Mulheres indígenas constroem resistência nas universidades e devolvem conhecimentos às aldeias

Ocupando os espaços do ensino superior, indígenas do Ceará utilizam o aprendizado como ferramenta de luta e invertem a produção do saber, passando a escrever as próprias histórias

Escrito por Redação ,
Mulher indígena ingressa no ensino superio
Legenda: Raquel agradece aos antepassados que abriram seu caminho para o ensino superior através de muita luta e reivindicação
Foto: Divulgação/ Iuri Alves Gomes

Com o ingresso no ensino superior, mulheres indígenas do Ceará compartilham a coragem de ocupar espaços acadêmicos e o desejo de retornar às suas aldeias para agregar outros saberes. Essa construção da própria história registra um movimento de resistência dessas mulheres para apresentar outras narrativas sobre suas comunidades e tradições. 

“É um pé na aldeia e outro no mundo”, explica a indígena Jenipapo-Kanindé e recém-formada em Serviço Social pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Raquel da Silva Alves, 22 anos. Tendo saído da aldeia em 2016 por conta dos estudos, sempre teve o plano de retornar.

Esse ingresso é importante para descolonizar esse saber repassado nas universidades. Quando entramos, podemos colocar especificidades que pessoas não-indígenas não possuem.
Raquel da Silva
Graduada em Serviço Social

Legenda: Raquel percebe que muitos indígenas enfrentam mais desafios para continuar os estudos ao entrar na universidade sem apoio emocional e financeiro
Foto: Divulgação/ Iuri Alves Gomes

Utilizando uma escrita acessível para sua comunidade, sempre pesquisou a liderança das mulheres Jenipapo-Kanindé da Aldeia Lagoa Encantada. Em seu trabalho final escreveu sobre “Mulheres da Encantada: Protagonismo Feminino, lutas e conquistas junto ao movimento indígena no estado do Ceará”. 

Apesar de compreender o apoio de pesquisadores não-indígenas e indigenistas, a neta da Cacique Pequena entende que “nada melhor que você escrever sua própria história”. 

O ingresso na universidade é uma ferramenta de luta, é um meio, mas não é um fim. Eu concluí o curso, mas estou na aldeia. Quero agregar à comunidade.
Raquel da Silva
Neta da Cacique Pequena

Abrindo caminho para as novas gerações 

Legenda: Para Rute, a presença do indígena nos espaços acadêmicos possibilita a descolonização dos saberes
Foto: Arquivo pessoal

Após ser a primeira indígena do Brasil a ingressar no mestrado em antropologia da Universidade de Salamanca (USAL) , na Espanha, a jovem Rute Anacé, 23 anos, agora se torna a primeira doutoranda em Ciências Sociais na mesma instituição. 

Desenvolvendo a pesquisa “Terra e Memória: Construção e Reconstrução na Reserva Indígena Taba dos Anacé em Caucaia-Ceará Brasil”, viu também a importância de ocupar esse espaço em que a maioria dos integrantes são pessoas não-indígenas.

É importante pensar que os jovens, ao entrar na universidade, vão dar continuidade à luta, fazer a devolução ao povo enquanto profissional. Por isso, a gente estar nesses espaços das universidades é também uma ferramenta de luta dos povos indígnas. 
Rute Anacé
Antropóloga

Nessa caminhada, os desafios são múltiplos, desde o preconceito até as dificuldades em conciliar a identidade e tradição com o lugar da pesquisa universitária. “É um espaço não preparado para receber indígena. A todo momento temos que afirmar quem somos e de onde vivemos”, percebe Rute. 

Desafios de permanência

Assim como a nova doutoranda, Raquel também entende que a visão estereotipada e limitada do que é ser indígena se configura como um desafio diário a ser enfrentado no ambiente acadêmico. Como a percepção dos povos nativos como atrasados.

Foi muito desafiador desconstruir esse pensamento das pessoas não-indígenas. Já passei por uma situação bem bizarra quando um colega fez o som batendo a mão na boca depois que me apresentei como mulher indígena.
Raquel da Silva
Indígena Jenipapo-Kanindé

Além do racismo, Raquel também aponta a dificuldade que muitos indígenas têm em permanecer na universidade sem suporte emocional e financeiro após sair de suas aldeias. “A gente teve muita perda de indígenas por isso”, reflete. 

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Apesar desses obstáculos, Rute acredita que o fato das mulheres estarem ocupando as universidades abre caminho para que outras indígenas vejam a possibilidade de integrar essa academia com ainda pouca diversidade.

“O meu espaço é onde eu quiser. Enfrentar preconceito e dizer que eu sou capaz enquanto mulher indígena é resistência. Universidade é luta. A gente permanece modificando essa estrutura preconceituosa e racista contra os povos indígenas", finaliza.

Busca pela própria ancestralidade

Legenda: Através da pesquisa sobre cinema indígena, Karina vê essa arte como uma possibilidade de expor a realidade de muitos povos, suas culturas e diferenças por meio de outras narrativas
Foto: Arquivo pessoal

Nascida e criada no bairro Genibaú, em Fortaleza, a bacharela em História da Arte pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Karina das Oliveiras, 28 anos, cresceu percebendo as brechas nas narrativas de sua história familiar.

Apesar das características culturais carregadas por si e seus antepassados, nenhum parente utilizava o termo “indígena”. Após o ingresso no ensino superior, em 2015, começou a olhar com mais atenção para o passado, buscando sua própria ascendência indígena.

Nesse período, pôde se aprofundar na temática da descolonização, da autorrepresentação no Brasil e da memória indígena. Por meio do projeto de pesquisa chamado "Sementes do Cinema Indígena” conseguiu compreender melhor o processo histórico de apagamento dos povos indígenas ao olhar para as produções e narrativas cinematográficas.

Se esse lugar da produção de conhecimento é um lugar de poder e tem a estrutura imposta, no momento que entram esses outros saberes e narrativas, quebra muitas lógicas. Não só acadêmica, mas da própria configuração do imaginário.
Karina das Oliveiras
Criadora audiovisual

Karina vê a importância de entrar nas universidades para “afundar as caravelas” de um conhecimento em grande parte branco e com referências europeias. Com isso, é possível produzir outras narrativas para remodelar o passado e apresentar novas possibilidades de futuro

Movimento coletivo de olhar ao passado 

Há quase 6 anos, Karina olha para o passado de forma mais minuciosa, buscando informações e memórias sobre sua natividade no Ceará. “Pela circunstância do apagamento e da colonialidade estou em retomada da minha história, da minha família e da minha descendência”, explica.

Com partes apagadas de seu passado, desconhecendo com exatidão as próprias origens, Karina não utiliza o nome de um povo. "As políticas de apagamento que a colonialidade foi colocando são estratégias muito minuciosas. Para quebrar a trama do esquecimento, precisamos revisitar as memórias, nos rever."

Nesse processo de resgatar partes do que foi perdido, percebe que esses vazios estão presentes não só em sua história, mas na de muitos outros conhecidos que, assim como ela, também buscam por suas ancestralidades

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