Idosos reinventam rotina com estudo, esporte e amor: ‘diversas velhices que precisam ser celebradas'
Manter sonhos vivos e buscar realizá-los é o segredo para o envelhecimento saudável, garantem entrevistados pelo Diário do Nordeste
Tornar-se uma pessoa idosa não é uma sentença de que os dias úteis terminaram. Pelo contrário, há diversas velhices ocupando pontos de ônibus, shoppings, salas de aula, piscinas e pistas de corrida. Idosos reinventam o cotidiano após os 60 anos para envelhecer com qualidade de vida, seja pelo estudo, pelo esporte ou pelo amor.
Nesta última reportagem da série Segundas Chances, que lembra os 20 anos do Estatuto da Pessoa Idosa, completos no último domingo, 1º de outubro, o Diário do Nordeste conta histórias de cearenses na terceira idade para quem a idade é só um número. Afinal, segundo eles, uma mente ativa é o segredo para o envelhecimento saudável.
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Em 1978, Irene Stela Araújo Vasconcelos percorreu os quase 240 km entre Acaraú e Fortaleza escondida do pai, aos 18 anos. Na cidade natal, havia poucas opções: trabalhar na roça ou casar e cuidar dos filhos. “Eu não queria isso pra mim”, desabafa hoje, aos 63, uma das alunas do Projeto Novo Vestibular (PNV), vinculado ao Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Na Capital, ela passou a morar com uma família que a acolheu; se formou no segundo grau e arrumou um emprego como técnica de contabilidade. No entanto, o salário baixo e o excesso de trabalho a levaram a pedir demissão, há cerca de 10 anos. A inquietação que sempre teve colocou mais um desejo na cabeça: cursar o Ensino Superior e finalmente obter o diploma em Ciências Contábeis.
Contudo, parece coisa do destino: sempre que busca se dar bem no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), precisa interromper os estudos. Doenças ou acidentes com a família exigem cuidados dela, adiando seus planos. A pandemia também atrapalhou: não gosta de aulas on-line, prefere o olho no olho. Finalmente, em 2023, conseguiu regularidade e comparece todos os dias a uma sala no bairro Benfica, à noite.
“Uma universidade particular já me chamou pra dar 100% de bolsa, mas eu quero a UFC. Não me arrependo de recusar, as coisas são no tempo certo”, entende, ainda que demore. Irene confessa ter dificuldade na interpretação de questões por ter ficado muito tempo longe dos estudos, mas não desanima e tem ajuda dos colegas quando necessário.
“Estudar não é fácil, tem tanto obstáculo! Mas eu sinto orgulho da minha coragem, da minha capacidade. Sou saudável, não sou ‘velha’: eu me sinto mais ativa do que antes e sei o que eu quero. Até os 30, eu não sabia. A idade me trouxe disposição”, ensina.
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Terapia e atividade física
Energia é o que não falta ao psicólogo Orozimbo Leão. Prestes a completar 75 anos, ele divide a rotina entre o consultório onde atua há 50 anos, pedaladas num grupo de cicloturismo e as piscinas do Círculo Militar de Fortaleza, acumulando muitas medalhas ao longo da trajetória esportiva e inspirando outros idosos a envelhecer positivamente.
Aliás, ele é bem claro: só aceita atender a pacientes que se comprometam com alguns pilares. “Terapia, psiquiatra, grupo de apoio a dependentes químicos (se preciso) e atividade física”, enumera. Para combater as angústias do envelhecimento, ele também se orgulha de ajudar pessoas próximas à aposentadoria a “descobrir o que colocar no lugar do tempo livre”.
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Orozimbo educa ainda que ser uma pessoa idosa não é se privar de prazeres comuns da juventude, muito menos abrir mão de tomar uma cerveja ou comer panelada de vez em quando.
“Cronologicamente, eu tenho 74, mas psicologicamente e de vivacidade é 17”, comemora. Enquanto houver um sonho em andamento e você quiser buscar alguma conquista, ninguém envelhece”.
Amor na terceira idade
A professora aposentada Graça Bastos alimentou um sonho da juventude até os 62 anos de idade. Por 40 anos, esperou um reencontro com Murilo Pires, amor avassalador da adolescência que partiu para uma vida artística no Rio de Janeiro. Nesse distanciamento, Graça casou-se e teve duas filhas, mas um desejo latente permaneceu vivo.
Em 2016, por meio das redes sociais, ela achou Murilo. Depois de meses de conversa, finalmente veio o abraço físico. Viajaram, viveram dias extraordinários, mas ele precisou retornar para o Rio. Pouco tempo depois, durante uma madrugada, Graça recebeu uma ligação: “quer casar comigo?”. A apreensão por causa da hora deu lugar a um alívio e felicidade indescritíveis.
“Foi diferenciado por causa do amor lá de trás. A gente estava mais maduro, não tinha mais que esperar ou sonhar com um amor que não existe”, explica a professora. “Aquilo me reavivou. Eu queria ser mãe; casei, não foi muito bom. Mas sempre vivi de forma intensa. Gostava de cantar no karaokê, escolhia músicas românticas e cantava pensando nele”, revela.
Viveram casados por três anos, redescobrindo a vida como criança, até o falecimento de Murilo, em 2019. Ainda hoje, quatro anos depois, Graça mantém a aliança no dedo e a foto do casal no perfil de todas as redes sociais. “As pessoas me perguntam: ‘nossa, como você tem coragem de ver todo dia?’ É simples: tudo o que fui feliz, não quero esquecer”.
A velhice é uma idade maravilhosa, melhor que qualquer outra porque a gente já viveu e já construiu tudo, aprendendo com os erros. Não que eu seja sábia nem possa aprender mais nada, mas eu me sinto pronta. Amar é que é algo que não podemos parar nunca. Sem amor, ninguém é nada.
Hoje, aos 68, Graça voltou a ser professora do neto de 5 anos. Cuida, alimenta, ensina a tarefa da tarde. Nas horas livres, sempre que pode, sai para passear ou se reúne com a família. “Não deixo a tristeza tomar conta de mim. Mesmo nos tempos difíceis, tô junta, tento levantar o astral de todo mundo”. Sorte a deles.
Lições de vida
Há diversas velhices que precisam ser celebradas, afirma Vejuse Alencar, presidente da Associação Cearense Pró-Idosos (Acepi). Afinal, muitas pessoas idosas despertaram como agentes de transformação comunitária e cidadania ativa. Reconhecem seus direitos e reivindicam saúde, cultura, assistência. “Hoje, temos a presença da pessoa idosa com assento nos conselhos. Isso é muito rico. Precisamos apresentar velhices que resistiram a todas as dificuldades e constroem uma sociedade melhor”, ressalta.
“A conquista da maior qualidade de vida foi um avanço social, mas se coloca como desafio. Não adianta avançarmos na expectativa de vida se temos situações de violência e vulnerabilidade social”, lembra o promotor Alexandre Alcântara, membro do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE). Para ele, é urgente discutir a distribuição de renda digna para diminuir as desigualdades sociais “ou teremos uma grande demanda por cuidados no futuro”.
Apesar dos contratempos, há muito o que se aprender com a história de vida de cada pessoa. Orozimbo Leão orienta as famílias a acordarem. “A expectativa de vida hoje já passa dos 80 anos. O idoso não deve ser considerado um problema que eu vou ter que cuidar. Com alimentação adequada, lazer e atividades sociais, vamos chegar lá com qualidade de vida”, avalia o psicólogo.
Irene Araújo ensina a não desistir. Segundo ela, a idade está na cabeça, e é a motivação que a levará até os bancos da universidade. “Comigo não tem esse negócio de desistir. Quero ocupar meu tempo com coisa importante, e a faculdade tá chegando, vai dar certo. Pra mim não existe a palavra desistir. Quero e vou conseguir”, projeta.
A última lição (e a mais importante) da professora Graça Bastos é que a vida tem choques e partidas, mas vale a pena ser vivida. “Não vale a pena voltar para a tristeza. Embora eu tenha perdido muita gente querida, perdas são normais. O que conquistei, eu quero conservar. Tenho minhas filhas e meus netos pequenos que me fazem querer ser útil para eles. Meu valor é ser útil. Mesmo andando devagar, eu vou”, conclui.
Idosos em atividades culturais e de lazer
O envelhecimento ativo favorece a participação de pessoas idosas em atividades sociais, culturais e educacionais para se manterem agregadas à sociedade. Listamos abaixo algumas iniciativas no Ceará que contribuem para esse processo:
Programa Saúde, Bombeiros e Sociedade (PSBS)
O programa mantido pelo Corpo de Bombeiros Militar do Ceará (CBMCE) completou 20 anos em setembro, promovendo atividades físicas, campanhas socioeducativas e eventos cívicos, especialmente para idosos. Em 2019, a iniciativa se tornou política de Estado. Atualmente, há 30 mil pessoas cadastradas em 446 núcleos, em 33 cidades.
Projeto Feliz Idade
O Projeto Feliz Idade, desenvolvido pela Secretaria do Esporte do Ceará (Sesporte), realiza atividades esportivas e de lazer com 200 idosos em quatro núcleos em Fortaleza - dois no Castelão e nas Vilas Olímpicas Canindezinho e Messejana -, incentivando atividades físicas e integração social.
Praia Acessível
O projeto Praia Acessível tem pontos de funcionamento em Fortaleza, Caucaia, Aquiraz, Aracati, Camocim e Paracuru, facilitando o acesso ao mar da população idosa e de pessoas com deficiência.
Trabalho Social com Idosos (TSI)
Desde 1983, o Serviço Social do Comércio no Ceará (Sesc) desenvolve ações com foco no protagonismo da pessoa idosa, Promoção da Saúde, Qualidade de Vida, Memória e Histórias de Vida e Expressões Artístico-culturais. Há atividades disponíveis em Fortaleza, Sobral, Iguatu, Crato e Juazeiro do Norte. A depender da unidade, há oficinas e projetos como corais, sessões de filmes e palestras sobre direitos sociais e cidadania.