‘Larvas, insalubridade, mau cheiro’: relatório aponta más condições de pousadas sociais em Fortaleza
Dois prédios que acolhem população em situação de rua padecem de falta de manutenção e de insumos
Dormir na rua, em cima de um papelão limpo, ou sob um teto, mas num colchão com larvas e percevejos? Essa é a escolha que pessoas em situação de rua de Fortaleza precisam fazer, diante das condições precárias das Pousadas Sociais mantidas pela prefeitura.
A situação dos dois equipamentos que acolhem esse público para pernoite foi descrita em relatório de fiscalização da mandata coletiva de vereadoras “Nossa Cara”, produzido após visita às pousadas, no dia 23 de janeiro.
Colchões desgastados e com pragas, falta de limpeza, de materiais de higiene, de ventilação, de saídas de emergência e outros problemas estruturais foram identificados durante a visita.
O documento, ao qual a reportagem teve acesso, classifica o cenário como “insalubre”, e foi entregue ao Ministério Público do Estado (MPCE), órgão que convocou reunião com a Prefeitura de Fortaleza, na última segunda-feira (30).
Na ocasião, a gestão municipal garantiu que daria “celeridade” à solução dos problemas, como informou ao Diário do Nordeste a promotora Giovana de Melo Araújo, titular da 9ª Promotoria de Justiça de Defesa da Habitação de Fortaleza do MPCE.
As denúncias de usuários são de toda sorte, desde a má conservação dos colchões, infestados de bichos a tal ponto que a pessoa não pode dormir; até a forma inadequada de manusear alimentos, causando insegurança alimentar.
O relatório, que embasa um ofício a ser enviado pelo MP à prefeitura, lista ainda outros problemas:
- Falta de circulação de ar;
- Infestação de percevejos;
- Falta ou armazenamento incorreto de materiais de higiene pessoal;
- Ausência de saída de emergência;
- Infiltrações, vazamentos, sanitários e pias quebradas;
- Falta de limpeza e manutenção geral.
A capital conta, hoje, com duas Pousadas Sociais: a Pousada I - Cirlandio Rodrigues de Oliveira; e a Pousada II - Meire Hellen de Oliveira Jardim, ambas no Centro da cidade. Cada uma disponibiliza 100 vagas para pernoite, recebendo a população de rua entre 20h e 7h.
A promotora Giovana de Melo destaca que a preocupação se intensifica com a chegada da quadra chuvosa, quando “as pessoas sentem a necessidade de acessar esses espaços”. “Já ouvi deles: ‘doutora, é tão precário que a gente se sente melhor dormindo na rua em cima do papelão. É mais seguro pra nossa saúde’.”
O MPCE elabora uma recomendação a ser enviada à gestão municipal, com um prazo para que as irregularidades sejam sanadas. De acordo com Giovana de Melo, “não será um prazo longo”. “Não sendo resolvida, a questão vai ser judicializada”, frisa a promotora.
A Prefeitura diz que fiscaliza esses equipamentos. Isso significa, então, que ela naturaliza essa realidade. A partir do momento que ela entende aquilo como sendo o melhor, é porque não vê essa população como sujeito de direito, e sim como um problema a ser resolvido. E problema se resolve de qualquer jeito.
Segundo a promotora de Justiça, a reunião desta semana teve a presença de representantes da Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS), que gere as pousadas sociais; e de vereadores da cidade.
Foram exigidas, como medidas de urgência, a “troca imediata” dos colchões até a última terça (31) e a dedetização dos prédios até sexta-feira (3).
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O que diz a Prefeitura
A reportagem questionou a Prefeitura de Fortaleza, por meio da SDHDS, sobre por que os equipamentos chegaram ao atual estado, com que periodicidade recebem manutenções, se há previsão de ampliação do número de acolhimentos e o que será feito agora.
Em nota, a secretaria informou que “vem realizando ações para o melhoramento contínuo dos serviços prestados nas Pousadas Sociais”, que oferecem “segurança de acolhida noturna e temporária a indivíduos adultos em situação de rua”.
atendimentos a pessoas em situação de rua foram realizados pelas duas pousadas sociais de Fortaleza, em 2022.
A Pasta ressalta que, além do pernoite, os usuários recebem alimentação e higiene pessoal, auxiliados por equipe de dois educadores sociais, um profissional de serviços gerais diurno, um porteiro, um vigilante e um coordenador.
“As providências para a reforma do equipamento estão em andamento, com vistoria técnica pela equipe de infraestrutura. A revitalização dos banheiros foi iniciada com pintura, troca de pias e maçanetas”, afirma a SDHDS.
No que se refere à aquisição de mobiliário e colchões, as homologações das licitações foram iniciadas ainda em novembro de 2022. Após a conclusão da compra, serão destinados novos beliches e 200 novos colchões para o pernoite da população em situação de rua atendida nos dois equipamentos. NOTA SDHDS
Até que isto ocorra, o órgão garante que “será feita a substituição temporária com 140 colchões cedidos pela Defesa Civil. Lençóis e roupas de cama novos também já foram entregues pela instituição contratada para gerenciamento das pousadas”.
O serviço de limpeza, segundo a SDHDS, é feito diariamente, duas vezes por dia. Já “desinsetização” é trimestral – a última, “específica para percevejos”, foi feita nos dias 30 e 31 de janeiro, uma semana após a visita que denunciou as más condições.
A secretaria acrescenta, ainda, que “efetuou todos os repasses devidos à instituição gestora (das pousadas) no ano de 2022, e que um aporte adicional de recursos está sendo negociado com vistas ao atendimento da crescente demanda por insumos”.
Em 2021 e 2022, “foram repassadas subvenções sociais para o serviço das pousadas no valor de R$ 515.778”.
“Não são tratados como detentores de direitos”
A suposta falta de manutenção dos equipamentos voltados à proteção social e assistência de pessoas em situação de rua demonstra que “o poder público os coloca no lugar de menos valia”, segundo opina Andréa Esmeraldo, psicóloga, pesquisadora e membro do Fórum de Rua do Ceará.
Para ela, “lidamos com uma sociedade em que os usuários dos serviços públicos não são tratados como detentores de um direito, e o acesso aos serviços parece benevolência do Estado”.
“Isto se expressa de forma muito nítida quando vemos espaços como a Pousada Social no estado de precariedade em que se encontram. Se o serviço não é um direito do usuário, ele pode ser prestado de qualquer forma”, critica Andréa.
A falha na prestação de serviços expõe as pessoas em situação de rua à fome, violência e agravos na saúde, e ainda amplia o convívio com um contexto de vergonha e humilhação e intenso sofrimento psicológico.
A pesquisadora destaca que o avanço da pobreza durante a pandemia de Covid expôs principalmente mulheres à situação de rua. “Ouvimos histórias de dificuldades de manter as necessidades da família, e é na rua que buscam os recursos para garantir alimentos, roupas e até convívio social.”
O aumento da demanda, porém, não é acompanhado pela oferta de serviços públicos destinados a ela. Em Fortaleza, segundo Andréa, “a quantidade não corresponde ao aumento de pessoas que necessitam acessá-los”.
Como pensar, por exemplo, que duas equipes, muitas vezes sem a quantidade mínima de profissionais, podem promover proteção social e contribuir para a dignidade de quase 3 mil pessoas que vivem nas ruas da capital?
Andréa observa que, nesse contexto, “as organizações não governamentais, iniciativas filantrópicas e movimentos organizados acabam assumindo funções que deveriam ser do poder público”; e avalia em que as medidas a essa população devem focar.
“O principal trabalho a ser desenvolvido está nas ações que contribuem para a superação da rua, com a ampliação do direito à habitação e à cidade, a qualificação do acompanhamento das famílias e indivíduos que sofrem com os estigmas e preconceitos de estar na rua, o acesso ao trabalho e, principalmente, ao trabalho digno como um direito de toda a população.”
Outros serviços à população em situação de rua
Em 2021, pelo menos 2.653 pessoas já viviam nas ruas de Fortaleza, conforme o II Censo Municipal da População de Rua. O último levantamento, de 2014, apontava 1.718 cidadãos nesta condição.
A gestão municipal lista, portanto, ações de distribuição diária de refeições, além dos equipamentos de assistência voltados a essa população:
- Duas Pousadas Sociais;
- Dois Centros de Referência (Centros Pop);
- Três pontos de Higiene Cidadã;
- Refeitório Social;
- Casa de Passagem.
Esta última, localizada no bairro Benfica, teve interdição solicitada pelo MPCE em Ação Civil Pública, em janeiro deste ano, por estar “em situação indigna para habitação, não oferecendo o mínimo de proteção e segurança aos abrigados”.