De Ednardo a Fausto Nilo, músicos perseguidos pela ditadura são tema de série que concorre ao Emmy
“O Silêncio que Canta por Liberdade” tem oito episódios, foi gravada em quatro estados do Nordeste e concorre na categoria Melhor Documentário
Desde o primeiro disco, a censura começou a cismar. Fiquei numa cela incomunicável, não sabia por que estava ali. Fui preso três vezes, na primeira circunstância no Congresso de Ibiúna. Estas falas pertencem, respectivamente, a Ednardo, Rodger Rogério e Fausto Nilo. Os três são alguns dos protagonistas de “O Silêncio que Canta por Liberdade”.
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Disponível em rede nacional pelo canal de TV por assinatura Music Box Brazil, a série apresenta as memórias de 33 músicos perseguidos pela ditadura militar. E concorre ao Emmy Internacional 2023 na categoria Melhor Documentário. “Queremos deixar um legado para as próximas gerações porque as histórias contadas são histórias silenciadas”.
Quem expressa esse desejo é Úrsula Corona, diretora e uma das idealizadoras da produção. Ao Verso, ela conta que o pontapé do projeto foi destacar como o regime opressor também aconteceu no Nordeste, para além das praças já conhecidas – sobretudo São Paulo e Rio de Janeiro. Alceu Valença foi peça importante nessa travessia ao conversar com a realizadora.
“Ao longo das entrevistas, o mais rico foi ouvir dos músicos: ‘Vocês estão fazendo um bem enorme não apenas para o público em geral, mas pra gente’. Isso porque, de fato, eles não tinham liberdade pra falar”.
No total, oito episódios tratam de ecoar essas vozes, cujo elenco principal é composto por Moraes Moreira (1947-2020), Gal Costa (1945-2022), Gilberto Gil e José Carlos Capinan, representantes da Tropicália. Chico César e o cineasta Cacá Diegues complementam esse primeiro time, que se ramifica e traz mais gente.
As gravações aconteceram na Bahia, no Ceará, na Paraíba e em Pernambuco, e focam personagens que não prestaram depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV) – com retorno anunciado recentemente pelo Governo Brasileiro.
O Pessoal do Ceará
A atmosfera cearense é apresentada no quarto episódio, intitulado “O Pessoal do Ceará”. É quando os três artistas citados no início do texto, além do jornalista e radialista Nelson Augusto, passeiam por canções e acontecimentos que pautaram as vivências de cada um ao longo de duas décadas ditatoriais.
Entre tantas lembranças, Ednardo cita, por exemplo, o caso envolvendo a canção “Terral”. “Mesmo sendo uma música inocente, que fala sem muitas pretensões de coisas políticas, tem um trecho assim: ‘No peito, enganos mil/Na terra, é pleno abril’. Cismaram com essa frase porque ligaram ao 1º de abril, quando houve a eclosão do sistema repressivo no Brasil”.
Nessa mesma composição, o verso “Na praia, fazendo amor” também foi alvo de censura do regime. Não deveria haver qualquer menção ao sexo nas letras. “Mas o Walter Silva, produtor do disco, estava junto da gente na Polícia Federal quando isso ocorreu, e me instruiu a trocar o verso por ‘Falando amor’. Nos shows, porém, eu sempre cantei ‘fazendo amor’”, ri.
Fausto Nilo, preso três vezes pela ditadura, por sua vez detalha a temporada cheia de tensão em São Paulo durante o Congresso de Ibiúna – os três dias no ônibus para chegar, as estratégias de reconhecimento dos pares, o clima sombrio em São José dos Campos. Em certo instante, conta que quase foi fuzilado. “Talvez esse tenha sido o meu momento de participação estudantil como intelectual jovem mais dramático”.
Nomes como Belchior, Téti, Amelinha, Petrúcio Maia, Wilson Cirino e Nonato Luiz igualmente ganham a tela, referenciados em iniciativas como a Massafeira Livre – consolidada por meio de feira cultural realizada em 1979 no Theatro José de Alencar, abrangendo também manifestações artísticas como artes plásticas, cinema e literatura.
Um recorte farto em emoções, beneficiado por imagens de arquivos, trilha sonora afiada e montagem cuidadosa. “ Foi muito triste ouvir e acompanhar tudo, claro. Mas, para mim, é um material muito precioso, no qual a gente conseguiu a disponibilidade dos músicos para contar cada fato e, assim, fazer um registro único”
Para onde não queremos ir
Dividindo a idealização da série com Úrsula Corona, o produtor cultural Omar Marzagão – responsável por, entre outros projetos, a produção da novela “Maria do Bairro” – afirma que um dos pilares de “O Silêncio que Canta por Liberdade” é resgatar a memória nacional em termos de arte e cultura por meio dos artistas participantes.
“Os grandes heróis são eles. O que o Brasil é, culturalmente falando, deve-se a eles. O Nordeste é uma das regiões mais importantes para o país. Foi no Nordeste que a nação começou e onde se desenvolveram várias coisas. É uma região com uma história riquíssima, e o resto do Brasil não conhece essa história. Nenhum brasileiro é quem é sem o Nordeste”.
Ao que Úrsula arremata: “Não medimos esforços para fazer essa série. Por isso, não sei nem dizer o tamanho da emoção. É um projeto muito coletivo. Concorrer ao Emmy já é uma grande conquista. Penso que esse projeto nos faz refletir: Para onde não queremos mais ir? Para onde estamos caminhando com as novas gerações? E, assim, dar valor a uma história que merece muito”.