‘Moto Uber’ e ‘99Moto’: serviço funciona desde 2021 em Fortaleza sem regulamentação devido a uma brecha na legislação
Motociclistas conseguiram uma liminar para continuar trabalhando na Capital. Questões de segurança viária preocupam especialistas e a própria categoria

Plataformas digitais como Uber e 99 oferecem o transporte de passageiros por motocicleta em Fortaleza desde 2021. Apesar disso, o serviço ainda não é regulamentado, uma vez que tanto a Política Nacional de Mobilidade Urbana quanto a lei municipal n.º 10.751, de 2018, preveem a execução da atividade por motoristas de automóveis, mas não cita motociclistas. Para atuar na Capital, os trabalhadores valem-se de uma liminar.
Os textos que regulamentam a atividade das plataformas digitais de transporte, tanto ao nível federal quanto municipal, exigem que o motorista vinculado a elas possua Carteira Nacional de Habilitação (CNH) nas categorias “B”, “C” ou “D”, com autorização para exercer atividade remunerada. A categoria “A” — que permite a condução de motos, motonetas e triciclos — não é contemplada.
O serviço de mototáxi, por outro lado, é regulamentado na Capital e, com isso, os trabalhadores seguem uma série de regras determinadas em lei. Atualmente, um projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados busca incluir os motociclistas na legislação referente aos aplicativos de transporte.
Em nota enviada ao Diário do Nordeste, a Empresa de Transporte Urbano de Fortaleza (Etufor) confirmou que as operadoras de veículos por aplicativos são credenciadas junto à Prefeitura para oferecer o transporte privado individual de passageiros apenas por meio de automóvel. “Não há regulamentação na cidade de Fortaleza quanto ao serviço de transporte de passageiros por moto por aplicativo, pois não há Legislação Federal que autorize o serviço”, completou.
“A regulamentação tem essa brecha, mas ela não impede (a atuação dos motociclistas). É por isso que, aqui em Fortaleza, nós trabalhamos através de uma liminar”, afirma Douglas Sousa, presidente da Associação dos Trabalhadores por Aplicativo de Fortaleza (ATAF) e secretário da Associação Nacional dos Trabalhadores por Aplicativo do Brasil.
A ATAF é 100% a favor de uma regulamentação justa para os trabalhadores por aplicativo, em que as empresas tenham responsabilidade de arcar com casos de acidente e (com) reajuste nas tarifas.
De acordo com ele, há aproximadamente 50 mil motociclistas atuando no transporte de passageiros por meio de aplicativo em Fortaleza e a categoria está se organizando para realizar uma paralisação nacional em março.
Para além da brecha na legislação, o debate sobre esse serviço passa por questões de segurança viária e saúde pública. Também há questões econômicas tanto para a população, que encontra nos aplicativos um meio de transporte mais barato, quando para os motociclistas, que conseguem uma renda maior com esse serviço.
Lacuna jurídica
A legalidade da oferta desse serviço por motociclistas vinculados aos aplicativos ganhou repercussão nas últimas semanas pelo embate entre a Prefeitura de São Paulo e as plataformas que levou à suspensão das operações na capital paulista, por decisão judicial, na segunda-feira (27). A Prefeitura alegava descumprimento de um decreto de 2023, que veda a modalidade, enquanto a Uber e 99 alegam que a legislação federal ampara o serviço e vão recorrer da decisão.
O presidente da Comissão de Trânsito, Tráfego e Mobilidade Urbana da Ordem dos Advogados do Brasil — Seção Ceará (OAB-CE), Daniel Siebra, explica que, em Fortaleza, a situação é diferente de São Paulo devido à questão cultural na região Nordeste. Ele aponta que o serviço de mototáxi — legal na capital cearense — e o uso da motocicleta já são um costume nas cidades nordestinas. “Acabou-se tolerando”, diz ele.
Na prática, pela percepção do advogado, a atividade é ilegal. Porém, a proibição dela não seria bem-vista pela população. “No meu entendimento, como não há regulamentação, ele (o prefeito) pode proibir. Agora, se ele vai mexer nisso, eu acho complicado, porque vai ser uma medida muito antipatizada por todos, pelos usuários que utilizam e pelos motoqueiros”, afirma.
Ele explica que há uma lacuna na legislação sobre o transporte particular de passageiro por motos e as plataformas valem-se da regulamentação do serviço de mototáxi. “Mas mototáxi é diferente, porque precisa ter uma moto pintada, a placa é diferente, o mototaxista só tem aquela atividade, a motocicleta que ele utiliza só pode ter aquele fim”, contextualiza.
A implicação jurídica que pode se desenrolar, segundo o advogado, é a situação de São Paulo se repetir em outros municípios. Em Belo Horizonte, por exemplo, a suspensão do serviço tem sido pauta de reuniões entre o Ministério do Trabalho e a Prefeitura da capital mineira.
Em Fortaleza, como os motociclistas são “uma categoria forte, que tem força e voto”, Siebra acredita que uma medida dessa natureza poderia surgir por iniciativa do Ministério Público, por exemplo, com base no problema de saúde pública representado pelas motocicletas. “Quanto mais moto na cidade, mais acidente (vai ocorrer). E essa conta fica para a Prefeitura. Quem vai ter que investir em hospital e custear tratamento é o poder público”, diz.
O serviço de mototáxi foi criado em Fortaleza pela Lei Ordinária n.º 8.004, de 1997 e regulamentado pelo decreto n.º 11068, de 2001. Para atuarem, os motociclistas devem estar habilitados, mediante concessão e autorização dada pela Prefeitura de Fortaleza. A norma estabelece uma série de exigências para os veículos e para os condutores.
Para serem utilizadas em mototáxi, as motocicletas devem:
- Pertencer obrigatoriamente ao titular e estar com a documentação rigorosamente completa e atualizada;
- Ter potência de motor máxima equivalente a 200 cilindradas e mínima equivalente 125 cilindradas;
- Ser licenciados pelo Departamento Estadual de Trânsito (Detran) como motocicleta de aluguel e terem placas vermelhas.
- E, ainda, seguir uma série de características padronizadas, como cor, dispositivo luminoso para identificação, uso de material no cano de descarga para evitar queimaduras, entre outras.
Os mototaxistas devem:
- Dispor de dois capacetes com viseiras para uso obrigatório do condutor e do passageiro;
- Transportar toucas descartáveis para uso do passageiro;
- Usar obrigatoriamente luvas;
- Ter idade mínima de 21 anos ou, no mínimo, dois anos de habilitação com a comprovação de um curso aprovado para este fim;
- Manter seguro de vida para o passageiro que estabeleça indenizações em caso de morte acidental, invalidez permanente e invalidez parcial, com valor de prêmio do seguro atingindo um mínimo determinado pela lei.
- Inserir, em local visível de seus uniformes ou de seus capacetes, o grupo sanguíneo e o fator RH como itens padrão de sua identificação.
Nacionalmente, o serviço de mototáxi foi regulamentado em 2009, por meio da Lei n.º 12.009, que também contempla a atividade de moto-frete para entrega de mercadorias.
Um problema de saúde pública
Em São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes tem se posicionado (MDB) contrário à implantação de um serviço de mototáxi na cidade e aponta o aumento de sinistros, mortes e lesões com o uso de motocicletas na capital paulista.
Em Fortaleza, os dados mais recentes da Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania (AMC) mostram que, em 2023, os usuários de motocicletas representaram mais da metade das mortes no trânsito da Capital. Além disso, as motocicletas foram responsáveis por 46,8% dos 1.110 atropelamentos que ocorreram naquele ano.
O perfil básico da vítima fatal em Fortaleza é motociclista, homem, de 30 a 59 anos, seguido de pedestre, homem com mais de 60 anos.
O coordenador da Iniciativa Bloomberg de Segurança Viária Global no Brasil, Dante Rosado, aponta que a motocicleta tem características intrínsecas que a tornam um veículo inseguro. “Porque permite que os usuários desenvolvam alta velocidade e não dá nenhuma proteção para esse usuário, diferentemente do automóvel, que tem o cinco de segurança, o airbag, o próprio veículo em si, uma série de dispositivos que garantem a proteção de quem está usando”, afirma.
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De acordo com ele, qualquer política pública que incentive o uso da motocicleta leva a um aumento das mortes no trânsito. “Dentro da perspectiva da mobilidade e da segurança no trânsito, o que devemos buscar é evitar que as pessoas optem cada vez mais por moto”, avalia.
Ao contrário, ele defende o incentivo ao uso do transporte coletivo e da bicicleta. “É nada mais, nada menos do que a Política Nacional de Mobilidade Urbana prega: priorizar o coletivo sobre o individual e o ativo sobre o motorizado”, afirma.
Quanto falamos em mobilidade sustentável — bicicleta, ônibus ou caminhada — ela não é sustentável só porque polui menos, mas também porque é mais segura, causa menos danos para as pessoas.
Ele contextualiza que o País está passando por um “segundo boom” na venda de motos — o primeiro foi no início da década de 2010 — e isso tem se refletido no aumento de mortes no trânsito, tanto no cenário nacional quanto no estadual.
“Todo o esforço que a Cidade fez, nos últimos anos, para reduzir as mortes no trânsito, em geral, vem sendo revertido pelo aumento de motos e motociclistas”, aponta ele, em relação ao uso desse veículo em geral, sem fazer um recorte quanto ao uso ou não das plataformas.
Segundo dados do Ministério dos Transportes, Fortaleza terminou o ano de 2024 com uma frota de motocicletas 22,5% maior do que a do final de 2019. Para a análise, o Diário do Nordeste comparou a frota na capital no mês de dezembro de cada ano.
Uma vez que a quantidade de sinistros de trânsito envolvendo motociclistas é prejudicial inclusive para a própria categoria, a ATAF fornece cursos de pilotagem e direção defensiva, junto à Prefeitura de Fortaleza, para os associados.
“Com a Uber, a gente oferece R$ 50, na segunda-feira, para o trabalhador perder meio período para estudar legislação e práticas de trânsito no pátio da AMC. E a 99 oferece um capacete novo, aquele amarelinho, e a AMC, uma antena corta-pipa”, explica.
De acordo com o presidente da ATAF, em 2021 os cursos contaram com 364 alunos, enquanto, em 2024, as expectativas foram ultrapassadas e houve “três turmas, por mês, de 30 alunos”. “Isso é muito bom para a categoria, para os trabalhadores por aplicativo e para o passageiro, porque ele sabe que está sendo conduzido por um profissional treinado”, afirma.
Um dos aspectos citados por Douglas Sousa é o benefício do serviço fornecido por aplicativos para os trabalhadores, que conseguiram aumentar a renda mensal. “São pessoas que estão conseguindo levar o alimento para dentro de suas casas”, destaca. Para a população, ele aponta o menor custo das viagens, que “às vezes é até mais barata que a passagem de ônibus”.
Em nota, a AMC informou que, no intuito de reduzir o quantitativo de sinistros fatais envolvendo os motociclistas, oferece curso gratuito de pilotagem segura. As inscrições podem ser realizadas pelo site do órgão ou pelo aplicativo AMC Trânsito. Com aulas teóricas e práticas, a capacitação ocorre na sede da autarquia e fornece certificado para os motociclistas que concluírem o curso.
“O objetivo é aprimorar técnicas de pilotagem e desenvolver habilidades na condução segura da motocicleta para enfrentar qualquer situação no trânsito. Legislação, mecânica aplicada e noções de direção defensiva são alguns dos módulos estudados”, afirma o comunicado.
Também há uma blitz educativa para conscientizar motociclistas sobre os riscos do excesso de velocidade e sobre a importância da utilização do capacete e do respeito às normas de circulação viária.
Nos últimos quatro anos, de 2021 a 2024, 1.276 motociclistas foram capacitados nos treinamentos e 223 mil usuários de motocicletas foram abordados em ações educativas.
Tanto Daniel Siebra quanto Dante Rosado apontam a necessidade de tornar o ônibus mais atraente para o usuário, em estrutura e preços. O coordenador Iniciativa Bloomberg aponta, ainda, que com o atual modelo de financiamento do transporte coletivo de Fortaleza, em que a maior parte da renda vem da venda de passagens, o sistema público pode ser afetado negativamente pelo aumento das motos.
“Se nada for feito, a tendência é que o sistema de transporte por ônibus torne-se cada vez mais deficiente, tenha ainda mais dificuldade para se sustentar financeiramente. Precisamos ter cuidado, porque pode ser que estejamos falando em cada vez mais precarizar o sistema de ônibus da cidade”, alerta Rosado.
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Projeto de Lei propõe inclusão de motociclistas
Instituída em 2012, a Política Nacional de Mobilidade Urbana foi alterada pela Lei n.º 13.640, de 2018, para atender as novas modalidades de transporte por aplicativo. Porém, “por um descuido na redação de um inciso”, limitou a atuação dos motociclistas, “ignorando a necessidade de adequação do dispositivo legal aos avanços tecnológicos do século XXI e às novas modalidades de transporte que já fazem parte da nossa realidade”.
Esse é o argumento que o deputado Amom Mandel (Cidadania-AM) aponta no texto do Projeto de Lei (PL) n.º 271, de 2023, que busca resolver o impasse. A proposta altera a Política Nacional de Mobilidade Urbana para incluir a posse da Carteira Nacional de Habilitação na categoria “A” entre os requisitos para atuação por meio das plataformas.
“Tal limitação impõe obstáculos não somente aos motoristas que possuem Carteira Nacional de Habilitação na categoria A que almejam realizar a prestação do serviço de transporte de passageiros por aplicativos com motocicletas, mas também aos potenciais usuários do serviço, que nele encontram uma alternativa de custo menos elevado para locomoção”, justifica.
O PL foi analisado na Comissão de Desenvolvimento Urbano (CDU) da Câmara dos Deputados e teve o parecer favorável do relator, deputado Abilio Brunini (PL-MT), aprovado ainda em 2023. A matéria ainda precisa passar pelas comissões de Constituição e Justiça e de Cidadania e de Viação e Transportes. Se for aprovada, a permissão passa a valer para todo o território nacional.
O assunto também vem sendo tratado no Senado, com o PL nº 2949/2024, apresentado por Randolfe Rodrigues (PT-AP). A proposta é modificar a Política Nacional de Mobilidade Urbana e a lei que regulamenta o trabalho dos mototaxistas para incluir a modalidade via aplicativo. Na Comissão de Comunicação e Direito Digital (CCDD), o relator, Eduardo Girão (Novo-CE), foi favorável ao projeto.
O que dizem as empresas
O Diário do Nordeste entrou em contato com a Uber e com a 99 para questionar sobre a previsão legal utilizadas pelas empresas para atuarem em Fortaleza, quais as ações para reforçar a segurança dos motociclistas e dos clientes, quantos motociclistas estão vinculados a cada plataforma, além da quantidade de clientes cadastrados e de viagens realizadas.
Em nota, a 99 afirmou que “não há nenhum trecho da lei mencionada (Política Nacional de Mobilidade Urbana) que proíba ou exclua o transporte individual privado de passageiros mediado por aplicativo a ser realizado com motocicletas”. A empresa ainda cita a existência de 20 decisões judiciais que confirmam a legalidade da categoria, “assim como necessidades específicas para seu funcionamento”.
A nota também aponta uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2019, sobre a impossibilidade de proibição “por se tratar de atividade legítima, exercida pela livre iniciativa e autorizada pela Constituição”.
A 99 refere-se à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADPF) 449, do Partido Social Liberal (PSL) contra a Lei n.º 10.553, de 2016, que proibia “o uso de carros particulares cadastrados ou não em aplicativos, para o transporte remunerado individual de pessoas” em Fortaleza. O STF considerou esse tipo de lei municipal inconstitucional. À época da aprovação da lei em Fortaleza, o serviço era ofertado apenas por carros e havia conflitos entre taxistas e motoristas da Uber.
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A 99 afirmou que “a segurança é um compromisso inegociável”. “Acreditamos que a tecnologia e os dados tornam o modal mais seguro. Em dois anos de operação, e mais de 1 bilhão de corridas intermediadas por nós, apenas 0,0003% das corridas da 99Moto registraram acidentes. Oferecemos conteúdo educativo, checamos e monitoramos os motociclistas em tempo real e usamos mais de 50 ferramentas de proteção, incluindo alerta de velocidade e bloqueios em caso de má conduta”, diz a nota.
Durante as viagens, a 99 afirma que tanto o motociclista quanto o passageiro são cobertos pelo seguro de acidentes pessoais, que inclui morte acidental, invalidez, despesas médicas e hospitalares e suporte psicológico para acidentes durante o trajeto da corrida.
A empresa afirma que o número de corridas diárias em Fortaleza quase dobrou entre 2023 e 2024 e que está regular no município, “com o devido credenciamento feito na Etufor”. A 99 ainda cita iniciativas realizadas em parceria com a Prefeitura, como o III Seminário AMC para Preservação de Vidas no Trânsito, a reconstrução do bicicletário público do Terminal Intermodal da Parangaba e campanhas de conscientização e educação no trânsito.
A reportagem não recebeu retorno da Uber até o fechamento desta matéria.