Prefeitura de Aquiraz quer remover área de duna para criar quadras de beach tennis; MPCE é acionado
Projeto também prevê duchas, passarela, bancos e estacionamento, além de instalação de sistema de drenagem urbana
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A Prefeitura de Aquiraz deu início a uma obra que remove parte de uma área de duna para construir um equipamento público com quadras de beach tennis, acesso à praia e estacionamento, além de sistema de drenagem. O Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) foi acionado e instaurou procedimento para apurar a regularidade ambiental da intervenção. Após a gestão municipal ser questionada pelo órgão, a obra foi paralisada.
Denominado “Praça de Esporte e Acesso à Praia do Japão”, o projeto prevê a construção em uma área de dunas frontais — encontradas após a linha de praia, em geral com vegetação de gramíneas — que, segundo a própria gestão municipal, está em uma Área de Preservação Permanente (APP), protegidas pela lei nº 12.651/2012, o novo Código Florestal Brasileiro.
O terreno escolhido para a obra tem área de 4.000 m² e fica no limite do passeio público da avenida Teresa Color e a Praia do Japão, próximo a uma barraca de praia privada. O objetivo é construir quadras de beach tennis, duchas para banhistas, passarela de madeira com acessibilidade para pessoas com deficiência, bancos de madeira e estacionamento.
Além disso, o Parecer Técnico nº 215/2024, enviado ao MPCE pela Secretaria de Meio Ambiente e de Desenvolvimento Urbano de Aquiraz, também aponta a instalação de sistema de drenagem urbana.
O documento justifica a necessidade da obra pela ocupação da faixa litorânea por barracas de praia e restaurantes vizinhos uns aos outros, “o que dificulta o acesso livre e desimpedido da população que se dirige à praia”. Outros objetivos citados são a resolução dos episódios de alagamento da avenida durante o período chuvoso e a atração de turistas para a cidade.
“A Praia do Japão tem um histórico de ocupações na faixa litorânea, principalmente ocupada por barracas de praia e restaurantes, erguidos uma adjacente à outra, redundando numa extensão significativa de ocupação frontal, o que dificulta o acesso livre e desimpedido da população que se dirige à praia”, diz o parecer técnico.
De acordo com o novo Código Florestal Brasileiro, a Área de Preservação Permanente pode ser coberta ou não por vegetação nativa e tem “função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”.
A norma afirma que a intervenção em uma APP ou a supressão de sua vegetação nativa poderá ocorrer apenas nas hipóteses de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental. A Prefeitura de Aquiraz argumenta que a obra se encaixa nessa condição.
“Altíssima sensibilidade ambiental”
Em entrevista ao Diário do Nordeste, o professor Flávio Nascimento, do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), destacou que a área é um “espaço com altíssima sensibilidade ambiental”, com dunas, faixas de praia e planícies fluviomarinhas.
“São áreas extremamente dinâmicas que, de manhã, podem estar em uma situação e de tarde, em outra. Isso já é elemento mais do que suficiente para que tenhamos problemas em quase todas as formas de ocupação projetadas para aquele litoral. (...) Qualquer forma de ocupação ali precisa ser muito bem pensada, diferentemente do que tem ocorrido nos últimos 40 anos, 50 anos”, avalia Nascimento.
A ocupação, segundo o professor, pode causar impactos “profundos” tanto na paisagem, quanto na biodiversidade e nas condições hidrossedimentológicas — a interação entre água e sedimentos. Essas repercussões podem ser locais ou até regionais.
Ele explica que a região onde a obra está localizada está sujeita a migração de sedimentos, que “ora podem estar ali naquelas dunas, ora podem migrar para outro ponto do litoral”. Com isso, qualquer local à oeste daquela área pode ser impactado em decorrência da ocupação de dunas.
“Hoje, no Ceará, a erosão da área costeira não está só ligada à subida do nível médio do mar por conta do aquecimento [global]. Sim, está, mas também em função da imobilização de sedimentos por conta da construção indevida”, complementa.
Em nível local, Flávio Nascimento destaca as seguintes consequências:
- Desconfiguração de paisagens;
- Desequilíbrio do balanço sedimentar local para alimentar as faixas de praia;
- Impacto na biodiversidade, já bem adaptada às condições locais;
- Perda da capacidade de absorção da água da chuva;
- Perda da capacidade de alimentação do lençol freático;
- Dependendo do tipo de ocupação, pode haver demanda por esgoto. Se as faixas de praia e os próprios sedimentos de dunas forem utilizados como sumidouro, pode haver contaminação da água subterrânea.
“Eu diria que é uma área que não deveria ser ocupada e [não deveria ser] proposto o desmonte de dunas, de jeito nenhum. É uma situação grave. (...) Nós temos que manter a potencialidade local, que significa manter as condições físico-naturais locais, a biodiversidade, as dunas, as faixas de praia”, avalia o geógrafo.
Do ponto de vista legal, Nascimento explica que o município tem poder de licenciamento, mas avalia que, normalmente, as cidades não têm capacidade financeira e técnica para isso. “E normalmente eles sofrem mais pressão dos agentes econômicos, e isso pode resultar em situações que não são benéficas para a proteção ambiental”, complementa.
Quanto à previsão de instalar um sistema de drenagem, o geógrafo pontua que é necessário que ele seja “altamente adaptado” às condições locais. “Não pode ser um sistema de drenagem comum. Tem que usar outros materiais, alternativos, que sejam biodegradáveis, com certa resistência”, afirma. Caso contrário, a estrutura pode ser destruída “nas primeiras chuvas mais pronunciadas”.
[Eles argumentam que] não tem acesso e que precisa de drenagem porque [a avenida] está sendo inundada, mas é exatamente porque a área nunca deveria ter sido ocupada com esses tipos de empreendimentos. Uma vez que foi ocupada, tem que regrar o uso do solo, fazer com que esse uso seja trabalhado e mantido adequadamente e, sobretudo, evitar que novas áreas sejam desmontadas.
A reportagem buscou a Prefeitura de Aquiraz, na tarde de segunda-feira, solicitou entrevista sobre a obra e enviou perguntas para a gestão. Foi perguntado, por exemplo, se foram feitos estudos sobre os impactos na área da obra e qual o valor orçado para a intervenção. Porém, não houve resposta até a conclusão desta matéria e nenhum servidor da gestão municipal concedeu entrevista. Caso haja retorno da gestão, a matéria será atualizada.
O Diário do Nordeste também solicitou entrevista com um porta-voz da Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) para tratar sobre o assunto, mas a Pasta não disponibilizou entrevistado.
A reportagem perguntou à assessoria de imprensa se há algum tipo de proteção ambiental vigente em relação à área, se a Semace está acompanhando ou participando das discussões sobre a intervenção ou se em algum momento a Pasta foi acionada pela Prefeitura de Aquiraz, entre outras informações. Também não houve retorno.
Entenda a denúncia
A denúncia foi feita pelo vereador de Fortaleza Gabriel Aguiar (Psol), que solicitou, no dia 8 de abril, apuração sobre a regularidade ambiental da obra por parte do Ministério Público do Estado do Ceará. O parlamentar argumentou que a obra estaria sendo realizada em ponto de desova da tartaruga-marinha e em Área de Preservação Permanente. Três dias depois, ele complementou a denúncia com imagens de um ninho ativo de coruja-buraqueira (Athene cunicularia) no local da obra.
O requerimento foi encaminhado à 3ª Promotoria de Justiça de Aquiraz, que solicitou a íntegra do processo de licenciamento à Secretaria de Meio Ambiente e de Desenvolvimento Urbano (SEMAD) do município. Também foi requisitada a manifestação da Associação de Preservação do Meio Ambiente, Patrimônio Histórico, Educacional e Difusão da Cultura de Aquiraz (Apremace), entidade que monitora as tartarugas-marinhas na cidade.
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Em ofício do dia 15 de abril, o secretário Humberto Bruno Queiroz Sena, titular da SEMAD, afirmou que a Apremace foi consultada antes do início da obra e negou a existências de ninhos de tartarugas-marinhas no local. O gestor também destacou que o município tem “plena legitimidade para realizar a intervenção em Área de Preservação Permanente”, uma vez que é uma obra “de utilidade pública, de interesse social e de baixo impacto ambiental”.
Em resposta ao ofício do MPCE, Francisca Alana da Costa Pereira, presidente da Apremace, e Carlos Antônio Mariano Pereira, coordenador geral do Projeto Amigos do Mar, iniciativa da Associação que monitora e protege as tartarugas no litoral do município, afirmaram que as nove praias de Aquiraz têm “características ambientais importantes para a conservação” dos animais, mas “enfrentam intensa pressão antrópica”.
“Em Porto das Dunas, há grande fluxo de visitantes humanos à noite, enquanto a Prainha recebe alto número de frequentadores durante o dia, essas atividades humanas, aliadas ao tráfego de veículos motorizados, descarte inadequado de resíduos sólidos e construções devidamente licenciadas por órgãos ambientais próximas à linha costeira, comprometem os ninhos e a sobrevivência dos filhotes”, afirma.
O documento ainda destaca que as praias de Aquiraz são “áreas de desova essenciais”, mas que não foram localizados ninhos de tartarugas no perímetro da área em que a obra está prevista.
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