Dia do Folclore: tradições culturais no Ceará se adequam aos tempos de pandemia
Celebrada neste sábado (22), data evoca reflexões sobre como a cultura popular realizada no Estado tem resistido em meio a esse difícil contexto
Desde os seis anos de idade, Débora Sá é abraçada pelas expressões do maracatu. A caminhada iniciou no Maracatu Az de Ouro, um dos mais tradicionais grupos dessa manifestação cultural do Ceará. A partir de um intenso diálogo com nomes como Mestre Juca do Balaio e Mestre Zé Rainha, ela se aprofundou cada vez mais na dança que, até hoje, a encanta e movimenta.
Não à toa, acumula 27 anos de extrema dedicação à prática e atualmente assume o posto de rainha do Maracatu Nação Fortaleza, outra agremiação de grande relevo em solo cearense. “Esse é o meu título maior, nenhuma formação me dá mais orgulho do que essa”, dimensiona a brincante. Contudo, em tempos de pandemia do novo coronavírus, a satisfação vem acompanhada da dúvida: como manter a tradição viva com a pausa compulsória de atividades presenciais?
Débora explica que o grupo do qual faz parte não estava preparado para esse difícil momento. “Nunca imaginamos que isso um dia pudesse acontecer. Tínhamos eventos agendados, ações que passamos o ano inteiro na expectativa de participar, como é o caso do Dia do Maracatu, em 25 de março, logo após o Carnaval. Seria a chance de nos encontrarmos e confraternizarmos”, situa.
“Mas o que posso dizer é que a cultura contribui para a nossa sanidade, o maracatu cura a alma. É também válvula de escape nesse período de incertezas”, completa. Por isso mesmo, várias estão sendo as alternativas buscadas pelos integrantes para superar o turbulento contexto e continuar a imprimir força e graça, atestando o poder dos costumes populares. Apesar de tudo, eles continuam cada vez mais vivos, atuantes e merecem ser lembrados neste que é considerado o Mês da Cultura Popular, sediando outra importante data: o Dia do Folclore, festejado neste sábado (22).
Inserção
Nesse sentido, a contribuição dos brincantes do Maracatu Nação Fortaleza está sendo realizada no único meio possível por ora, o digital. Na agremiação, existem vários componentes que realizam trabalhos em amplos segmentos artísticos, a exemplo de música, dança, artesanato, teatro, entre outros. Assim, cada um, dentro da proposta de maracatu, começou a realizar transmissões ao vivo, gravar vídeos e publicar na internet.
“Eu e minha família resolvemos filmar de dentro da nossa casa a caracterização de personagens de maracatu. Um de meus irmãos, o músico Kadu Lopes, fez uma oficina que foi transmitida na live do Theatro José de Alencar, com o tema ‘Música e brinquedo popular, nos recicla e faz voar’. A dificuldade é que não estamos no online enquanto grupo, mas individualmente tentando atingir o todo. Então, dentro das possibilidades, repassamos o que aprendemos com os nossos mestres, tentando manter viva nossa cultura nesse momento”, conta Débora.
Eles também foram selecionados pelo edital Cultura Dendicasa, da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE), para repassarem saberes e costumes. Apesar de o projeto aprovado – “Meu maracatu é de casa e nessas redes vamos nos encontrar” – não ter sido idealizado pelo Nação Fortaleza como grupo, mas pelos integrantes, não deixa de ser uma boa oportunidade de alcançar mais pessoas.
“Bastou olharmos à nossa volta para percebermos que tínhamos praticamente a representação de todos os personagens do maracatu. Então, meu irmão, Luiz Carlos, começa o vídeo para o projeto contando a história dele no maracatu e se caracterizando de balaieiro, com o balaio de Mestre Juca. Fala sobre o que ele aprendeu e repassou para as crianças, fundamentais nesse processo de pertencimento e propagação”, detalha.
O vídeo foi gravado de um celular mesmo, sem nenhuma experiência profissional no ramo, mas com muita riqueza cultural e vontade de mostrar que a singular dança é algo presente no sangue e coração da família. Na visão de Débora, o ambiente virtual proporciona um alcance maior, atingindo pessoas que dificilmente iriam a uma apresentação ou desfile.
“No entanto, o que faz de fato a gente dizer que vai brincar maracatu não vai ter. Não vai ter abraço, o contato do brincante pintando o rosto do outro, o batuque suado de tanto tocar e dançar”, lamenta.
Revigoramento
A opinião é compartilhada pelo pesquisador cearense Gilmar de Carvalho. De acordo com ele, a presença das manifestações populares no meio digital de um lado ocasiona a perda do calor da festa; por outro, há a otimização de um reforço do olhar a partir dessa prática, a possibilidade de outras abordagens. Isso implicará na renovação dos costumes, na abertura para outros limiares, aqueles ditados pelas tecnologias.
“Será também uma forma de as tecnologias passarem a ser mais usadas para alavancar muitas festas, quando a vacina chegar. Se a festa exige contato físico, enfrentamento, podemos trabalhar com documentários, discussões sobre muitos aspectos, reflexões teóricas, trabalhá-la nas bibliotecas, gabinetes e nos preparar de outras formas para quando o pesadelo passar”, explica.
Nesse movimento, o estudioso também sublinha que a quarentena pode ser um tempo de gestação de novas práticas, exercícios e reflexões, inclusive para ramos da cultura popular.
“Penso que esta parada pode ser revigorante. Importante não fazer da pandemia uma tragédia. Sairemos vivos e fortalecidos se mantivermos o protocolo da distância física e aproveitarmos o tempo para o teste de materiais, de formas, de texturas. Não sei se sairemos melhores, mas podemos melhorar nossas performances na crise, melhor dizendo, na peste”.
O próprio Gilmar tem escrito um livro sobre cordel e feito vários vídeos no perfil do instagram como forma de não esmorecer diante da intrincada situação. Infelizmente, ainda que aderindo à inserção no meio virtual, há outras realidades de cunho popular que amargam. É o caso dos artesãos do Centro de Cultura Popular Mestre Noza, em Juazeiro do Norte.
Há quase quatro décadas abrigando e formando escultores em madeira, barro, palha, metal e outras tipologias de artesanato, o espaço, mesmo com a venda de artigos realizada pela internet – os produtos estão expostos no site da Popular Arte Brasil – contabiliza queda de até 90% no faturamento na pandemia. Na visão de Gilmar, não é momento para retroceder na esperança, contudo. Deve-se apostar no esforço e na reinvenção. “Acreditar no que diz o provérbio, ‘Tudo o que começa, termina’. E crer que a luz brilha tênue, no fim do túnel”, diz.
Trabalhos
Mais importante nome da cantoria cearense em atividade, Geraldo Amâncio também precisou se adaptar para continuar atingindo o público com suas rimas. O artista já participou de algumas transmissões ao vivo e está fazendo lives próprias durante todos os últimos sábados de cada mês, por meio de canal próprio no YouTube e no facebook.
“Estou colocando de dois a três artistas populares para se apresentar comigo, a fim de ajudá-los financeiramente”, explica, afirmando que os convidados são pessoas das mais diversas linguagens ligadas à cultura popular, tais como repentistas, cantadores, cordelistas, entre outros.
“As gravações acontecem de modo bem artesanal, aqui em casa mesmo, não são como essas mega-produções de outros artistas. Utilizamos dois celulares, a viola e o repente, e conto com o apoio de meu produtor e das pessoas que moram comigo”, detalha.
Feito os integrantes do Maracatu Nação Fortaleza, Geraldo também teve um projeto aprovado pelo edital Cultura Dendicasa, da Secult-CE. Intitulado “Literatura, repente e viola - De casa para todo mundo”, tem como ênfase o compartilhamento de saberes contemplando fazeres tão caros ao poeta. Modo de continuar gerindo fôlego a práticas que, independentemente do contexto, sempre continuarão a inspirar e refletir.
>> Saiba Mais: Entenda as origens do Dia do Folclore e do Mês da Cultura Popular
O pesquisador cearense Gilmar de Carvalho analisa as duas efemérides que celebramos neste período, o Dia do Folclore e o Mês da Cultura Popular. Segundo ele, a primeira é uma festa do mundo inteiro. “Teria sido o dia em que o inglês William John Thoms usou pela primeira vez a palavra folclore, numa carta que escreveu para um jornal. No Brasil, a oficialização da festa veio em 17 de agosto de 1965, na ditadura militar, no contexto da ênfase no ensino da tradição e da importância desse material para a formação cultural do País”, explica.
À primeira vista, parece uma decisão puramente burocrática, mas não foi bem assim. Chegou-se a esse ponto pelo grande número de pesquisadores na busca da ancestralidade perdida. De uma forma descoordenada, por impulso, muita paixão e pouco apoio, os estudos nesse campo se acumularam e mostravam a riqueza e a diversidade culturais brasileiras.
Renato Almeida, Sílvio Romero, Luís da Câmara Cascudo e Mário de Andrade foram alguns que deram contribuições notáveis no plano nacional. No Ceará, Gilmar menciona que se destacaram o paraibano Rodrigues de Carvalho, que reeditou aqui seu ‘Cancioneiro do Norte’, em 1903; Leonardo Mota, com ‘Cantadores’, e Gustavo Barroso, com ‘Ao Som da Viola’. Ambos os estudos são emblemáticos e vieram à luz em 1921.
“Depois, apareceu muita gente, como Filgueiras Sampaio, Josa Magalhães e Eduardo Campos. Foi lançada uma Antologia do Folclore, organizada por Florival Serraine”, completa o estudioso. “Penso que deve ter vindo esta ideia de que o mês de agosto é o mês do folclore ou da cultura popular. As duas expressões, inclusive, parecem sinônimas, mas não o são”.
Conforme Gilmar, o folclore possui um viés mais conservador. De certo modo, luta para manter as tradições. Por sua vez, as culturas populares incorporam uma dinâmica e trabalham com paradoxos, tensões. Veem esse campo de estudos como algo que se move, que não permanece estanque. “O processo avança e faz com que a tradição se ‘contamine’ pelas tecnologias. Saberes, fazeres, folguedos incorporam novas tendências e apontam na direção do futuro”, observa.