticas alimentares do território vieram a Fortaleza para provar o sorvete em primeira mão na Mostra de Gastronomia Social e Cultura Alimentar
Legenda: Integrantes da comunidade quilombola ligadas às práticas alimentares do território vieram a Fortaleza para provar o sorvete em primeira mão na Mostra de Gastronomia Social e Cultura Alimentar
Foto: Acervo pessoal

“Quando as pessoas ouvirem falar do sorvete, consumirem e descobrirem que ele é de um quilombo de cultura forte, vão se encantar com a história, querer conhecer mais, visitar. Com o turismo se fortalecendo, proprietários de pequenos negócios, comércios, consequentemente, vão ter uma visibilidade maior”, prevê. 

A criação, segue, também será vetor de preservação da ancestralidade.

“Hoje em dia, é difícil encontrar casas de farinha com processos tradicionais ainda ativas no Ceará. Na nossa comunidade, a gente tem a graça de ter seis. A pesquisa vem para dar visibilidade ao território, às práticas e culturas alimentares para que outros jovens possam se interessar, não deixando que a cultura desapareça, se perca no caminho”
Joélho Caetano
gastrólogo e pesquisador

“Os jovens já passaram a olhar para o trabalho agrícola de forma diferente, a perceber que esses trabalhos e tradições ancestrais que a gente recebeu e vem fazendo na comunidade têm importância. É para dar continuidade à nossa cultura”, sustenta.

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