DJ Rapha Anacé mistura cantos tradicionais de povos indígenas com batidas eletrônicas

Projeto Tecno Tapera tem objetivo de preservar e espalhar saberes ancestrais

Escrito por João Gabriel Tréz , joao.gabriel@svm.com.br
Projeto musical do DJ Rapha Anacé reforça lutas e pautas das comunidades indígenas a partir da arte
Legenda: Projeto musical do DJ Rapha Anacé reforça lutas e pautas das comunidades indígenas pela arte
Foto: Débora Anacé / divulgação

A união do toré, coco e outros sons ancestrais dos Anacés — povo indígena cearense que habita territórios em Caucaia e São Gonçalo do Amarante — com batidas eletrônicas tem sido instrumento de afirmação de identidade e salvaguarda de memória. O movimento é fruto do Tecno Tapera, projeto do jovem DJ e liderança Rapha Anacé, cuja atuação artística e política almeja um objetivo: “Fortalecer a comunidade”.

Com 25 anos, Rapha é filho de mãe cearense e pai paraense, tendo nascido em Ananindeua, no Pará. Aos oito anos, ele veio, com a mãe e a família materna, para o Ceará, onde cresceu. 

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“Quando a gente retornou, não se identificava como indígena porque aqui estava num processo, naquela época, de um silenciamento muito grande sobre povos indígenas: não podia falar que era indígena, não podia realizar os costumes, as danças culturais”, rememora.

A partir de atuações de lideranças da época, em especial Júnior Anacé, o reconhecimento da própria ancestralidade foi se firmando na família.

“Ele estava começando a levantar o movimento para resgatar as tradições. A gente começou a se identificar cada vez mais com a cultura, se autoafirmou e se autorreconheceu como indígena com todo o apoio da comunidade”, ressalta Rapha.

Afirmação de identidade

Este processo, ele compartilha, teve a música como um dos pontos centrais. Tendo crescido na infância ouvindo ritmos do Pará, Rapha brinca que “levou um susto” ao chegar no Ceará e começar a acessar o típico forró do estado. 

A este balaio de referências sonoras, o autorreconhecimento indígena somou “batidas dos tambores nas rodas de toré”. “Comecei a identificar que eu gostava muito da música, ritmos e instrumentos de tradição”, aponta. 

Remixes feitos por Rapha Anacé destacam cantos e falas indígenas
Legenda: Remixes feitos por Rapha Anacé destacam cantos e falas indígenas
Foto: Iago Barreto Soares / divulgação

O gosto pelos processos musicais levou Rapha a, inspirado em DJs renomados mundialmente como o francês David Guetta e o estadunidense Marshmello, buscar conhecimentos na área de produção musical. Há quatro anos e apoiado por parcerias importantes, juntou os interesses e deu partida no que se tornaria o Tecno Tapera.

“Eu entendia da linguagem de música eletrônica, contemporânea, só que ainda não tinha me aprofundado sobre a cultura e a musicalidade ancestral. Decidi fortalecer a cultura do meu povo e dos povos indígenas do Ceará e do Nordeste com essa questão de música e discotecagem”, explica.

“Manter, assegurar, resguardar”

Para tanto, o projeto começou a realizar pesquisas com os “troncos velhos” inicialmente da aldeia Taba do Povo Anacé, onde Rapha vive, para gravar cantos e músicas de tradição. “Vinham muitos pesquisadores estudar nossa cultura e não deixavam nada pra aldeia. Simplemente fruiam da cultura, faziam o trabalho e saíam. Quis fazer diferente: gravar e deixar para a comunidade”, ressalta.

Com a permissão dos troncos velhos e das lideranças, os sons gravados passaram a ser remixados e o resultado era mostrado para elas e, se aprovado, utilizado por Rapha em apresentações.

Tecno Tapera compõe Laboratório de Música do Porto Iracema das Artes; na imagem, presença do projeto na Festa da Carnaúba, na Aldeia Indígena Tapeba
Legenda: Tecno Tapera compõe Laboratório de Música do Porto Iracema das Artes; na imagem, presença do projeto na Festa da Carnaúba, na Aldeia Indígena Tapeba
Foto: Alan Sousa / divulgação

O início da concretização das gravações e mixagens se deu já em contexto pandêmico. “A gente mal podia ter contato, como é que a gente ia conseguir manter, assegurar, resguardar essa cultura que é de proximidade, abraço? O Tecno Tapera surgiu também com essa ideia de conectar”, define Rapha.

O DJ ressalta a primeira faixa produzida, “Lá na Nossa Aldeia Tem”, em parceria com o jovem sanfoneiro e cantor Kayro Oliveira, também Anacé. “A gente utilizou samples de uma liderança nossa que acabou tombando por conta da covid. Então, a voz dele tá eternizada na música e as lideranças entenderam esse processo”, atesta.

Demarcar o som e os palcos

“Remix indígena demarcando através do som”, diz a descrição do perfil do Tecno Tapera no Instagram. A afirmação ecoa a junção entre arte e política presente na iniciativa. “A gente busca trazer a realidade do que ainda acontece”, define Rapha.

Luta por demarcação das terras indígenas, denúncias de perseguições e violências e respostas ao apagamento indígena no Nordeste são temas presentes. “Busco dar visibilidade para esses povos e para essas lutas, que são do cotidiano das aldeias e comunidades”, reforça. 

Da mesma forma que somou importantes referências importantes durante o crescimento e amadurecimento na aldeia Taba do Povo Anacé, Rapha busca ser também espelho e inspiração para novas gerações.

Além da atuação como DJ, Rapha Anacé também é uma jovem liderança indígena
Legenda: Além da atuação como DJ, Rapha Anacé também é uma jovem liderança indígena
Foto: Iago Barreto Soares / divulgação

“A minha trajetória foi feita de apoio das lideranças, dos troncos velhos, e tento fazer a mesma coisa com a juventude que está se levantando. Estou aqui por ela, pra quebrar paradigmas, pra criar espaço de fala, pra que eles possam se autoafirmar”, reconhece.

“Hoje, quando eu termino de tocar e demarcar palcos, vejo crianças cantando as faixas que toquei. Mas o que eles estão cantando são as falas dos pais e avós deles. Não é um som que o Rapha tá tocando, são essas falas, então eles nunca vão esquecer”, confia.

Coletividade para somar

O projeto Tecno Tapera compõe, atualmente, a 11ª edição do Laboratório de Música da Escola Porto Iracema das Artes, equipamento de formação artística do Governo do Ceará. Sob o título “Tecno Tapera – Na Minha Aldeia”, ele tem autoria de Rapha em parceria com os artistas Iago Barreto e Emanuele Anacé, além de contar com tutoria de Furmiga Dub.

Ressaltando a importância do incentivo da política pública do Laboratório, onde o projeto encontra espaço de experimentação, pesquisa e desenvolvimento com apoio inclusive financeiro, Rapha destaca ainda a relevância da presença da cultura indígena na iniciativa.

Emanuele Anacé, Rapha Anacé e Iago Barreto compõem o projeto Tecno Tapera no Porto Iracema das Artes
Legenda: Emanuele Anacé, Rapha Anacé e Iago Barreto compõem o projeto Tecno Tapera no Porto Iracema das Artes
Foto: Alan Sousa / divulgação

“Quando a gente entra num espaço — e a juventude indígena está tendo cada vez mais consciência disso —, entra para demarcar e dizer ‘não sou só eu, abram mais espaço para as pessoas poderem vir’”, afirma, lembrando ainda do projeto “Entroncar a Jurema”, da atual edição do Laboratório de Teatro do Porto, com os artistas Jardel Anacé, Yuapenu Juká e Yakekan Potyguara.

A partir do Tecno Tapera e das pesquisas e produções musicais, Rapha vem acumulando experiências de apresentações em equipamentos e eventos do Ceará — como Festival Elos, II Jogos Indígenas Jenipapo-Kanindé, Sesc Povos do Mar e Estação das Artes — e do Brasil. 

Na quinta-feira (14), inclusive, ele participou do Festival Brasil é Terra Indígena, realizado em Brasília e que teve na abertura, na quarta-feira (13), a presença do também cearense DJ Ítalo Tremembé. As possibilidades de circulação do projeto e da própria arte são motivo de celebração e gratidão para Rapha.

“Agradeço o apoio das lideranças por confiarem e acreditarem no projeto. A gente vê no resultado que não se perde a essência, que é a luta pela terra, a demarcação já, o não tirar o pé do chão. A gente existe e resiste”, finaliza.

DJ Rapha Anacé

Siga: @raphaanace e @tecnotapera
Ouça: "Lá na Nossa Aldeia" clicando aqui e "Tecno Carimbórizando" clicando aqui

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