Cearense é aprovada em mestrado aos 73 anos e rebate etarismo na educação: ‘sonhos não têm idade’

O Diário do Nordeste traz os relatos dela e de outras pessoas que retomaram estudos e sonhos após a meia idade

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Legenda: Com mais de 70 anos de idade, Révia vai incrementar o currículo com o título de mestre em Letras pela UFC
Foto: Helene Santos

Em que momento da vida perdemos o direito de viver? Qual é a idade-limite para estudar? Trabalhar? Amar? Quando é que o ano de nascimento passa a valer mais do que a vontade e a capacidade de realizar? Que sentido, afinal, o etarismo tem?

Na última semana, o tema entrou em pauta quando três universitárias publicaram um vídeo debochando de uma colega de 42 anos de idade, afirmando que “era pra estar aposentada” e que com “40 anos não pode mais fazer faculdade”.

O Diário do Nordeste traz aqui, então, histórias de cearenses de 41, 45, 56 e até 73 anos de idade que retomaram ou avançaram nos estudos sob uma convicção: “os sonhos não têm idade”.

“Todos têm direito à vida”

Legenda: A escritora tem 9 livros publicados e ocupa uma cadeira da Academia Cearense de Letras
Foto: Helene Santos

Révia Herculano, 73 anos, escritora, professora. Cadeira 36 na Academia Cearense de Letras. Nove livros publicados. Graduada, pós-graduada, aposentada. Inquieta. “Achei que tava faltando o mestrado, porque o saber é algo que leva a gente adiante”, responde sobre o que a motivou a retornar à vida acadêmica já na terceira idade.

Já se passaram três semestres e várias “notas 10” desde que veio a aprovação no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará (UFC) – e, felizmente, nada disso veio acompanhado por preconceito.

Minhas colegas e professores me aceitam muito bem, gostam da minha opinião, respeitam. Estar lá é algo que me agrada. Tô realizada, está tudo dentro dos meus sonhos.
Révia Herculano
73 anos

A professora-estudante afirma “não entender a rejeição social” ligada à idade, mas observa que é muito mais direcionada às mulheres. “Já faz parte de um padrão que vem traçado através dos tempos”, lamenta.

Talvez seja por isso que, durante a própria fala, não dissocia a força feminina da determinação que a move e a mantém ativa independentemente da data marcada na certidão de nascimento.

“A mulher precisa acreditar no que sabe, viu e faz, se manter inflexível quando necessário, obstinada e atenta a expressar o que tem dentro dela, suas convicções. A mente humana e os sonhos não têm idade. Todos têm direito à vida.”

“Todo mundo tem seu tempo”

Legenda: Eva foi aprovada no exame da OAB aos 56 anos, antes mesmo de concluir o curso de Direito
Foto: Arquivo pessoal

Quando colegas de sala de aula estavam nascendo, Eva Abreu, 56, já era mãe. Para esta outra cearense que subverte as “lógicas” sem lógica do etarismo, a primeira graduação veio aos 40 anos de idade. Administração de empresas. 

“Mas não era bem o que eu queria”, relembra.

Cursar faculdade, por outro lado, continuava sendo o mais forte dos desejos. “Sempre foi um sonho grande, mas tive filhos muito jovem e isso me impediu. Me acomodei, fui cuidar deles, trabalhar… Mas a vontade continuou.”

Depois de concluir uma especialização, veio a sentença: “quero mesmo é Direito”. Aos 50 anos, então, Eva virou caloura de novo. Iniciou a segunda graduação.

De lá para cá, coleciona conquistas. 

Venceu uma “fila de jovens que dobrava quarteirão” e garantiu uma vaga de estagiária no Tribunal de Justiça do Ceará. “Lá, pensavam que eu era servidora! Fiz amigas da idade das minhas filhas”, brinca.

Garantiu a aprovação no exame da Ordem dos Advogados Brasil (OAB) antes mesmo de se formar. “Vou colar grau neste semestre, mas me adiantei, fiz a prova da OAB e já passei. Não posso perder tempo”, sorri.

Foto: Arquivo pessoal

E, o principal louro de todos: aprende, todos os dias, a reconhecer que pode estar em qualquer lugar – aos 56, 60, 80 ou quando for. 

“Já fui receosa, mas hoje não tenho problema de me sentir inferior. Todo mundo tem seu tempo, cada um sente de uma forma. Quero receber minha carteirinha da OAB, montar meu escritório e advogar com excelência. Quando você quer, independe da idade.”

“Já ouvi que não era mais hora de estudar”

Estudantes mais velhas criticam etarismo
Legenda: A artesã Elizângela Castro, 45, retornou às salas de aula após décadas sem estudar
Foto: Kid Júnior

Querer, aliás, é tão vital como respirar. Foi o que moveu a artesã Elizângela Castro, 45, a retornar às salas de aula após décadas sem estudar. Aos 17 anos de idade, a cearense cursava a 5ª série quando engravidou. Deu “pause” na própria vida para dar conta de outra.

A ânsia por terminar os estudos e seguir a profissão dos sonhos, por outro lado, continuou em movimento dentro dela. Formou os dois filhos – um em publicidade, outro em tecnologia da informação – e, então, sentenciou: “agora é minha vez”.

Em 2017, se matriculou do Centro de Educação de Jovens e Adultos (CEJA) Neudson Braga, no bairro Benfica, em Fortaleza; e agora já se aproxima de concluir o ensino fundamental.

“Quando fui procurar o CEJA, minha intenção era de terminar meus estudos, mas fiquei naquilo 'será que vai ter gente da minha idade?' Hoje, eu me sinto mãe de vários alunos lá. Tem gente de várias idades. Me sinto muito bem e realizada”, afirma Elizângela.

Entre as lições de português e matemática, memorizou outra básica e indispensável: ignorar os comentários que a desencorajam a perseguir o próprio sonho. 

Já ouvi que já tinha 2 filhos e era casada, que não era mais hora de estudar. Mas quero meu certificado. Teve gente que desistiu de estudar por causa disso. Me sinto uma pessoa de 20 anos, tenho sede de aprender. Cada disciplina é uma descoberta.
Elizângela Castro
45 anos

Num cronograma que se divide entre cuidar de si, da casa, trabalhar e estudar, existe um plano importante reservado: “tenho um sonho de ser veterinária, me identifico muito. Sou mãe de pet e protetora dos que estão na rua. Foi isso que me motivou a voltar a estudar”.

“Eu era a mais velha da turma”

Legenda: Aos 41 anos, Georgia cursa pedagogia e planeja ser pesquisadora da área
Foto: Arquivo pessoal

Quando fez as provas do Enem de 2020, a servidora pública Georgia Landim, 41, mergulhou num misto de novidade e medo. O sonho de cursar pedagogia, mesmo já formada em Direito, iria se concretizar: agora, voltaria às salas de aula na UFC.

“Fiquei primeiro surpresa e depois muito feliz por ter passado no Enem, que é uma peneira bem difícil. Feliz pelo esforço pessoal e por ter criado coragem. Foi um esforço recompensado”, relembra, comemorando, ainda, todo o processo que veio depois.

Tive medo ao ingressar, por tudo ser novo. Eu ia retornar aos bancos da faculdade 20 anos depois, com uma experiência de vida diferente. Quando ingressei, acredito que eu era a mais velha da turma, mas o clima de acolhimento foi maravilhoso.
Georgia Landim
41 anos

Ser ouvida e respeitada, para ela, é regra. Afinal, a futura pesquisadora – carreira em que pretende investir depois de formada – reforça: “toda forma de preconceito precisa ser combatida”.

“Tive medo de entrar num ambiente novo, mas o ambiente favoreceu que eu me sentisse bem acolhida. Temos que falar sobre isso e acabar com esse estereótipo de idade, de que o jovem pode fazer isso, mas alguém de 40 anos não pode.”

O que é etarismo

Por definição, etarismo é a “discriminação e preconceito baseados na idade, geralmente das gerações mais novas em relação às mais velhas”, como consta no dicionário da Academia Brasileira de Letras (ABL). 

O comportamento também é definido pela ABL como “idadismo” ou “ageísmo”.

Quebrar paradigmas

O professor Ricardo Temóteo, especialista em gerontologia e no ensino de novas tecnologias a idosos, pontua que o etarismo segue uma lógica imposta culturalmente: a de uma “sociedade que é voltada aos jovens, à beleza e à produtividade”.

“A própria palavra ‘aposentadoria’ significa a pessoa se recolher em seus aposentos e esperar a morte. É preciso investir em projetos educacionais com crianças e jovens para que essa mentalidade seja alterada”, sugere.

Há pessoas que gostam de trabalhar e enfrentar os desafios do mercado, se atualizando, fazendo cursos. E há outras que preferem um estilo de vida mais tranquilo. O segmento idoso é heterogêneo, precisamos cultivar o respeito.
Ricardo Temóteo
Professor e especialista em gerontologia

Além das pessoas na chamada “meia idade”, o professor observa que muitos idosos “estão entrando em cursos acadêmicos, empreendendo, viajando”, vivenciando “velhices diferenciadas, formas de encarar essa etapa da vida de maneira singular”.

“Quando essas alunas participam de cursos, estão, sem saber, impactando a sociedade, quebrando paradigmas e criando novas formas de envelhecimento. Procurando ser felizes”, finaliza o especialista.

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