Qual o lugar do papel na arte e na vida das pessoas? Cearense Samuel Tomé estreia com exposição de memória urbana

'O Papel do Papel', primeira exposição individual do artista visual, está em cartaz no Dragão do Mar

Escrito por
Ana Beatriz Caldas beatriz.caldas@svm.com.br
(Atualizado às 09:36)
Natural de Itapipoca, Samuel Tomé é artista visual e designer gráfico
Legenda: Natural de Itapipoca, Samuel Tomé é artista visual e designer gráfico
Foto: Ismael Soares

Em um mundo cada vez mais tecnológico, qual a importância do papel na sua vida? Que espaço essa plataforma – por vezes, quase obsoleta, em outras, eterna –, ocupa na construção das suas memórias? E na memória coletiva? O que o papel-moeda diz sobre nós? E que histórias contam os cadernos de desenho de uma criança? 

Essas são algumas das reflexões que o artista visual e gráfico Samuel Tomé reúne em sua primeira exposição individual, “O Papel do Papel”, em cartaz no Museu de Arte Contemporânea do Ceará (MAC-CE) até março deste ano. 

Com curadoria de Renata Felinto e Jorge Silvestre, a mostra se assemelha a um diário de bordo do artista. Em três salas, estão reunidos desenhos, colagens, fotografias e vídeos produzidos na última década – mas que remetem a diversas fases da vida de Tomé, desde a infância em Itapipoca, sua cidade natal, até o início da juventude e da vida adulta em Fortaleza – personagem de destaque na exposição.

A mostra de Samuel é uma de três abertas recentemente no MAC-CE – também estão em cartaz “Mandingueira”, da artista Pedra Silva, e “Anunciação: vou te olhar no vazio imenso”, exposição coletiva com obras de Antonio Breno, biarritzzz, Bruno Gadelha, Camila Fontenele, Ella Monstra, Mike Dutra, Rodrigo Lopes e Tamires Ferreira.

Os trabalhos que deram origem à mostra começaram de forma tímida, natural. Hoje mestre em Artes pela Universidade Federal do Ceará, Samuel Tomé sempre foi apaixonado pelo desenho, mas se dedicou, desde os primeiros anos de formação, ao trabalho de designer gráfico – ofício que segue desenvolvendo em paralelo aos projetos autorais.

Interessado pelas artes, mas sem saber o que fazer para se aproximar delas, só começou a olhar para os desenhos que fazia como possibilidade criativa durante a faculdade de Publicidade, após uma amiga, também artista, o estimular a se inscrever no Laboratório de Artes Visuais da Vila das Artes. 

Entrada da exposição reúne alguns dos cadernos de desenho do artista, dos mais antigos aos mais recentes
Legenda: Entrada da exposição reúne alguns dos cadernos de desenho do artista, dos mais antigos aos mais recentes
Foto: Ismael Soares

Ali – assim como aconteceu quando mudou de Itapipoca para Fortaleza na adolescência – um novo mundo se abriu. “O papel era, de fato, esse suporte inicial. Depois, comecei a observar outras coisas que também podem ser [arte], como o desenho digital”, explica. 

Nos anos seguintes, Samuel começou a expor em mostras coletivas e a elaborar um projeto de mestrado que buscava investigar os processos criativos e as dinâmicas pessoais que compunham a trajetória de um artista. A pesquisa deu origem à dissertação “PAPELPAPELPAPEL: contradispositivos poéticos de circulação pública” – que, por sua vez, deu origem à exposição no MAC-CE.

Tento trazer o papel em suas possíveis variáveis, entendendo também essa ambiguidade que o papel tem, de ser uma superfície de trabalho muito frágil, mas que, ao mesmo tempo, é um tipo de suporte que te dá poder. Como o próprio papel-moeda, que é símbolo do Capital.”
Samuel Tomé

Exposição reflete sobre relação da população com a memória e a paisagem urbana

Intimista, a sala inicial da exposição serve como "folha de rosto", e reúne algumas primeiras memórias de Samuel com o desenho: cadernos cheios de ilustrações, um documento de identidade e desenhos feitos em pedra cariri, que simboliza a ancestralidade cearense. Em uma delas, a imagem de um caju remete à origem familiar de Samuel – dos avós agricultores à renda obtida com a venda da castanha de caju, que sustentava a família, lembra o artista.

Já na segunda sala, a relação do artista com a capital cearense se estreita. Algumas das obras que mais chamam atenção dizem respeito à paisagem urbana, mas também falam sobre pertencimento, como peças das séries “Grande Circular” e “Mapas Turísticos”, que reinventam mapas de 2014 que remontam a áreas consideradas “mais nobres” da Capital na época.

Relação com a Cidade e desigualdade social são temas explorados em série feita a partir de mapas turísticos
Legenda: Relação com a Cidade e desigualdade social são temas explorados em série feita a partir de mapas turísticos
Foto: Ismael Soares

Para Samuel, as obras são mais do que conceituais: ele mesmo “estudou” mapas parecidos com esses quando chegou em Fortaleza com os irmãos para estudar em 2002, com o intuito de compreender a nova morada gastando o mínimo de dinheiro possível nas passagens de ônibus.

“Quando eu cheguei aqui, eu tinha essa vontade de conhecer a cidade, mas, ao mesmo tempo, era um menino do interior, meio acanhado com as coisas, o dinheiro meio contado, então a gente precisava dominar muito a cidade para conseguir entendê-la e circular por ela”, conta. 

A obra 'Mapa turístico #2' foi elaborada em parceria com a artista Linga Acácio
Legenda: A obra 'Mapa turístico #2' foi elaborada em parceria com a artista Linga Acácio
Foto: Ismael Soares

Uma das obras que utilizam mapas como suporte remonta a reconstrução da Cidade, indo contra a definição de quais devem ser os espaços de interesse de cearenses e turistas. Outra faz um recorte específico de Fortaleza: aquele pelo qual passa o Grande Circular, linha de ônibus que percorre uma série de bairros e diferentes vivências de uma só vez. 

“Acho que cartografar uma cidade, um espaço, é também delimitar ela. É uma ideia de quem está no poder. Quem desenha esse mapa? Esse trabalho questiona um pouco essas autoridades e essas documentações. É um pouco essa vontade de inventar esses novos mapas, de criar outras cidades”, pontua Samuel. 

O trabalho, assim como outras obras do artista, reflete sobre as ausências. Em um dos mapas, a área da Sabiaguaba é cortada, afastada do interesse turístico. 

Em frente aos mapas, outras obras que revelam memória e ausência – mas também presença humana –e  complementam a pesquisa, como colagens feitas com anúncios comumente fixados em postes das grandes cidades e a série Cardume, que reúne desenhos de peixes que habitam a costa nordestina, feita na época do derramamento de óleo que atingiu a costa brasileira em 2018.

Mostra conta com obra interativa
Legenda: Mostra conta com obra interativa
Foto: Ismael Soares

No centro da sala, uma obra de arte interativa convida o público a construir suas próprias bandeiras, refletindo sobre quais símbolos se repetem nas bandeiras dos estados brasileiros. O espaço conta com carimbos considerados “obsoletos”, de madeira, e papéis à vontade para criação.

De prints de apps de relacionamento a etiquetas de delivery, tudo é memória

Exposição também explora temas como afeto e desejo em tempos de app de pegação
Legenda: Exposição também explora temas como afeto e desejo em tempos de app de pegação
Foto: Ismael Soares

Ainda que as primeiras salas da exposição tragam muitos aspectos pessoais da história de Samuel, a terceira e última sala da mostra – destinada apenas ao público maior de 18 anos – explora outras possibilidades de “folha em branco”: o desejo e as relações afetivas, especialmente quando mediadas por aplicativos de relacionamento, a exemplo de Tinder e Grindr.

Fotografias da obra 'Estou em chamas' refletem sobre as dinâmicas de poder nas cidades
Legenda: Fotografias da obra 'Estou em chamas' refletem sobre as dinâmicas de poder nas cidades
Foto: Ismael Soares

Com obras que misturam amor e sexo, calmaria e revolta, por meio vestígios de uma vida dentro e fora das telas, o espaço é um amontoado de criações feitas entre 2014 e 2024, servindo como vitrine das principais produções de Samuel Tomé. O intuito dessa etapa da exposição é, segundo o artista, “entender as relações de trocas virtuais presentes no nosso cotidiano”.

Entre os destaques da curadoria estão as obras da série “Bicharal”, que retratam a paquera em apps de pegação como uma espécie de caça e fazem com que nos entendamos “enquanto bichos e bichas”, destaca Samuel.

Série 'Print Não Some', cujo título homenageia música do rapper Edgar, recria fotos de apps de relacionamento
Legenda: Série 'Print Não Some', cujo título homenageia música do rapper Edgar, recria fotos de apps de relacionamento
Foto: Ismael Soares

Também chama a atenção a série “Print Não Some”, que conta com 21 pinturas que “recriam” prints tirados pelo artista – muitos deles de homens que conheceu por meio de aplicativos, mas também de personalidades e outras pessoas.

“São fotos de pessoas aleatórias, da internet, que conheci. Mas elas possuem camadas ficcionais, muita coisa foi se transformando”, destaca. Os retratos destacam uma característica importante da poética de Samuel: o deboche, a “tiração”. 

Na obra “Bicha Chão de Taco”, por exemplo, o artista modificou a imagem para incluir um pôster de Renaissance, da cantora Beyoncé. Outra obra “São Amores”, recria uma pose da cantora Pabllo Vittar

Em outra, um fato curioso: o artista passeava por um app quando viu um rapaz posando em frente à uma obra sua. Deu like, o match rolou, mas o encontro não passou da fantasia artística: “A gente deu match, mas ele nunca me respondeu”, conta Samuel, rindo.

Finalizar a mostra com a parte mais bem humorada e diversa de suas criações demonstra o caminho que Samuel busca seguir. Não mais se sentindo um estranho em Fortaleza, ele conta que a primeira exposição individual é, também, parte do encerramento de um ciclo, ainda que vá seguir pesquisando temáticas e superfícies presentes nas obras ali expostas.

Primeira exposição individual de Samuel demarca novo ciclo criativo do artista
Legenda: Primeira exposição individual de Samuel demarca novo ciclo criativo do artista
Foto: Ismael Soares

“Acho que tem uma expectativa de dar um fechamento deste ciclo e de pensar no que serão os próximos dez anos. Tenho pensado um pouco nisso. Uma amiga até me disse para ‘não mostrar tudo’ [na exposição], mas eu mostrei tudo”, brinca. “Tem um pouco sobre a cidade, sobre mim, sobre a minha relação com essas pessoas e com a cidade”, completa.

No momento, o artista segue com atividades relacionadas à exposição, se prepara para tentar um doutorado em breve e segue trabalhando como designer. A ideia é seguir pesquisando e produzindo arte que traga tanto aspectos da infância no interior quanto aspectos muito próprios da dinâmica da Capital, que hoje vê como verdadeiro lar.

“Teve um momento em que eu escolhi Fortaleza”, ressalta. “Amo o fato de ter nascido no interior e amo o fato de ter crescido em Fortaleza, numa cidade maior. Foi a medida certa, o momento certo de as coisas acontecerem”, conclui.

Serviço
Exposição “O papel do papel”, de Samuel Tomé
Onde: Museu de Arte Contemporânea do Ceará (MAC-CE) – Dragão do Mar (rua Dragão do Mar, 81 - Praia de Iracema)
Visitação: Quarta a sexta-feira, das 9h às 18h, e aos sábados, domingos e feriados, das 13h às 18h (com último acesso até as 17h30)
Acesso gratuito
Acompanhe o artista nas redes sociais: @samueltome

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