Enchentes no RS alertam para a necessidade de monitorar nível de rios; veja como é em Fortaleza
A capital gaúcha, Porto Alegre, tem condições geográficas diferentes da cearense, mas o acompanhamento permanente dos níveis dos rios deve ser ação comum e fundamental ao controle de cheias
A trágica situação vivenciada no Rio Grande do Sul, no Brasil, além de deixar graves sequelas, com dezenas de pessoas mortas e milhares afetadas drasticamente, também chama atenção para a relação das cidades com rios que as atravessam. Nesse contexto, a condição da capital gaúcha, Porto Alegre, é diferente da cearense, Fortaleza, em termos geográficos e ambientais. Mas, um ponto é comum: a necessidade de monitorar rigorosamente os níveis dos rios como forma efetiva de controle de cheias e prevenção de tragédias. E como isso ocorre em Fortaleza?
Três principais cursos d’água cortam a capital cearense. São os rios Cocó, Ceará e Maranguapinho. E é para eles e o entorno que a vigilância se volta, sobretudo, se for considerado que eles atravessam áreas de grande adensamento populacional, em boa parte, com moradores vulneráveis socialmente e que já vivenciaram inundações.
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No caso do Cocó, no cenário mais recente, em 2019, por exemplo, mais de 3 mil famílias dos bairros Barroso, São Cristóvão e Jangurussu sofreram e ficaram desalojadas devido às cheias, após a barragem sangrar. À época, o Governo Estadual explicou, inclusive, que sem a barragem do Cocó, construída em 2017, o estrago teria sido maior.
O Cocó e Maranguapinho, segundo a Defesa Civil Municipal de Fortaleza, são acompanhados permanentemente com videomonitoramento e visitas presenciais, durante todo o ano. O monitoramento, diz a Defesa Civil, busca “antecipar situações de risco, identificar áreas que habilitam-se para requalificação urbana e, principalmente, evitar que progressos urbanísticos se percam pela reocupação indevida”.
O órgão garante que há uma Central de Monitoramento, criada em 2015, para esse acompanhamento e as ações envolvem “visitas periódicas para varredura dos riscos locais, controle do perímetro de ocupação e mapeamento de suscetibilidade”. Nesses processos, aponta, são identificadas as necessidade de serviços imediatos e preventivos e secretarias são acionadas.
No caso do Cocó, segundo a Defesa Civil Municipal, o nível da barragem também é acompanhado diariamente em parceria com a Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh), órgão do Governo do Estado.
A gestão estadual foi procurada pelo Diário do Nordeste e uma solicitação de explicação sobre como ocorre o monitoramento dos rios em Fortaleza foi enviada à Secretaria de Meio Ambiente e Mudança do Clima (SEMA); à Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace); à Cogerh e à Defesa Civil Estadual.
A assessoria do Governo informou apenas que assim como indicado pela Defesa Civil do Município a Cogerh “abre ou fecha as comportas dos Açudes Cocó e Maranguapinho. O objetivo é minimizar o risco de cheias ou alagamentos”.
O que ocorreu em Porto Alegre?
No Rio Grande do Sul uma combinação de fatores fez com que, nas últimas semanas, o estado esteja recebendo chuvas intensas e contínuas, gerando inundações, dentre eles, o efeito El Niño - fenômeno que causa aquecimento anormal das águas do oceano Pacífico - além das consequências das mudanças climáticas no mundo.
No caso da capital gaúcha, Porto Alegre, a cidade tem vivenciado a cheia do Lago (ou Rio) Guaíba. Conforme a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), que tem monitorado e divulgado em tempo real o nível do corpo hídrico, na Estação Cais Mauá C6, que fica no Guaíba, o Lago atingiu o máximo histórico de 5,35m no domingo, 5 de maio. A marca superou o recorde anterior, de 4,76 m, registrado na capital gaúcha em 1941.
O professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC) integrante do Laboratório de Climatologia Geográfica e Recursos Hídricos do mesmo Departamento, Flávio Rodrigues do Nascimento, explica que a situação vivenciada no Rio Grande do Sul é forte e extremada, mas “não é de todo desconhecida". Em 2009, indica ele, “o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas já dizia que o Rio Grande do Sul seria um dos estados mais afetados com cheias e secas”.
De acordo com Flávio, isso envolve fatores diversos, dentre eles, o fato do estado “está em um corredor de umidade que recebe da Amazônia, vai bordeando a Cordilheira dos Andes e pode sobrevoar o estado gaúcho e também frentes frias, muita massa de ar fria vindo da Antártica. Isso já faz do Rio Grande do Sul uma região muito especial para ser avaliada em termos de eventos extremos”.
Outros elementos, pondera ele, são o uso da terra e as modificações em legislações ambientais, “muita flexibilização em leis ambientais em função do agronegócio, agravou a situação”, completa.
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Flávio destaca que a posição geográfica do Ceará é diferente da do Rio Grande do Sul.
“O que aconteceu lá foi um fenômeno que tem a ver com a Zona de Convergência do Atlântico Sul e outros fenômenos atmosféricos associados. As médias pluviométricas são semelhantes, mas lá chove um pouco mais e é mais distribuído ao longo do ano, sendo menos vulnerável à seca. No Ceará chove menos e é mais vulnerável à seca”.
No caso específico de Porto Alegre, esclarece o professor, “ela está encravada em uma reunião baixa da Bacia do Rio Guaíba, entre as regiões de serra e a litorânea, então está numa região de vale. Porto Alegre, especialmente, está em áreas de aterramento, com portas laterais, sistemas de drenagens, bombeamento para tirar água da cidade e jogar para o rio. Ela está vulnerável à inundação, tanto é que teve isso historicamente”.
Outro fator que favorece o alagamento é o fato de Porto Alegre não tem conexão direta com o mar, para fazer com que a água escoe diretamente.
Quais os riscos em Fortaleza?
No caso de Fortaleza, o professor Flávio pondera, “os rios Maranguapinho e Cocó são os mais problemáticos, eles trazem riscos de cheias e inundações”. Os dois rios contam com barragens estruturadas nas últimas décadas na tentativa de reduzir os riscos de cheia.
Segundo a Secretaria das Cidades, do Governo do Estado, o projeto de revitalização do Rio Maranguapinho, concebido em 2007 "já executou importantes obras, a fim de evitar alagamentos ocasionadas pelas grandes chuvas como uma barragem de controle de cheias, localizada entre Maranguape e Maracanaú, e entregue em 2012 à população".
A barragem, diz a pasta, tem um volume armazenável de mais de 9,3 milhões de m³ de água. Além da barragem, também foi feita em 2020 uma obra de dragagem do Maranguapinho, na qual foram retiradas quase 23 mil caçambas de resíduos do rio.
Já no caso do Rio Cocó, segundo a pasta, a barragem de controle de cheias entregue em 2017, tem um volume armazenável de 6 milhões de m³. O serviço de dragagem do rio também foi executado, tendo sido finalizado em 2021.
A barragem do Cocó, destaca o professor Flávio Rodrigues, “foi estruturada para controlar as cheias, mas pela falta de saneamento, falta de drenagem, ocupação indevida de margens” ainda há extravasamento de rios. “A própria (avenida) Raul Barbosa tem compactação de solo, a (avenida) Murilo Borges que funciona como dique aprisionando as águas do Rio Cocó favorece com que tenha alagamentos no Lagamar, Aerolândia”.
De acordo com o pesquisador, “Fortaleza tem muitas áreas de risco e as áreas de risco estão associadas aos rios porque as pessoas as ocuparam, muitas vezes, sem alternativas. Temos riscos mais com efeitos hidrológicos um pouco diferentes de Porto Alegre. Tanto é que choveu muito em Fortaleza no sábado de carnaval e não tivemos tantos problemas como estamos vendo em Porto Alegre”.
Mas, a capital cearense tem o diferencial de os rios drenarem as águas diretamente no mar. Isso faz com que, em certo grau, explica ele, as águas da Capital escoam de forma veloz por esse caminho.
O professor do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da UFC e diretor do Centro Estratégico de Excelência em Políticas de Águas e Secas (CEPAS) também da UFC, Francisco de Assis de Souza Filho, reitera que “o sistema de cheias em Fortaleza funciona de forma diferente de Rio Grande Sul”.
Ele indica que Fortaleza tem pontos de cheia por problema de macrodrenagem, como o caso do Riacho Pajeú, na Av. Heráclito Graça, onde historicamente foi ponto de alagamento, e o Rio Cocó, Rio Ceará e afluentes.
“Algumas obras de macrodrenagem na região do Macro e a construção de um reservatório de controle de cheias reduziram as cheias do Coco. O afluente do Cocó que escoa do canal da Aguanambi também teve obras de ampliação do canal de macrodrenagem. Com isto mitigou-se as cheias neste rio”.
O que precisa ser feito?
O pesquisador Francisco de Assis de Souza Filho reforça que “os efeitos das mudanças climáticas podem levar a intensificação das chuvas e medidas de drenagem urbana compensatória, aumento da infiltração nos lotes e vias, é recomendável em afiação a ajustes na infraestrutura de macro e microdrenagem”.
Outro ponto destacado por Flávio Rodrigues para prevenir tragédias relacionadas às cheias é esse monitoramento permanente dos rios, e mais ainda: a recuperação das margens, da mata ciliar e a remoção das comunidades vulneráveis que vivem nas áreas de risco.
"Esse sistema de monitoramento precisa ser colocado na cidade de Fortaleza e na Região Metropolitana. Precisamos de um plano de emergência climática para Fortaleza que considere os rios como pontos importantes. É associado às lagoas. Essas áreas precisam ser pensadas em conjunto com o rio. Porque muitas vezes elas são o grande receptáculos de água de escoamento superficial, servem de caixa de passagem ou de contenção mais lentamente para os rios”, defende.