Túmulos fora de cemitério: conheça monumentos em Fortaleza com restos mortais em áreas públicas

Neste dia de Finados, o Diário do Nordeste discute essas sepulturas como marcos históricos e territoriais

Escrito por Thatiany Nascimento ,
Estátua do General Tibúrcio a Praça dos Leões,
Legenda: Na Praça dos Leões, no Centro de Fortaleza, está a Estátua do General Tibúrcio com seus restos mortais
Foto: Thiago Gadelha

Conservar memórias, ovacionar feitos, garantir prestígio, aclamar personalidades históricas - ainda que na atualidade se tenha consciência que muitas dessas figuras não sejam assim tão admiráveis. Em Fortaleza, assim como em outras partes do mundo, estátuas erguidas em praças públicas trazem um elemento que reforça a recordação dos homenageados: são também túmulos e sob os pés mantêm os restos mortais das figuras exaltadas. Logradouros no Jacarecanga e no Centro são exemplos desse tipo de referência.   

Em muitos desses locais, quem transita ou frequenta sequer sabe que os monumentos de grande porte são também funerários e, há décadas, servem de túmulos para cearenses “ilustres”. Em pelo menos um caso, antes de ser depositado diretamente abaixo da estátua, os restos mortais passaram por outras áreas públicas. 

Em Fortaleza, monumentos do tipo estão presentes:

  • Na Praça dos Leões, no Centro, na Estátua do General Tibúrcio, que oficialmente nomeia o logradouro, chamado Praça General Tibúrcio;

  • Na Praça do Liceu, no Jacarecanga, na Estátua de Gustavo Barroso, que oficialmente nomeia o logradouro, chamado Praça Gustavo Barroso;

  • Na frente da 10ª Região Militar, no Centro, na Estátua do General Sampaio.

“Em quase todas as civilizações que temos documentação, o ser humano sempre teve uma relação muito próxima com a morte por não entender o mistério dela”, diz o historiador, mestre em História e colunista do Diário do Nordeste, Paulo Airton Damasceno. Então, completa, “havia uma curiosidade, uma tentativa de desvendar o que acontece com o fim da vida, da existência material. Em quase todas as grandes civilizações, há imensos monumentos associados à morte, não só no Egito, nos Incas, dos Maias, onde as pirâmides têm mais força, e isso sempre é próximo dos vivos”. 

Depois do Século XIX, explica que há uma “separação brusca entre o viver e o morrer”. De acordo com ele, “é comum na história da construção colonial brasileira, os espaços de viver e morrer convivessem”. 

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O historiador e professor da Universidade Federal do Cariri, Jucieldo Alexandre, reitera que “a vinculação entre morte e monumentos está presente em várias culturas, desde a Antiguidade”. Ele menciona que “segundo o historiador Jacques Le Goff, a palavra monumentum era, no latim antigo, entendida como um sinal do passado, algo que evocava outros tempos. Tinha, portanto, função memorialística: perpetuar uma recordação sobre um evento ou sobre uma pessoa”. 

Logo, continua ele, “as construções erguidas como monumentos seriam suportes materiais para a manutenção de narrativas que deviam celebrar feitos ou personagens”. Assim, diz ele, os mausoléus de personalidades citados acima “são a continuidade dessa antiga tradição”. Mas, pondera ele, “seguem um padrão mais grandiloquente, já que são construções que celebram a memória de ‘grandes homens’ ou do que se julgava serem ‘grandes homens’ numa dada época”.

Restos mortais do General Tibúrcio na Praça dos Leões

Na chamada Praça dos Leões, que oficialmente é denominada Praça General Tibúrcio, no Centro de Fortaleza, os restos mortais do cearenses da cidade de Viçosa do Ceará, general Antônio Tibúrcio Ferreira de Sousa, figura aclamada como herói da Guerra do Paraguai (de 1865 a 1870), foram depositados sob a estátua em 11 de agosto de 1952. Esse combate foi um conflito em que o Brasil, a Argentina e o Uruguai se uniram na “Tríplice Aliança” contra o Paraguai. 

Estátua do cearenses da cidade de Viçosa do Ceará, general Antônio Tibúrcio Ferreira de Sousa
Legenda: Monumento com restos mortais do cearenses da cidade de Viçosa do Ceará, general Antônio Tibúrcio Ferreira de Sousa
Foto: Thiago Gadelha

Antônio Tibúrcio Ferreira de Souza nasceu em 1835 e morreu em 1885. Ele foi um militar cearense do Brasil Império, considerado um bravo líder no Paraguai tendo participado de vários combates. Os restos mortais do militar foram transladados em 1952 do Cemitério São João Batista para a cripta construída no pedestal da estátua. 

O monumento foi inaugurado muitos anos antes, em um domingo, 8 de abril de 1888, sendo a primeira estátua de Fortaleza. A edição do jornal Gazeta do Norte do dia 9 de abril do mesmo ano, que consta no Arquivo Nacional, registra o fato. O livro "Os monumentos do Estado do Ceará", escrito em 1932, por Eusébio de Sousa menciona a construção da estátua. 

Segundo a obra, a ideia da estátua surgiu de um grupo de admiradores de "um dos máximos heróis da guerra do Paraguai”. Além de um grande “guerreiro no conflito” a obra também trata como um expressivo orador, filósofo, professor e administrador. No pedestal que sustenta a estátua, diz a obra, constam  “as datas de nascimento, praça e morte de Tiburcio”. Em fevereiro de 1892, a estátua sofreu um abalo e em maio de 1893 foi reinaugurada.  

Na dissertação de mestrado "Um filho para a pátria: a construção da memória em torno de General Tibúrcio e a escrita da História do Ceará (1887-1937)", apresentada por Karla Cristine Rodrigues ao Programa de Pós–Graduação em História Social, da Universidade Federal do Ceará (UFC), a pesquisadora menciona que corpo do general “havia sido enterrado cemitério em 1885, porém a estátua e os restos mortais ficaram separados quando da inauguração do monumento em 1888”. 

Estátua na Praça do Liceu é túmulo de Gustavo Barroso

Gustavo Adolfo Luiz Guilherme Dodt da Cunha Barroso foi um erudito cearense que nasceu em Fortaleza, em 29 de dezembro de 1888, e faleceu no Rio de Janeiro em 3 de dezembro de 1959.

Ele é uma figura controversa, pois, embora tenha expressividade no campo intelectual, tendo atuado como, por exemplo, presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), foi também integrante do movimento integralista e teve publicação de livros que estimulavam o antissemitismo, conforme aponta o artigo "Um ariano forjado em bronze: reflexões sobre as disputas de memória em torno da estátua e da praça dedicadas a Gustavo Barroso – Fortaleza, Ceará (1962-2019)" do doutorando em história pela Universidade Federal do Ceará, Pedro Henrique da Silva Paes. 

Monumento em homenagem a Gustavo Adolfo Luiz Guilherme Dodt da Cunha Barroso
Legenda: Monumento em homenagem a Gustavo Adolfo Luiz Guilherme Dodt da Cunha Barroso
Foto: Kid Júnior

Conhecido como Gustavo Barroso, ele tem uma estátua no centro da antiga Praça Fernandes Vieira, que posteriormente se tornou Praça do Liceu, no bairro Jacarecanga. Seus restos mortais estão abaixo do monumento desde 1965. A estátua foi inaugurada em agosto de 1962 no logradouro. 

O espaço escolhido para a estruturação da estátua foi a praça em frente ao Colégio Liceu do Ceará, pois, dentre outros pontos, a unidade educacional fez parte da formação de Gustavo Barroso. Em 1940 inclusive foi publicada a obra “Liceu do Ceará” do autor. 

Em 29 de dezembro de 1965, uma comissão comandada pelo governador recebeu os restos mortais de Gustavo Barroso. Na ocasião, um cortejo percorreu as ruas de Fortaleza e o ditador Humberto Castelo Branco, que estava na presidência do país,  depositou os restos mortais de Gustavo Barroso na base da estátua. 

Após vários traslados, restos mortais de General Sampaio estão no 10ª Região Militar

Brigadeiro Antônio de Sampaio, que ficou conhecido como General Sampaio, foi um cearense, natural da cidade de Tamboril e é considerado o Patrono da Infantaria do Exército Brasileiro. Ele morreu em 1866, na Guerra contra o Paraguai e teve os restos mortais submetidos a vários traslados, sendo abrigado em distintos túmulos. Ferido em combate na Guerra do Paraguai, morreu na Argentina em 1866.

Monumento de Brigadeiro Antônio de Sampaio, que ficou conhecido como General Sampaio
Legenda: Monumento de Brigadeiro Antônio de Sampaio, que ficou conhecido como General Sampaio
Foto: Kid Júnior

O artigo "As moradas eternas de Brigadeiro Sampaio" de Júlio Lima Verde registra que o Brigadeiro Sampaio após sua morte "teve os seus restos mortais submetidos a vários traslados". 

O primeiro enterro foi no cemitério Municipal de Buenos Aires, atual Cemitério de Recoleta. O Brasil decidiu repatriar os restos mortais e no país eles foram sepultados inicialmente na cripta da Igreja de Bom Jesus da Coluna, no Rio de Janeiro. Em 1871, os restos mortais foram retirados de lá, seguindo para Fortaleza para o mausoléu no cemitério público, mais tarde denominado Cemitério São João Batista. Lá ficaram até maio de 1966, quando mais uma vez foram transladados. 

Desta vez para um mausoléu construído pela Prefeitura de Fortaleza na recém inaugurada Avenida Bezerra de Menezes. A ideia era que o túmulo fosse visto pela população. O local ficava em frente ao aquartelamento do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva de Fortaleza, hoje sede da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS). 

O CPOR foi extinto e os restos mortais, em 24 de maio de 1996, foram levados ao local definitivo: o Forte de Nossa Senhora da Assunção, sede do Comando da 10ª Região Militar de Fortaleza, localizado no Centro da Capital cearense. Na época, foi erguido na parte frontal do Forte um panteão chamado de Brigadeiro Sampaio e até hoje o local abriga os restos mortais. 

Sentido dos monumentos 

O historiador e professor da Universidade Federal do Cariri, Jucieldo Alexandre, também acrescenta que “a construção de tais mausoléus sempre deve ser contextualizada”. Ele destaca que “a escolha por dar uma sepultura monumental em espaço público a uma personalidade é embasada por discursos, interesses e projetos políticos que são históricos. São decisões tomadas sempre por uma parcela pequena da sociedade, como intelectuais, políticos, militares, etc, num tempo e espaço”. 

Ele completa que “partem desses grupos o discurso que embasa o projeto monumental. Eles definem os eventos e personalidades que julgam que merecem a lembrança eterna, ao mesmo tempo em que escolhem os espaços públicos onde serão erguidos seus túmulo-monumentos”. 

Jucileudo faz ainda uma reflexão: “Não por acaso, tais mausoléus celebram, basicamente, homens ligados aos grupos empenhados nas homenagens: o militar que se destacou numa guerra; o revolucionário que defendeu um projeto político; o intelectual respeitado pelos pares, etc. Cabe a pergunta: quantos monumentos em praça pública de Fortaleza trazem os restos mortais de mulheres destacadas na história da cidade?”

“O esquecimento desses espaços está inserido nesse processo nosso muito fortalezense de esquecimento e abandono do patrimônio, seja ele festivo, fúnebre, temos o abandono dos espaços como marcos”, completa o historiador Paulo Airton Damasceno. 

Em diversas cidades do mundo, lembra o professor, há rotas de visitação nos chamados patrimônios sombrios, diferentemente do que ocorre no Brasil. “Em muitas regiões, esse turismo sombrio tem roteiros. Já dei muitas aulas no Cemitério São João Batista e é sempre algo que encanta, assusta e surpreende. Porque estamos tão pouco habituados a pensarmos sobre nossas representações do morrer que a gente se assusta quando percebe que ali é uma representação de um aprendizado social.” 










 

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