Exposição 'Lia de Itamaracá: Cirandar é Resistir' destaca relevância e pluralidade da cultura popular nordestina
A partir da trajetória da cantora pernambucana Lia de Itamaracá, mostra traz reflexão sobre a amplitude das contribuições de mestres e mestras das culturas populares e tradicionais para o País
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Para a cantora, compositora e cirandeira Lia de Itamaracá, tudo começa e termina no mar. Foi perto das ondas que nasceu e cresceu – muitas vezes acompanhando a mãe, Matilde Maria da Conceição, que trabalhava como marisqueira –, que aprendeu a brincar e dançar e, anos mais tarde, se fez artista, “cirandando a vida na beira do mar”, arte que pratica até hoje, aos 81 anos.
Parte dessa trajetória pode ser conferida pelo público cearense na mostra “Lia de Itamaracá – Cirandar é Resistir”, em cartaz até 11 de maio na Caixa Cultural Fortaleza, que destaca o papel fundamental da artista na cultura brasileira.
Mais do que uma mostra biográfica, o acervo reunido pelos curadores Lia Letícia, Michelle de Assumpção e Beto Hees retrata, também, aspectos importantes da vivência de comunidades ribeirinhas e tradicionais, partindo da Ilha de Itamaracá, terra natal de Lia, para explicitar uma história compartilhada por muitas cidades nordestinas.
A exposição também encanta ao destacar a dimensão do trabalho de Mestres e Mestras da cultura como Lia – que, para além da música e da dança, também chegou ao audiovisual, à moda e a outras linguagens artísticas.

Os três curadores da mostra acompanham, há muito, as andanças de Lia pelo mundo. A artista visual e cineasta Lia Letícia também trabalhou na primeira exposição sobre a vida da cantora, em 2013; a jornalista e escritora Michelle de Assumpção escreveu a biografia Lia de Itamaracá, nas Rodas da Cultura Popular; e o produtor cultural Beto Hee é empresário de Lia e guardião do acervo do Centro Cultural Estrela de Lia. A curadoria fotográfica é de Ytallo Barreto, que também acompanha e fotografa os caminhos de Lia há muitos anos.
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Mostra reúne rico acervo em diferentes linguagens

Quem chega às galerias do primeiro andar da Caixa Cultural Fortaleza já é convidado a adentrar o universo mágico de Lia e da cultura popular pernambucana: na entrada, uma boneca gigante de Lia, feita pelo artista olindense Silvio Botelho, dá boas-vindas aos visitantes.
No salão, as obras são múltiplas como a arte de Lia; há fotografias, instrumentos musicais, figurinos, registros audiovisuais e itens de decoração, além de recortes de jornais e outros documentários históricos. Na parte final do passeio, uma instalação chamada “Sossego de Lia”, com redes e barulho do mar, remete à Praia do Sossego, onde a artista nasceu.

A mostra é dividida em três eixos, nomeados com trechos de músicas de Lia de Itamaracá – Verde Louco, Quem é Essa Preta? e Ciranda no Mundo –, e reúne ainda mobiliário, artesanato e itens afetivos da casa de Lia.
Há ainda a obra de realidade virtual “Mar de Lia”, concebida por Beto Hees e pelo pintor letrista Tuca, que convida o visitante a navegar pelos mares e a dançar ciranda na Ilha de Itamaracá em uma jangada “imaginária”.

A curadora Lia Letícia destaca que a pluralidade da mostra – versão atualizada da primeira exposição de artes visuais feitas em homenagem e em diálogo com a artista, em 2013 – parte de uma vontade de posicionar a ciranda e a cultura lugar “como um lugar vivo, fora das ‘caixinhas de folclore’”.
E não há personagem melhor para exemplificar essa máxima: além da ciranda, Lia atuou em filmes e séries, influenciou e inspirou estilistas, se tornou Doutora Honoris Causa pela UFPE e cidadã do mundo, com shows em grandes festivais, turnês na Europa e parceria com outros grandes artistas, como o cantor, compositor e pianista norte-americano Jon Batiste, grande fã da cantora.
Entre as dezenas de títulos relevantes que Lia recebeu estão o de Doutora Honoris Causa da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e o diploma da Ordem do Mérito Cultural (OMC). A artista também é Patrimônio Vivo do Estado de Pernambuco.

Mostra trata de desafios, mas foca no brilho de Lia
Ainda que longeva e prestigiosa, a mostra nos lembra que a carreira da cantora não surgiu “do nada” nem aconteceu sem intercorrências. Como mulher preta, nordestina e de origem simples, Lia demorou a ser alçada ao tamanho de sua obra.
Em Itamaracá, é conhecida há quase seis décadas; mas, apesar de ter lançado seu primeiro disco em 1977, só voltou a gravar novos trabalhos a partir de 2000, obtendo maior destaque no cenário nacional e internacional apenas na última década.

“A gente não pode desvincular [essa mostra] da palavra resistir’, que tem um pouco do que a própria Lia fala sobre insistência”, destaca a curadora. “A gente não pensa sobre Lia; a gente pensa a partir de Lia, toda a equipe da exposição, assim como a equipe de produção dos shows dela. A gente pensa muito a partir das coisas que ela mesma nos ensina”, completa.
Um dos ensinamentos, segundo Lia Letícia, é de que o exemplo de sucesso de Lia não deve vir acompanhado de um discurso que ameniza os desafios enfrentados pelos fazedores de cultura popular.
“Ela fala muito: ‘eu sou uma exceção na cultura popular’, porque ela chegou num patamar… e ainda demorou muito pra [chegar] nesse patamar que ela está, né, com 60 anos de carreira. Mas ela é exceção”, pontua a curadora.
“A gente sabe que todos esses artistas do Nordeste têm um universo, e a riqueza de todas as linguagens que eles trabalham ainda é pouco vista”, completa.
Lia em Fortaleza: “Receber flores em vida”

Entre os objetos e documentos históricos do acervo que compõe a mostra está a reprodução de uma matéria do Diário de Pernambuco, publicada em 23 de julho de 1973, com o título “Diário descobre Lia da Ciranda” – narrativa muito similar à ocorrida com a escritora Carolina Maria de Jesus, cujas herdeiras até hoje lutam contra a alcunha de “artista descoberta por um jornalista”.
Com palavras racistas e falas de seus então patrões como forma de “comprovação” da arte de Lia, a matéria do DP ilustra parte do racismo que Lia sofreu no início da carreira – e põe em debate o quanto mulheres pretas e periféricas seguem alvo de preconceito, seja explícito ou velado, dentro e fora da indústria musical.

Segundo Lia Letícia, a matéria foi incluída na mostra pelo atravessamento que o racismo teve na história de Lia, algo que “não pode deixar de ser comentado” em uma exposição que trata de sua biografia.
“No entanto, a gente trata esse tema a partir da trajetória de Lia, e como ela insistiu mesmo com toda a questão da racialidade e do racismo no País, principalmente na cultura popular”, ressalta a curadora.
“A gente não deixa passar esse tema [do racismo], mas trata dele principalmente a partir da vitória, né? Porque eu acho que Lia é uma história de vitória”, completa. “Então a gente traz essa matéria, mas a gente traz também todos os títulos que ela recebeu”, lembra Letícia, para depois se corrigir: “Alguns dos principais, ou seria uma sala inteira”, pontua.
Lia em Fortaleza: “Receber flores em vida”

Nos dias 8 e 9 de março, no marco de um mês da exposição, Lia de Itamaracá estará presente novamente em Fortaleza para atividades na Caixa Cultural. Além de uma visita guiada para os visitantes, Lia participará da roda de diálogo “Racismo na cultura popular”, de uma vivência sobre ciranda e fará duas apresentações: uma com o DJ Dolores, produtor do álbum “Ciranda Sem Fim” (2019), e uma com seu repertório tradicional de cirandas e cocos de roda, no show “Ciranda de Lia”.
“Eu acho que [ela] é a pessoa mais empolgada sempre, de todas”, brinca a curadora Lia Letícia. “Como ela mesma fala: ‘eu quero as homenagens em vida, quero receber flores em vida’”, completa.
A oportunidade de conhecer os mares, ruas e canções da Ilha de Itamaracá pelos olhos da própria Lia, garante a curadora, é única. “Ela vai poder mostrar um pouco e contar sobre cada pedacinho dessa exposição”, promete.
Serviço
Lia de Itamaracá na Caixa Cultural Fortaleza – Roda de conversa, vivência e show
Quando: 8 de março, a partir das 16h
O quê: Roda de diálogo “O racismo na cultura popular” e apresentação de Lia de Itamaracá e DJ Dolores
Quando: 9 de março, a partir das 16h
O quê: Vivência “Aprendendo a cirandar” e show “Ciranda de Lia”
Exposição “Lia de Itamaracá – Cirandar é Resistir”
Quando: Até 11 de maio de 2025
Horário de funcionamento: Terça a domingo, das 10h às 18h
Onde: Caixa Cultural Fortaleza (av. Pessoa Anta, 287 - Praia de Iracema)