Entre gratuidade e cobrança de ingresso, espaços culturais buscam aliar acesso e garantia de recurso
Seja em iniciativas privadas ou nas políticas públicas, precificação de ingressos é baseada em diferentes aspectos simbólicos e práticos
Meia-entrada ou inteira, lotes promocionais, nome na lista, ingresso solidário, gratuidade. São diversas as modalidades que permitem — ou não — o acesso do público a um evento ou espaço cultural. Entre iniciativas públicas e privadas ouvidas pelo Verso, o que guia as práticas compartilhadas por gestores e produtores do Ceará reflete uma ambivalência própria do campo cultural: a busca por um equilíbrio entre o estímulo do direito ao acesso e as concretas necessidades de remuneração justa e manutenção de projetos e espaços.
“O campo da cultura é muito complexo: ao mesmo tempo em que uma diversidade simbólica se apresenta, isso se dá dentro de um sistema capitalista onde o que impera é a lógica do dinheiro. Ou seja, ela não está isenta das determinações de mercado e aí começam a se apresentar as dificuldades de como equilibrar essas coisas”, elabora o professor Ivânio Azevedo, diretor do Instituto de Cultura e Arte da UFC e integrante do Programa Cientista-Chefe da Cultura.
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Como reforça o pesquisador, a concretização de produções culturais demanda “custo e pagamento pelo trabalho”. Tal aspecto é uma das principais defesas que produtores culturais de diversas atuações no Estado compartilharam em entrevista ao Verso.
“Muitas vezes, é daí (bilheteria) que vem a grana que a gente tem pra pagar equipe. Se a gente vende pouco ou coloca um valor muito abaixo do que tem sido praticado nos espaços, a gente não consegue se pagar”, explica izzi vitório, produtor executivo do cantor cearense Mateus Fazeno Rock.
“Nossa motivação primeira é conseguir pagar nossa equipe artística e técnica antes de mais nada. Como produtor, considero que a força do nosso trabalho em arte é sempre e primeiro advinda de recursos humanos”, aponta.
Tais “recursos”, inclusive, incluem mais do que somente um artista em destaque no palco, como ressalta Renata Monte, uma das diretoras da produtora Peixe-Mulher. “Envolve técnico de som, de luz, roadie, galera da comunicação, das mídias. Há uma série de trabalhadores da cultura envolvidos numa produção em que, às vezes, você vê só uma pessoa no palco”, elenca a produtora.
Com experiências de produção espetáculos teatrais, festas e shows de nomes como os humoristas Moisés Loureiro e Denis Lacerda e o ator e cantor Silvero Pereira, Renata compartilha que a precificação em eventos da produtora é alinhar essa necessidade de remuneração com o acesso do público.
“Em Fortaleza, sinto que há uma dificuldade das pessoas comprarem espetáculos locais por um preço um pouco mais alto. Na hora de precificar, a gente precisa de um valor que cubra os custos, mas também que seja acessível para que pessoas frequentem o espetáculo ou show”
O “jogo de cintura” entre as necessidades também é marca da trajetória da barraca de praia Foi Sol, na Praia da Leste, como compartilha o produtor e gestor Alécio Fernandes. Iniciativa descentralizada de arte, cultura, lazer e entretenimento, o espaço busca estabelecer com os frequentadores o entendimento da importância do apoio ao negócio.
“A gente tem como objetivo descentralizar o acesso à cultura. Desenvolvemos uma produção de cultura preta favelada na cidade e a gente pauta, principalmente, a filosofia de fortalecer artistas que estão na cena e que estão aí agitando o movimento cultural periférico”, explica. “Existe uma perspectiva política de mostrar pra galera a importância que é fortalecer os eventos para a gente poder dar continuidade”, avança Alécio.
Outras formas de ingresso
De acordo com a 4ª edição da pesquisa “Hábitos culturais” — lançada em dezembro de 2023 pelo Observatório da Fundação Itaú e o Datafolha —, questões financeiras são um dos motivos centrais que levam o brasileiro a não realizar atividades presenciais.
O valor do ingresso é citado como impeditivo para 12% dos entrevistados, enquanto 7% citam gastos com deslocamento e 4% apontam dificuldades e falta de dinheiro em geral. Nas práticas dos produtores, diferentes iniciativas tentam estimular a aquisição de ingressos a partir de diferenciais e abrir possibilidades de gratuidade para determinados públicos.
“Não fazemos só inteira e meia em nenhum projeto da gente. A gente faz venda de lote promocional, ingresso solidário, ou os dois”, resume Renata Monte. “Conseguimos colocar um valor no meio do caminho, que dê para cobrir custos e pagar cachês justos dos trabalhadores, mas também fazer com que as pessoas consigam ter acesso”, explica.
dos entrevistados na pesquisa "Hábitos Culturais" apontam o valor do ingresso como impeditivo para acessar programações culturais presenciais
Já nas apresentações de Mateus Fazeno Rock, izzi aponta como prioridade a prática que prevê conceder gratuidade de acesso em espaços de cultura e lazer a pessoas trans e travestis. “Desde o nosso primeiro show com uma estrutura um pouco maior e parecida com hoje, lutamos pela existência da lista transfree”, defende.
Para o produtor, a efetivação da lista encontra dificuldades no fato de que, apesar de fortalecida em festas e shows, ela não é estabelecida oficialmente em todos os eventos e equipamentos, públicos ou privados. “É o artista que escolhe fazer ou não”, aponta, explicando que a equipe destina as cortesias recebidas para a transfree.
Além disso, izzi também cita uma falta de entendimento do público sobre a prática. “Nos últimos shows que fizemos com a lista, muitas pessoas cis se inscreveram e percebi que ainda falta muito letramento do nosso público acerca dessa questão”, avalia o produtor, que adianta o plano de produzir conteúdos para as redes sociais que expliquem o método.
Na Barraca Foi Sol, o espaço e as programações são, geralmente, abertas. “A gente não priva, deixa aberto, então qualquer um pode acessar e consumir a programação cultural. A gente procura cada vez mais democratizar, mas de uma forma que consiga também criar mecanismo de sustentabilidade a partir do apoio financeiro”, explica Alécio.
Para estimular esse apoio, a barraca oferece diferenciais. “Quando você compra o ingresso, tem acesso a uma pulseira que dá direito à mesa, cadeira, banheiro e, a depender do evento, também algumas promoções de bebidas”, aponta.
“A gente tenta flexibilizar o acesso, mas também mostrar para a galera o compromisso que temos com a valorização e a não precarização de trabalhadores da cultura, principalmente o que é preto, favelado, LGBTQIAPN+, de quem a gente tá muito próximo”, ressalta o produtor.
Palcos públicos, shows pagos
As apresentações de Mateus Fazeno Rock reúnem a chamada “Família Fazeno Rock”, grupo de artistas de diferentes linguagens e vindos de diferentes periferias. Em novembro de 2023, Mateus fez show no Cineteatro São Luiz, equipamento cultural do Governo do Estado, que teve ingressos a R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia).
“Foi um show completão, com figurino inédito, trouxemos a Jup (do Bairro, cantora paulistana, como convidada), alugamos a estrutura de led. O cachê que a instituição ofereceu foi um ponta pé inicial e a gente contou com bilheteria para pagar a equipe, garantir a estrutura, logística”, descreve izzi.
A prática é uma das possibilidades de ocupação de um equipamento público por iniciativas que não são promovidas pelo próprio ente governamental. Coordenador da Rede Pública de Espaços e Equipamentos Culturais do Ceará (Rece), Caio Feitosa explica que a “política majoritária” da Secretaria da Cultura do Estado é a gratuidade em ações desenvolvidas pela pasta.
Já em eventos não fomentados pela secretaria, mas que ocorrem em palcos da Rece, há a possibilidade de cobrança de ingresso. No caso, artistas e produtoras adquirem a chamada “pauta” dos equipamentos, ou seja, a possibilidade de ocuparem a infraestrutura de espaços como o Cineteatro São Luiz ou o Theatro José de Alencar, por exemplo.
Há possibilidades da bilheteria cobrada nestes casos ir toda para a produtora e artista, ou ser dividida entre eles e o próprio equipamento. “O recurso arrecadado, por óbvio, contribui para essa manutenção, seja partindo da bilheteria ou seja nos valores de pauta que temos praticado”, afirma o coordenador.
Para o uso de cada equipamento, há um valor específico de pauta que pode ser pago integralmente, em parte ou isento, dependendo do perfil da proposta de espetáculo ou show, como compartilha Helena Barbosa, superintendente do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.
“Tem pessoas de quem cobro meia pauta, porque é um projeto que tem ligação com o Centro, tem projeto que a gente entra em parceria e não cobro pauta nenhuma. Receita própria não é o que sustenta a gente, é um complemento, e a política do Dragão nem se constrói nisso”, afirma a gestora. “Quando a gente cobra pauta, ela é uma contribuição para a manutenção do equipamento, porque quem mantém investimento para o funcionamento é o Governo”, dialoga Caio.
“O Dragão é um equipamento público que tem oferta cultural. Em virtude dessa missão, já é outra coisa, não tem que parametrizar como se fosse qualquer outro equipamento que se sustenta em torno de bilheteria”
No Dragão do Mar, além dos espaços que podem ser ocupados por eventos promovidos pelo ente público ou não, há cobrança de ingresso em equipamentos próprios do Centro Cultural, como o Cinema do Dragão e o Planetário.
Helena reforça, porém, que os valores praticados são sempre “abaixo do mercado”. “Não é da dimensão da nossa política atribuir um valor que impeça e seja uma barreira para que haja usufruto dos bens e ofertas culturais à população do Ceará”, resume Caio.
Gratuidade como política de vizinhança
Um dos principais equipamentos culturais consolidados do Ceará, o Dragão do Mar irá estabelecer a partir de abril deste ano o chamado Programa de Gratuidade para as Comunidades Vizinhas, que irá conceder gratuidade para moradores do Poço da Draga, Moura Brasil e Graviola em ações culturais de espaços do CDMAC promovidas ou não pelo equipamento.
De acordo com a portaria que instituiu o programa, moradores das comunidades poderão acessar gratuitamente o Anfiteatro Sérgio Motta; o Cinema do Dragão; o Planetário Rubens de Azevedo; a Praça Verde; e o Teatro Dragão do Mar. No caso de programações realizadas por parceiros externos, os ingressos para os adeptos do programa virão da cota de cortesias disponibilizada por estes.
O programa é fruto da ação do Núcleo de Articulação Territorial (NAT) do equipamento e, como define Helena Barbosa, um “desdobramento do desafio de construir uma gestão territorializada”.
“Há críticas consolidadas de como equipamentos em geral não conseguem se conectar com seu território, com os vizinhos e agentes que compõem também aquele espaço. Me angustia muito a gente continuar conduzindo um espaço cultural sem avançar na ruptura dessas fronteiras”, aponta a gestora.
“A gente quer acabar com essa história de ‘o nosso entorno’, nos colocando no centro da questão. Quando o Dragão do Mar chega, as comunidades já estão ali”
A partir das diretrizes que guiaram o NAT ao longo deste primeiro ano de atuação, houve o estabelecimento de uma “política de proximidade” em especial com as comunidades vizinhas e, também, com pessoas em situação de rua que ocupam espaços públicos próximos ao Dragão do Mar.
“Para além da política de proximidade, eu preciso de uma política de manutenção de relacionamento, que passa por uma determinação mais permanente”, reforça Helena. O Programa de Gratuidade vem nessa intenção, atingindo o público que tenha mais de 16 anos, comprove domicílio em uma das três comunidades vizinhas e se cadastre junto ao CDMAC e ao NAT.
Políticas futuras da gestão estadual
Apesar da gratuidade ser a prática majoritária da Secretaria da Cultura do Ceará, a pasta vem debatendo e construindo novos entendimentos de arrecadação de recursos que incluem a possibilidade de novas cobranças de pauta dos palcos e, também, de ingressos.
“A secretaria tem um grupo técnico instalado, inclusive com a participação do Instituto Mirante e do Instituto Dragão do Mar, para que a gente tenha uma compreensão do que cobramos e do que é possível cobrar”, explica Caio Feitosa.
De acordo com o coordenador da Rece, a perspectiva da secretaria é passar a cobrar ingresso sobretudo para os museus geridos pela Secult. Ele ressalta, no entanto, que os preços não devem impedir o “uso e o usufruto da população cearense nesses espaços”.
Citando o Programa de Gratuidade do Dragão do Mar, ele adianta que políticas de gratuidade para as vizinhanças deverão ser instauradas em outros equipamentos da rede — além daquelas já estabelecidas em lei, como de meia-entrada e gratuidade para determinados públicos, como estudantes, idosos e professores.
“Majoritariamente, as ações vão continuar com esse perfil da secretaria, que é de ações públicas voltadas ao público de forma gratuita, mas com possibilidade de cobrança porque, inclusive, é um incremento para a economia da cultura”, elabora.