Assim como Elliot Page, jovem cearense relata descoberta como homem trans

Debate sobre identidade de gênero voltou à tona com o anúncio do ator Elliot Page de ser uma pessoa trans

Escrito por Lívia Carvalho , livia.carvalho@svm.com.br
Legenda: O ator anunciou que é uma pessoa trans na terça-feira (1º)
Foto: Reprodução / Instagram

O ator Elliot Page, conhecido pelos trabalhos em ‘The Umbrella Academy’ e ‘Juno’, revelou pelas redes sociais nesta terça-feira (1º) ser uma pessoa trans. "Olá, amigos, quero compartilhar com vocês que sou trans, meus pronomes são ele/eles e meu nome é Elliot", escreveu o artista. O anúncio do canadense resgatou o debate sobre transgeneridade

Assim como Elliot, diversos outros artistas já declararam não se identificar com o gênero de nascimento, como Laerte e Thammy Miranda. A realidade de homem trans, por exemplo, foi retratada na novela ‘A Força do Querer’, que está sendo reprisada na TV Globo. A trama exibiu o processo de descoberta de Ivan, vivido por Carol Duarte.  

Mais próxima é a vivência de Peter Tanimoto Ricarte, de 19 anos. O jovem de Fortaleza se descobriu homem trans aos 16 anos e, hoje, desfruta da liberdade de ser quem realmente é e até recebeu o título de vice mister trans Ceará 2021.  

Legenda: Peter se entendeu como um homem trans aos 16 anos
Foto: Acervo pessoal

O rapaz conta que, antes de se entender como um homem trans, não se sentia confortável com o corpo que nasceu. “Eu entendia aquilo como depressão, porque eu não tinha conhecimento sobre o conceito de homem trans. Até que assistindo a vídeos no Youtube vi um cara trans ensinando a fazer binder (prática que prende o tecido mamário para ficar com a aparência de um peito liso), a partir dali me vi como ele”, conta.  

Após aprender a técnica com o vídeo, Peter tentou fazer nele mesmo e “foi a primeira vez que fiquei feliz ao me ver no espelho”. 

Vivências 

A descoberta veio repleta de receios, pois, à medida que pesquisava sobre a realidade de pessoas trans, ficava assustado com o preconceito da sociedade. “Com isso, fiquei me negando, foi muito difícil me aceitar e ficava me forçando a ser uma guria que eu não era. Foi ficando cada vez mais difícil e não consegui mais de jeito nenhum e foi quando eu me assumi pra todo mundo”, relata. 

Apesar da felicidade por, finalmente, ser quem é, a identidade afastou pessoas do convívio de Peter. “Depois que me assumi, perdi amigos próximos, perdi familiares”.  

Agora a espera do jovem é para começar o processo transexualizador, que envolve terapia hormonal e/ou cirurgia de readequação de gênero. Vale ressaltar que os procedimentos não são desejo de todas as pessoas trans. “Quero muito fazer a cirurgia e ainda não comecei a me hormonizar, pois é muito caro, é muita burocracia”, lamenta Peter.  

“Hoje em dia, me sinto ótimo, é incrível, ainda tenho questões com meu corpo, mas agora posso me vestir da forma como me identifico e ninguém vai me julgar por isso, não tenho que ficar me escondendo”, acrescenta. 

Identidade de gênero 

De acordo com o Manual de Comunicação LGBTI+ da UNAIDS Brasil, de 2018, transgêneros “são pessoas cuja identidade de gênero transcende as definições convencionais de sexualidade”. Identidade de gênero é definido pelo documento, por sua vez, como a forma que cada pessoa sente que ela é em relação ao gênero.  

Há ainda o não-binário, que são pessoas que não se identificam nem com o gênero masculino nem com o feminino.  

Quebra da expectativa  

Para Kaio Lemos, pesquisador e coordenador nacional do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT), toda a repercussão que envolve o anúncio de Elliot Page tem relação com uma quebra de expectativa cultural.  

“Existe um processo todo já traçado de quem devemos ser, é um processo cultural e, quando isso acontece, há um rompimento dessa cultura, acontece todo esse processo de desconstrução. Uma quebra de percurso daquilo que estava considerado como o normal, como o certo, o ideal. E isso ocasiona as questões de violências e mostram o quanto a nossa sociedade é criada a partir da rede normativa”, explica Kaio que também é um homem trans.
  

Preconceito 

A luta da comunidade trans para a conquista de direitos básicos é intensa e necessária. Somente em 2019, após 28 anos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tirou a transexualidade da categoria de transtornos mentais para ser considerada como “condições relacionadas à saúde sexual” e classificada como “incongruência de gênero”. 

No entanto, apesar da conquista, Kaio pontua que ainda há muito para se debater, já que o preconceito vivido pela comunidade trans é bastante violento. Uma pesquisa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) apontou que houve um aumento de 39% de assassinatos de pessoas transgênero no Brasil quando comparado o primeiro semestre de 2019 com o de 2020.  

“Ainda somos vistos como desajustados, como anormais, há muito preconceito. O movimento trans tem passado por muitas violências, ainda estamos dentro de um cenário que, por mais que tenha todo esse processo de migração, ainda evidencia a invisibilidade e o silenciamento das nossas questões”.  

Para Kaio, a questão da transgeneridade na infância e na adolescência é um tema que precisa ser bastante debatido, já que essas pessoas vivem sob a custódia de um adulto. “Dependendo de quem for o responsável, o entendimento e o pertencimento dessa pessoa é ainda mais difícil, pois isso resulta numa relação de dor, de rejeição”.  

O pesquisador também aponta para a importância da educação escolar nesse contexto, pois os espaços sociais frequentados por esses indivíduos repercutem isso da mesma forma. “Não temos uma educação preparada para dialogar com essas questões”, conclui.   

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