Mãe planta cannabis para tratar filho autista no CE e vira ativista do uso medicinal; ‘é outra vida’
Uso da substância será debatido, neste sábado (17), na Feira Canábica do Ceará, com mutirão de acolhimento médico, oficinas, aulão de pilates, tira-dúvidas jurídico e rodas de conversa

Aos 4 meses de idade, quando a respiração falhou, Allan já soube que viver era desafio. Até os 5 anos, a asma era o cotidiano dele e da mãe, Robervania da Silva, 38, – até que se tornou “simples” diante das graves crises agressivas e de automutilação do pequeno. Hoje, aos 10 anos, “a vida é outra”, transformada pelo uso do óleo de cannabis medicinal.
Robervania é uma das cearenses com habeas corpus (HC) para cultivar a planta em casa, documento obtido em 2022 como medida para proteger a liberdade da cearense e permitir que ela mantenha a plantação de cannabis sem risco de ser abordada por forças de segurança.
Apesar de ter a “permissão” há quase três anos, foi só há menos de uma semana que ela conseguiu montar a estrutura adequada em casa para cultivar, sob um investimento de milhares de reais, obtidos por empréstimo. A tentativa, porém, é sem preço: a de conferir mais qualidade de vida ao filho pequeno.
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Allanzinho, como a mãe chama, tem uma síndrome rara, ainda em investigação, e autismo com nível 3 de suporte. Mesmo tão pequeno, chegou a tomar oito medicamentos de forma simultânea para frear as crises – “vivia dormindo”, como relembra Robervania.
“Quando ele acordava, voltava a ficar choroso e muito agressivo, me batia, arrancava meus cabelos. Depois da cannabis, ele passou a não ter mais tantas crises. A gente consegue sair com ele na rua, levar à praia, ao Castelão. Foram grandes melhoras em tudo, muita qualidade de vida”, reforça a mãe.
Ela mesma, aliás, recorre ao uso do óleo e às outras aplicações da planta, para tratar as dores crônicas que sente devido à fibromialgia.
“É outra vida”
Allan usou o óleo de cannabis pela primeira vez em 2020, após “muita pesquisa e estudo” da mãe. Antes disso, as internações hospitalares eram constantes. “Depois do óleo, já são quatro anos sem nenhuma. E ele, sempre não verbal, passou a me chamar de ‘mamãe’. Meu filho agora não fica dopado”, emociona-se.
Acordado, então, Allan vive, o que é além de sobreviver. Segundo a mãe, além da melhora nas manifestações físicas das condições de saúde, o menino passou a se comunicar “através do olhar” e até a engatinhar, “coisas que antes não fazia”.
Apesar das mudanças, o cenário pesou: o alto custo do óleo oriundo da planta levou Robervania, mãe solo, a pedir ajuda a amigos e familiares. “A concentração que ele usa custa R$ 750 e só dá pra 22 dias. Já é metade do benefício que ele recebe”, estima.
Aí, então, começou a luta judicial pelo habeas corpus, para a qual ela se preparou por um ano e meio. Com prescrição, laudos, parecer de engenheiro agrônomo e certificados de cursos que fez em São Paulo e também na Escola Cannábica do Ceará, Robervania conquistou o documento e iniciou a produção da própria planta.
“Tive um ciclo durante 2024, mas no quintal. Só que a planta fica muito exposta: inicia o ciclo com 30 plantas e termina com 10, porque fica mais acessível a pragas. Acaba perdendo substrato, sementes, tempo. Neste ano, montei a estufa”, relata.
A estrutura toma, agora, quase todo o espaço da sala de casa. Além da estufa, pilhas de sacos de substrato, o “alimento” para fertilizar a terra, ocupam o local. O ar-condicionado ligado por 24h, necessário à plantação, só é possível devido ao Cadastro Único (CadÚnico), do Governo Federal, que confere à família a bandeira de “baixa renda” na energia elétrica.
É a única “ajuda” que tem.
Eu costumo dizer que eu me abandonei nos últimos três anos, porque eu precisava ter acesso a esse HC. Mesmo que futuramente venha ter cannabis no SUS, a condição do Allanzinho não vai entrar. Minha única forma de ter o óleo do meu filho é cultivando.”
Preconceito com a cannabis
O alívio pela maior qualidade de vida para ela e para o filho vem acompanhado de uma rotina de luta contra o preconceito – que já veio, inclusive, de médicos que atenderam Allan. “Já enfrentei muito de perguntarem se ‘isso’ realmente faz efeito mesmo, de quem passou ‘isso’ pro meu filho”, recorda Robervania.
Para Eugênio Franco, médico pós-graduado em cannabis medicinal, o preconceito é fruto de uma “proibição e uma propaganda negativa proposital, feita com interesses econômicos, discriminatórios e racistas desde o século passado, com muitas mentiras em relação aos efeitos da cannabis”.
Outro aspecto é a associação “automática” feita entre a cannabis medicinal e o uso fumado da maconha. “Quando falamos do uso, nunca, nunca recomendamos o fumo, porque de fato traz malefícios, por ser fumado. Inclusive, em pacientes que já fazem o uso fumado, tentamos mudar esse uso pra oral, que não causa os danos da via inalatória”, frisa o médico.
Hoje, as indicações mais respaldadas pela ciência, segundo pontua o pesquisador, são para condições como:
- convulsões de difícil controle;
- epilepsia refratária;
- dores crônicas, como da fibromialgia;
- insônia;
- ansiedade.
“Além disso, o uso pra crianças com autismo tem se mostrado muito promissor. O uso mais comum é através de óleo, e as vias de aquisição são em farmácias, associações ou importação. É de muito difícil acesso pra realidade da maior parte das famílias brasileiras, com impacto muito grande na renda”, reconhece Eugênio.
Comportamentos de agitação, agressividade, baixa tolerância à frustração e até seletividade alimentar”, que trazem sofrimento à criança”, podem ser melhorados com o uso medicinal da cannabis. “Pode ser associado a outras medicações ou ser uma alternativa a elas. Mas não é todo paciente que vai se beneficiar”, alerta.
O médico explica ainda que o uso não deve ser indiscriminado, e sim prescrito e acompanhado por um profissional. “Conseguimos utilizar em casos em que os outros fármacos não tiveram uma solução ou o paciente não tolera os efeitos colaterais. A princípio, nunca se substitui o medicamento pela cannabis, você associa e avalia.”
Em adultos, podemos usar o tratamento com o óleo para reduzir o consumo ou até mesmo interromper o uso da própria cannabis fumada, bem como de álcool, cigarro, cocaína e outras substâncias. Pode auxiliar no tratamento dessas dependências.
Os benefícios, acrescenta, incluem a redução dos efeitos colaterais. “Pacientes que tem dor crônica e precisam usar opioides, como morfina, muitas vezes conseguem reduzir o uso com a cannabis associada. Também ajuda muitas vezes pacientes com dependência em algumas medicações”, adiciona o pesquisador.
Um dos mitos em torno do uso do óleo é a possibilidade de causar dependência – risco que, como elucida Eugênio, é praticamente nulo se for feito de forma correta, prescrita e acompanhada.
“A taxa de dependência do álcool é 18%, o cigarro 30%, a cannabis fumada é 9%. Quando o uso é oral, pelo óleo, a tendência é ainda menor. E com acompanhamento médico e dose adequada, é praticamente inexistente”, reitera.
Desmistificar o uso
Para fazer ecoar a própria história, a de Allanzinho e auxiliar outras famílias no acesso a informações verídicas e seguras sobre o óleo de cannabis, Robervania se tornou ativista “antiproibicionista”. Hoje, é coordenadora no Movimento Social da Marcha da Maconha Fortaleza.
“Depois que eu vi as melhoras alcançadas por ele, através da cannabis, eu resolvi abrir para os meus seguidores no meu Instagram, para que eles também tivessem acesso à informação, para que outras mães pudessem ver o quanto a cannabis pode ser benéfica para os filhos dela. São centenas de famílias que a gente já conseguiu impactar”, diz.
Marcha da Maconha
Neste sábado (17), o movimento realiza a Feira Canábica do Ceará, na Praça da Gentilândia, no Benfica, com mutirão de acolhimento médico, oficinas, aulão de pilates, tira-dúvidas jurídico e rodas de conversa.
O objetivo da feira, segundo a organização, é “arrecadação de fundos, valorização e difusão da cultura canábica, do empreendedorismo e dos artistas e movimentos da cultura local”.
Uma semana depois, no dia 25 de maio, ocorrerá, na Av. Beira Mar, a Marcha da Maconha.