Três vezes Carolina Maria de Jesus: livros resgatam a indomável força da ‘escritora favelada’

Com diários relançados, a autora negra tida como improvável avança como farol de revoluções

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Dois projetos chegam agora às mãos do público contemplando o testemunho monumental de Carolina enquanto mulher negra, periférica e escritora
Foto: Divulgação

1º de novembro de 1960: “Despertei as 4 horas e fui escrever, porque eu não tenho tempo de escrever durante o dia. Tenho que cuidar da casa”.

15 de novembro de 1960: “Passei o dia deitada com falta de ar. Os meus pes estão inchados. Estou indisposta. Se eu soubesse que ser escritor era assim, tão sacrificado, eu continuava catando papel. É horrível viver atribulada”.

10 de fevereiro de 1961: “Será que existe pais civilisado? Quem é civilisado não prejudica o proximo. Com a capacidade que eu tenho eu devia ter nascido na Africa. Lá Africa eu predominava. E aqui eu sou predominada. Tenho que andar curvada”.

 

Conceição Evaristo é a responsável por cunhar o termo “escrevivência”, em meados de 2005. Mas essa vida que se escreve nas experiências de cada pessoa sempre delineou trabalhos de nomes como Carolina Maria de Jesus (1914-1977). É dela a autoria das frases do início desta matéria, presentes nos diários que mantinha como forma de não sucumbir diante das intempéries internas e daquelas alargadas no cotidiano.

Entre o lamento pelo cansaço da rotina, o modo como observava o panorama político de um país cambaleante e as inúmeras preocupações com os filhos, a escritora tida como improvável transpassou os limites da favela do Canindé (SP), onde morou durante grande parte da vida, e foi alçada como voz sem-par do dia para a noite, mediante a publicação de “Quarto de despejo - Diário de uma favelada”.

À época, o ano de 1960, não se falava em outra coisa nas rodas de conversa do mercado editorial e do público leitor, sobretudo o de São Paulo: então era aquela a literata que fez dos escombros da própria existência o motivo para erguer a voz e chegar, com um misto de sensações, na audiência. 10 mil cópias do livro de estreia vendidas na semana de lançamento. Tradução do texto para mais de 20 idiomas. Festa. Reconhecimento.

Legenda: Tida como improvável, escritora transpassou os limites da favela do Canindé (SP) e foi alçada como voz sem-par do dia para a noite
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Na sequência, um silêncio tão singular quanto esse alardeado apogeu. Carolina passou décadas minimizada, sem praticamente nenhuma menção nos círculos literários considerados hegemônicos e, consequentemente, desconhecida das novas gerações de leitoras e leitores. Um panorama que, nos últimos anos, felizmente tem conhecido outra face. Maria de Jesus adentrou os palcos, as telas de cinema, os eventos dedicados à palavra, penetrou em músicas. 

No ramo literário, claro, também não passou despercebida. Após a publicação de biografias sobre a escritora e de uma miríade de outros trabalhos na seara, chega agora ao mercado outros dois projetos, contemplando três livros, abarcando o testemunho monumental de Carolina enquanto mulher brasileira, negra, periférica e escritora.

A Companhia das Letras resgata, em dois volumes, “Casa de alvenaria” – obra publicada em 1961, também no formato de diário. Por sua vez, a Bazar do Tempo lança “Carolinas - A nova geração de escritoras negras brasileiras”, na qual reúne cerca de 200 textos de mulheres negras de diferentes regiões do País participantes de uma iniciativa envolvendo a tentacular herança caroliniana. 

Ações que, feito situa Conceição Evaristo – ela mesma um prodigioso fruto desse cenário – volvem olhares sobre uma linha matricial criadora de uma poderosa tradição literária: a das mulheres que narram a si sob a luz do que igualmente narrou Carolina.

Legenda: “(...) estou triste e discontente com as condições de vida dos operarios e dos estudantes. Duas classes oprimidas do Brasil", escreveu a autora em 26 de outubro de 1960
Foto: Divulgação

Confissões entre linhas

Em “Casa de Alvenaria - Volume 1: Osasco”, acompanhamos os meses em que a escritora residiu no município do título, localizado na Região Metropolitana de São Paulo. Nesse período – compreendido entre agosto e dezembro de 1960 – é possível acessar anotações de Carolina principalmente a respeito da repercussão de “Quarto de despejo”, desde as viagens de divulgação do livro de estreia até o contato com a imprensa e com figuras políticas.

“A televisão já estava aguardando-me, os fotografos fotografou-me perto dos meus cacarecos que achei no lixo. Eu olhava os cacarecos e pensei nos quinze anos que vivi no lixo”, ela narra no dia 30 de agosto de 1960, por exemplo. 

Na seção “Nota sobre esta edição”, é sublinhado que, a fim de resguardar a integridade da voz e da escrita de Carolina, a nova edição do livro conserva toda a diversidade de registros presente nos manuscritos, “considerando-os marcas autorais imprescindíveis para a adequada recepção de sua obra”.

Completamente refeito e ampliado – herdando, assim, somente o título da versão publicada em 1961 – o exemplar conta ainda com introdução de Conceição Evaristo e Vera Eunice de Jesus. No texto, ambas situam: “Apropriando-se da língua portuguesa e do ato da escrita como direito, Carolina Maria de Jesus se pronunciava, se apresentava como escritora, se reconhecia como poeta, percebendo, contudo, o campo minado em que a sua peleja estava sendo travada”.

Legenda: Olhar-se no espelho e se perceber artista da palavra rodeada de tantos interditos foi minando cada vez mais a vontade de Carolina de estar onde deveria estar
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De fato, não são raras as vezes em que Maria de Jesus reflete não apenas sobre o seu dificultoso contexto de produção, como também a respeito de como as linhas chegam nas pessoas que, feito ela, igualmente viviam em condições degradantes. Em 26 de outubro de 1960, há uma passagem específica na qual ela comenta acerca do panorama de vida de operários e estudantes.

“(...) estou triste e discontente com as condições de vida dos operarios e dos estudantes. Duas classes oprimidas do Brasil. O operario luta para conseguir viver mas o salário é deficiente e o custo de vida é imenso. E os estudantes tem que comprar livros todos os anos, o livro do ano anterior não serve para o ano em curso. E os preços dos calçados? É bem capaz de aumentar por causa dos sapateiros que pleiteam aumentos”.
Carolina Maria de Jesus
Escritora

Nova vida

Esse tom literário localizado entre a memória, o registro e a denúncia prossegue em “Casa de Alvenaria - Volume 2: Santana”. Aqui, textos sobre a nova vida de Carolina após os agitados anos de divulgação do livro de estreia encontram distintas camadas a partir da mudança da escritora para o bairro paulistano de Santana, onde viveria por cerca de três anos.

No trato gráfico, persiste a configuração do primeiro volume do duo de livros – na capa, destaca-se a pintura “Paisagem”, de Lucia Laguna, e, no miolo, além da transcrição dos diários da autora, podemos encontrar também registros dos manuscritos originais. Por sua vez, quanto ao conteúdo deste segundo número, as perspectivas se abrem para compreendermos o gradativo desapontamento de Carolina com a literatura e os desafios de superar as barreiras que a impediam de ser amplamente reconhecida como escritora.

17 de abril de 1961: “Quando eu era jovem tentei incluir-me no meio artistico, fui vedada. Eu queria cantar. Depois fiquei observando qual o nucleo que devia entrar. Lixeiros, mendigos. Para ser mendiga precisa ter defêitos fisicos. E eu sou forte, graças a Deus. Não posso trabalhar como domestica. Porque as ideias literarias impede-me nos afazeres”.

Legenda: Carolina faleceu em 1977 deixando uma estrada infinda de inspirações, sobretudo para mulheres negras e periféricas de várias partes do Brasil e do mundo
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Corta para 9 de novembro de 1961: “Com o decorrer dos tempos pretendo dêixar a literatura. Estou cansando do nucleo. É um nucleo que as pêssoas precisam e devem ser afonica. (...) A livraria ganhou muito dinheiro com o meu livro, fiquei contente, porque estou auxiliando os brasileiros. Quer dizer que eles podem gastar o que ganhar. E eu, não! assim não está certo!”.

Assim, olhar-se no espelho e se perceber artista da palavra rodeada de tantos interditos, foi minando cada vez mais a vontade de ela estar onde deveria estar – o que, felizmente, não a impediu de, em 1972, começar a escrever “Um Brasil para os brasileiros”, autobiografia editada e publicada postumamente como “Diário de Bitita” (1986). 

Ainda que vivendo de forma escassa – mantendo-se com o que colhia da terra, da criação de alguns animais e dos parcos lucros de uma venda à beira da estrada – Carolina falece em 1977 deixando uma estrada infinda de inspirações, capazes de alcançar pessoas dos mais diversos lugares, condições sociais e fazeres escritos.

Tantas Carolinas

Compreendendo a força dessa herança abraçada por milhares de leitoras e leitores, a editora Bazar do Tempo publica “Carolinas - A nova geração de escritoras negras brasileiras”. Organizado por Julio Ludemir e com ilustrações de Thais Linhares, o livro teve seu processo de consolidação forjado a partir de uma formação iniciada em 12 de maio de 2019, quando Conceição Evaristo, Vera Eunice e Flávia Oliveira estiveram reunidas para o primeiro de quinze debates de um ciclo intitulado “Uma revolução chamada Carolina”.

Depois desse instante inaugural de reflexões, aconteceram reuniões com as mulheres participantes durante todas as terças e quintas até o dia 19 de agosto daquele ano, quando se completaram seis décadas da publicação de “Quarto de despejo - Diário de uma favelada”. Foi esta obra, inclusive, que inspirou o presente exemplar, cuja pretensão é reescrever a obra-prima de Carolina Maria de Jesus por intermédio das mãos pretas de suas herdeiras.

Legenda: Tantas Carolinas, ainda anônimas ou sob as luzes do reconhecimento, continuam alimentando o farol das transformações e do bem-querer próprio
Foto: Divulgação

Elas são muitas – professoras, estudantes, catadoras, advogadas, mães. Advindas de quase todos os estados da federação, juntas formam um painel de 180 escritoras e aproximadamente 200 textos em que se exclama a insubmissa vocação para narrar e viver. Nesse processo, os orientadores de formação de cada uma das escreviventes formam um time em que estão presentes figuras do porte de Itamar Vieira Junior e Ana Paula Lisboa, entre outros.

São mulheres que riem, choram, descobrem os próprios prazeres, contestam o sistema, apontam rastros possíveis de existência. A cearense Cianna Braga, por exemplo, participa da coletânea com o texto “Colo de vó”, no qual entra em cena a delicadeza e a força das memórias. Ela assim inicia o relato: 

“Das tardes lindas e repetidas entre avó e neta. Um dia pacato. D. Maria, uma mulher negra, indígena, mãe solo de treze filhos, de fé inabalável, no auge dos seus 100 anos, sentada no chão do terreiro de casa. Ao seu lado o cachorro, já caducando, que ela tratava como filho, o Bonito. À sua frente as diversas plantas medicinais que cultivava com toda sabedoria herdada de seus ancestrais. Se alguém adoecesse, ela tinha uma planta curativa”.

Tantas Carolinas, ainda anônimas ou sob as luzes do reconhecimento, alimentando o farol das transformações e do bem-querer próprio, feito um dia teceu a escritora que principiou as mudanças: “As vezes eu ia ao espêlho. Fitava o meu rosto negro e os meus dentes nivios. Achava o meu rôsto bonito! A minha cor preta. E ficava alegre de ser preta. Pensava: o melhor presente que Deus deu-me. A minha pele escura. Como é bom ser preta”.

 

Casa de alvenaria - Volume 1: Osasco
Carolina Maria de Jesus

Companhia das Letras
2021, 232 páginas
R$39,90/ R$27,90 (e-book)


Casa de alvenaria - Volume 2: Santana
Carolina Maria de Jesus

Companhia das Letras
2021, 520 páginas
R$59,90/ R$39,90 (e-book)


Carolinas - A nova geração de escritoras negras brasileiras
Várias autoras
Organização de Julio Ludemir

Bazar do tempo
2021, 560 páginas
R$60

 


 

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