Igrejas de Fortaleza ainda hoje guardam restos mortais de religiosos, escravizados e políticos
Atualmente, o sepultamento em igrejas depende de regras civis e eclesiásticas, levando em consideração questões de vigilância sanitária e regras para a construção de túmulos

O sepultamento em igrejas e no entorno dessas construções já foi um costume em Fortaleza e no restante do Brasil. A prática foi abolida com a construção do cemitério São Casimiro, o primeiro da Cidade, em 1848, e a proibição de enterros fora dele. Mais de um século e meio depois, igrejas da Capital ainda guardam restos mortais de pessoas que foram sepultadas nelas. Também há aquelas onde religiosos ainda são enterrados ou são acolhidas as urnas com as cinzas de fiéis.
Um exemplo dessa tradição que ainda permanece, em partes, ocorreu na Igreja do Líbano, no bairro Meireles, na última segunda-feira (12). O pároco da Paróquia Nossa Senhora do Líbano, monsenhor Philip Fouad Louka, faleceu naquela manhã, aos 76 anos, e foi sepultado em um dos dois túmulos da cripta da igreja.
O sepultamento em Igrejas, atualmente, depende de regras civis e eclesiásticas, segundo o padre Rafhael Silva Maciel, pároco da Paróquia Nossa Senhora Aparecida, no Montese. “Na Arquidiocese, depende do desejo do sacerdote ou da anuência do Arcebispo. [E] também depende de questões de vigilância sanitária, das regras próprias para a construção de túmulos”, explica.
Segundo a Secretaria de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma), não existe uma legislação específica do município de Fortaleza que trate sobre sepultamento em templos religiosos ou igrejas. A prática é regulamentada por uma combinação de normas federais, estaduais e municipais, com foco principal na saúde pública, zoneamento urbano e preservação do patrimônio histórico ou cultural.
“A pasta reforça que, assim como qualquer outra edificação, a construção de templos religiosos e cemitérios em Fortaleza exige a emissão do Alvará de Construção, independente do tipo de templo, com ou sem cripta. Esse documento é fundamental para assegurar que o projeto esteja de acordo com as normas técnicas e legais do município, garantindo segurança, ordenamento urbano e conformidade com o planejamento da cidade”, diz a nota.
É o Alvará de Construção que regula a execução da obra, obedecendo ao que a legislação municipal prevê, especialmente na Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Lei nº 236/2017) e no Código da Cidade (Lei Complementar nº 270/2019), incluindo disposições relacionadas aos cemitérios.
“O Código da Cidade, porém, não trata explicitamente do sepultamento fora de cemitérios. Ele estabelece que o uso do solo deve estar em conformidade com o zoneamento urbano e as normas sanitárias. Portanto, sepultamentos devem ocorrer em locais adequados e legalmente instituídos para esse fim”, complementa.
O alvará de funcionamento, por sua vez, é dispensado para templos religiosos, conforme a Emenda à Lei Orgânica do Município – Lei Complementar nº 9, de 2015.
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O costume de realizar sepultamentos em templos religiosos foi presente, por exemplo, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Centro, a mais antiga de Fortaleza. Com história ligada à da escravidão na Capital, ela foi construída por escravizados, sepultados em seu alicerce.
“Depois que ela se torna uma igreja mais tradicional para a comunidade de Fortaleza, inclusive ocupando lugar de Catedral, você vai ter outras personalidades. O mais famoso é Major Facundo, que foi enterrado de pé, olhando para o Palácio da Luz, que era a sede da administração”, explica P.A. Damasceno.
Natural de Aracati, João Facundo de Castro Menezes, o Major Facundo, foi presidente da Assembleia Legislativa do Ceará (Alece) no período de 1838 e 1839. Ele foi assassinado em 8 de dezembro de 1841, quando “estava no exercício de inspector da Alfandega desta capital”, segundo registros do Instituto do Ceará.
Na Catedral Metropolitana de Fortaleza, ainda hoje são realizados sepultamentos de arcebispos e padres na Capela da Ressurreição, que fica no subsolo do templo. Foi para lá que levaram parte dos restos mortais de Dom Aloísio Lorscheider, em dezembro de 2018. Arcebispo de Fortaleza entre 1973 e 1995, ele inaugurou a Catedral em 1978, após quase 40 anos de construção.
“Na Catedral antiga, havia um número enorme de pessoas sepultadas”, conta o monsenhor João Jorge Corrêa Filho, vigário-geral da Arquidiocese de Fortaleza. À época da inauguração, ele narra que familiares das pessoas sepultadas foram contatados para recolher os restos mortais e aqueles cujas famílias não foram encontradas estão em um ossuário na parede da cripta. “É totalmente vedado, ninguém vê nada”, diz o sacerdote.
Dom Manuel da Silva Gomes, Dom Antônio de Almeida Lustosa, Dom Raimundo de Castro e Silva, Dom José Terceiro de Souza, Dom Guido Maria Casullo, Dom José Bezerra Coutinho, monsenhor José Quinderé e monsenhor Tito Guedes Cavalcante são alguns dos religiosos que estão sepultados na Catedral de Fortaleza.
O Santuário Arquidiocesano de Adoração – Igreja São Benedito, localizado no Centro, instalou o primeiro columbário em uma igreja no Ceará em 2022 para acolher urnas com as cinzas de fieis falecidos. A primeira família a depositar as cinzas de um ente foi a do jornalista Narcélio Limaverde.
“No columbário recebemos as cinzas de todos que desejam depositar, como pede a Igreja”, diz o pároco, padre Francisco Júnior. Na Igreja Católica, a cremação dos corpos é permitida desde 1963 e a Instrução Ad Resurgendum cum Christo, aprovada pelo papa Francisco em 2016, orienta que as cinzas devem ser conservadas em locais sagrados.
No mesmo ambiente também existe o Mausoléu dos Padres Sacramentinos, onde são sepultados os religiosos da Congregação Santíssimo Sacramento. Um deles é Dom Aldo Pagotto, que foi pároco do Santuário em 1996 e arcebispo emérito da Paraíba e faleceu em 2020, vítima da Covid-19, aos 70 anos.
Outras igrejas e mosteiros de Fortaleza possuem ossuários, como a Paróquia Cristo Rei, que tem uma estrutura para guardar os restos mortais dos jesuítas. No Carmelo de Santa Teresinha, no bairro Dias Macedo, também recebe as ossadas das irmãs carmelitas que são retiradas do Cemitério São João Batista, depois de 5 anos do sepultamento.
Relação com a morte mudou
Socialmente, a relação com a morte mudou ao longo do tempo. Antigamente, as pessoas tinham uma relação mais próxima com os mortos e acreditavam que, sendo sepultamento na igreja, ficava “mais próximo de chegar ao céu”, explica a Maria Clélia Lustosa Costa, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC).
“A morte não era um inimigo, o cemitério não era visto como um local de insalubridade”, afirma a professora, que também é coordenadora do núcleo Fortaleza da Rede Observatório das Metrópoles.
O professor, historiador e mestre em História Paulo Airton Damasceno, colunista do Diário do Nordeste, também aponta que era comum que o entorno das igrejas fosse uma área cemiterial e que o interior dos templos fosse destinado às pessoas mais abastadas.
“Normalmente, [para] aquelas famílias que contribuíram com obras e estruturas para as construções e edificações dos templos. Ou para pessoas que eram muito relevantes para aquele grupo colonial”, explica o professor.
Com o passar do tempo e o surgimento dos conceitos de cientificidade e higienismo, no século XIX, houve a separação espacial “entre o viver e o morrer”, diz Damasceno.
“É um período em que ganha grande força a teoria dos miasmas [impurezas liberadas na deterioração de substâncias orgânicas], a teoria dos ‘maus humores’. O cemitério passa a ser um espaço distante do centro onde as pessoas estão e sempre contrário ao vento, para que o vento levasse os maus ares”, explica Damasceno.
Em Fortaleza, a professora Maria Clélia conta que a motivação para a criação do primeiro cemitério, o São Casimiro, teria sido a situação em que a esposa do então presidente da província, Casimiro José de Moraes Sarmento, passou mal pelo mau-cheiro que era exalado dos túmulos que ficavam no piso da Igreja do Rosário.
“E aí ele determinou a construção do cemitério São Casimiro, que fica onde hoje está a Estação das Artes. Nos trilhos, ficava o cemitério. Cada vez que fazia uma reforma por lá reapareciam alguns ossos que sobraram”, diz Lustosa.
Atualmente, o historiador explica que o século XX também foi marcado por outra transição nessa relação com a morte, com o fim dos cemitérios de jazigos para organização dos cemitérios jardins. “Justamente para não lembrar a ideia da morte, para trazer uma ideia mais idílica, porque nós fomos gradativamente nos afastando da ideia da morte, nós não gostamos de tratar do tema da morte.”
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