Inspirada na xilogravura, tatuadora cearense produz artes autorais: “Por que não na pele?”
Gravurista e tatuadora sobralense Lia Aguiar assina artes que partem da estética e de técnicas da tradição da gravura para criar tatuagens autorais
As artes assinadas pela sobralense Lia Aguiar são marcadas pelo encontro entre duas expressões artísticas destacadas por ela como “milenares”: a gravura e a tatuagem. A partir de pontos de aproximação e de distanciamento entre elas, a cearense estabelece uma prática autoral e artesanal que faz a estética e a técnica da tradição nordestina saltarem da matriz para a pele.
Sob a alcunha de Oficina Pira, Lia é tatuadora residente do estúdio Madame Tattoo, no Bairro de Fátima. Lá, atua trabalhando com o estilo de “gravura tattoo”, que traz no processo e no resultado especificidades da prática tradicional no Nordeste.
O contato inicial com as duas expressões surgiu na trajetória da artista a partir de gostos pessoais. Formada em Arquitetura e Urbanismo — curso que “tem um pezinho na arte, de alguma forma”, ressalta —, ela compartilha que sempre teve interesse, enquanto admiradora, em xilogravura, além de desde cedo ter começado a se tatuar.
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“Eram duas artes que eu gostava muito. Não percebia tanto as similaridades, mas elas caminhavam na minha vida e me tocavam bastante”, avança. Do encantamento, veio a busca pela prática.
Em 2017, Lia foi aluna da Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho, equipamento de formação do Governo do Estado. “A gente estudava xilogravura, serigrafia, litogravura, vários tipos, e isso só confirmou meu encanto. Essa arte é muito única, garante singularidade mesmo que seja uma reprodução”, elabora.
“Você tem uma matriz que vai sendo reproduzida de diversas formas e em diferentes superfícies. Mas, independentemente de quantas vezes você usar, toda impressão vai ser diferente, seja pelo peso da pressão na prensa, pela tinta. Como é um trabalho artesanal, manual, sempre vai ser diferente”, segue a artista.
Ao longo do contato com a técnica e na prática como gravurista, Lia apostava em experimentações com a arte tradicional. “Aí é que deu o estalo: a gravura é uma matriz que pode ser aplicada em várias superfícies — por que não na pele?”, descreve.
“Comecei a refletir um pouco sobre esses processos de encontrar essas similaridades (entre as artes)”, avança. Ambas, para Lia, podiam ser descritas como “um trabalho artesanal de reprodução de uma matriz em uma superfície”. “De certa forma a tatuagem é uma espécie de gravura, também, o decalque é uma espécie de matriz na pele da pessoa”, correlaciona.
A reflexão possibilitou o encontro das práticas a partir de 2020. “Decidi aprender a tatuar já pensando na gravura. Não passei pelo processo de encontrar um estilo, cheguei com ele definido, tanto que foquei em aprender as técnicas mais importantes para conseguir executar esse tipo de tatuagem”, explica.
A atuação profissional com as gravuras tattoo, então, começou em 2022. Nela, Lia uniu às técnicas tradicionais que aprendeu não apenas a própria assinatura autoral, como também adaptações necessárias para o processo.
Passo a passo
O diálogo com quem quer se tatuar é o primeiro passo. A artista tanto recebe ideias por encomenda, que são depuradas conjuntamente, como tem matrizes “criadas da cabeça”.
Essas são o que se convém chamar no léxico da tatuagem como “flashes”, termo que Lia evita utilizar. “Porque dá a sensação que é uma coisa rápida, mas não é”, ri-se. “O processo é um pouco diferente, tem um ritmo um pouco mais lento do que o normal de um estúdio de tatuagem”, explica.
Após a conversa inicial, o desenho é rascunhado pela artista no papel. A imagem, então, vai para o linóleo, material emborrachado onde a ilustração produzida é entalhada com o auxílio da goiva, ferramenta comum na produção de gravuras.
A escolha de material se dá para adaptar o processo ao corpo. “Na xilogravura, normalmente a gente usa madeira, mas como ela não é tão maleável para se encaixar no corpo e nas curvas dele, uso o linóleo e consigo ter esse encaixe melhor”, explica a artista.
Feita a matriz no linóleo, é a vez de fazer dela uma espécie de “carimbo”: adiciona-se a tinta e a imagem é reproduzida na pele da pessoa que fará a tatuagem. “Pode carimbar quantas vezes a pessoa quiser, escolher o local certo, ver a distorção que acontece no corpo, porque são muitas singularidades”, destrincha Lia.
Com a confirmação do local no corpo, a tatuagem enfim se concretiza com a tinta e a agulha. O processo, porém, não necessariamente para por aí: é possível adquirir a matriz da própria gravura tattoo. Dependendo da negociação, o valor dessa aquisição já é incluído no preço ou pode ser pago depois. Dá, ainda, para alinhar com Lia a impressão da matriz em papel, com valor adicional.
Regional e global
A partir da aplicação de técnicas e estéticas representativas da tradição gravurista do Nordeste, o trabalho de Lia na Oficina Pira comumente traz ilustrações ligadas ao imaginário da expressão popular.
De releituras de obras de artistas como J. Borges à produção de seres míticos e fantásticos comuns nas gravuras de cordéis, as artes de Lia por vezes concretizam como marcas na pele a lembrança de casa. “Tenho muitos clientes que são daqui do Ceará, mas atualmente moram fora do Brasil e quiseram se tatuar comigo para levar uma parte da vida deles”, compartilha.
Apesar dessa verve de referências e reverências à tradição, Lia ressalta que a produção de gravuras tattoo além do esperado. Além das imagens firmadas no imaginário, a estética da gravura também pode ser aplicada de forma diversa, de animais como rinocerontes a elementos marítimos.
“Gosto muito da estética do cordel, mas não queria me limitar a ela porque queria experimentar. Gosto da quebra do tradicional, de trazer uma coisa inusitada, fazer uma mistura e trazer curvas onde os ângulos eram mais retos. Sempre tive uma mão mais curvilínea nas artes, então tentei unir a tradição do cordel com a minha pegada artística”, resume.
Além da pele
“Quando eu comecei na tatuagem, eu não tinha o plano de ficar só nela — e ainda não estou, continuo na gravura —, mas virou meu carro chefe”, reconhece Lia. Apesar da importância da atuação como tatuadora, a artista segue explorando o trabalho em outras frentes.
Da ilustração da capa de um EP da banda cearense Vento Mareia ao desenvolvimento de uma marca, há espaço ainda para produção de prints, participação em feiras, parcerias, projetos pessoais e impressão de matrizes em blusas, ecobags e mais. “Se tem uma palavra que me guia de alguma forma, é experimentação”, atesta.
Oficina Pira
Contato com a artista: no Instagram @oficinapira ou pelo número de WhatsApp (85) 99990-0669
Onde: Estúdio Madame Tattoo (Rua Jaime Benévolo, 1637 - Fátima)