Médico do Ceará denuncia presidente do CFM após pesquisa sobre vacina da Covid; ‘risco à saúde’
Entidades apontam falhas em metodologia da consulta e alegam que dados podem ser usados para questionar evidências científicas sobre eficácia do imunizante
O médico infectologista cearense Roberto da Justa denunciou o presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), José Hiran da Silva Gallo, após a entidade divulgar, na última semana, uma pesquisa para a classe questionando a aplicação da vacina da Covid-19 em crianças. Na denúncia, Justa enfatiza uma série de erros éticos, falhas de metodologia e quebra de sigilo de dados de médicos, além de considerar o método um “risco à saúde pública”. O CFM alega se tratar apenas de uma consulta de rotina.
No dia 9 de janeiro, o Conselho publicou em seu site oficial um formulário para “entender a percepção dos médicos brasileiros sobre a obrigatoriedade da vacinação contra a Covid-19 em crianças de 6 meses a 4 anos e 11 meses”. No fim do ano passado, o Ministério da Saúde anunciou a inclusão da vacina Covid-19 pediátrica no Calendário Nacional de Vacinação a partir de 2024, em esquema de três doses.
Três dias depois, no dia 12, Roberto da Justa entrou com a representação contra o presidente da entidade, José Hiran da Silva Gallo, junto ao Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal (CRM-DF), onde Hiran é registrado. Justa criticou a iniciativa e o estímulo às respostas, já que os profissionais inscritos de todo o país receberam convites por e-mail para participar da “sondagem”.
“Tanto na matéria publicada no site do CFM como no e-mail enviado não há qualquer menção a aprovação de protocolo em Comitê de Ética em Pesquisa, não há solicitação de preenchimento de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), não há qualquer esclarecimento detalhado sobre a natureza da pesquisa, justificativa, metodologia, plano amostral, critérios de inclusão ou exclusão”, explica o médico cearense.
Roberto da Justa, também professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), ressaltou que outra pessoa chegou a responder ao formulário em seu lugar, utilizando os números de seu CRM e de seu CPF. Ao testar o preenchimento por conta própria, descobriu que o código de validação é gerado na própria plataforma, facilitando o uso por qualquer pessoa.
“Relatos circulam nas redes sociais de que qualquer pessoa pode votar quantas vezes quiser em nome de qualquer médico ou médica. Circulam em grupos códigos de validação de médicos e autoridades”, acrescentou Justa, na denúncia encaminhada à presidente do CRM-DF, Lívia Vanessa.
O infectologista solicita que a pesquisa seja cancelada imediatamente porque a garantia do sigilo dos respondentes está comprometida e pode ser fraudada. Além disso, considera que seus resultados, uma vez divulgados, “poderão ensejar riscos à saúde pública” - uma vez que parte da classe médica pode ser desfavorável à vacina mesmo com evidências científicas de sua eficácia.
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Entidades seguem críticas
Além de Justa, outras representações médicas se posicionaram contra a consulta. Em carta aberta, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) declararam que respeitam e apoiam as decisões do Programa Nacional de Imunizações (PNI), do Ministério da Saúde.
“Existem claras evidências que apontam os benefícios da vacinação pediátrica na prevenção das formas agudas da doença, reduzindo o risco de hospitalizações, bem como suas complicações em curto e longo prazo na população pediátrica”, ressaltam.
As Sociedades frisam que as perguntas do CFM não têm opção de argumentos ou comentários. “Uma pesquisa com estas características possibilita interpretações equivocadas, e sem perspectivas de fornecer conclusões baseadas em evidências científicas, não sendo, portanto, um instrumento de utilidade ao Conselho no que diz respeito a posicionamentos e tomadas de decisões”, defendem.
Por sua vez, a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD) e a Rede Nacional de Médicas e Médicos e Populares (RNMMP) assinaram nota de repúdio afirmando que “o CFM atenta contra a Saúde e a Ciência”. “A pesquisa parece não ter outro propósito senão o de alimentar uma falsa controvérsia em torno da vacina para Covid- 19, fundada em puro negacionismo médico-científico e teorias da conspiração”, dizem.
O que diz o CFM sobre denúncia
No mesmo dia da denúncia, o CFM publicou uma nota dando sua versão sobre a pesquisa. Afirmou que pretende conhecer a percepção dos mais de 560 mil médicos brasileiros acerca da obrigatoriedade de aplicação da vacina contra Covid-19 em crianças, mas que “em nenhum momento, contesta a eficácia ou a decisão do Ministério da Saúde de disponibilizar a vacina para a população infantil”.
Diz ainda que a bula da vacina disponibilizada pelo fabricante condiciona sua venda à prescrição médica, portanto optou por dar direito a cada médico brasileiro de se manifestar, conhecendo a visão da maioria da classe, uma vez que os profissionais “são capacitados a se manifestarem sobre a obrigatoriedade da vacina”.
Por fim, assegura que “respeita o direito de outras entidades médicas se posicionarem sobre a realização da pesquisa, entendendo que essas manifestações enriquecem o debate ético e científico, desde que não atendam a interesses pessoais, políticos, ideológicos ou financeiros”.
O Diário do Nordeste também solicitou posicionamento do CRM-DF sobre o caso. O Conselho informou que "todas as denúncias feitas à autarquia são investigadas por meio de sindicâncias, no entanto, o procedimento ocorre em sigilo processual". A reportagem também procurou o médico José Hiran e aguarda resposta.
Ainda no debate, a ABMMD questiona os possíveis usos das informações dessa consulta. “O potencial uso de ‘dados’ para questionar a política pública e a ciência a partir de crenças pessoais e pesquisas de opinião não tem lastro no melhor interesse social e é irresponsável”.
“Esperamos que o CFM retome seu relevante papel de zelar pelas boas práticas médicas, atuar em prol da Saúde e da Medicina, pautado pela Ciência, e que abandone, de uma vez por todas, pautas negacionistas que tanto mal fizeram à população brasileira nos anos recentes”, completa a Associação.