Comunidade ‘sem endereço’ de Fortaleza diz não receber cartas, carro do lixo nem agentes de saúde

Moradores relatam série de políticas que não chegam ao território; Prefeitura nega ausência dos serviços

Escrito por
Theyse Viana theyse.viana@svm.com.br
Imagem mostra mulher caminhando na calçada do Residencial José Euclides, no bairro Jangurussu, o maior e um dos mais pobres de Fortaleza.
Legenda: Residencial José Euclides, no bairro Jangurussu, o maior e um dos mais pobres de Fortaleza, reflete impactos da insegurança e das falhas em políticas públicas básicas
Foto: Kid Júnior

Solicitar pelo celular o cartão do Bolsa Família foi rápido para a autônoma Ivoneide Nunes, 56 – pegar um ônibus e ir a outro bairro buscar, por “não ter endereço” para receber em casa, foi o que demorou. O problema é enfrentado pelos cerca de 13 mil moradores do Residencial José Euclides, no bairro Jangurussu, em Fortaleza.

Na comunidade, será lançada, nesta sexta-feira (11), uma Agência Comunitária dos Correios. A unidade, quando inaugurada, deve receber e concentrar as correspondências e encomendas enviadas aos moradores. Hoje, eles precisam se dirigir a uma agência no bairro vizinho, Messejana, para buscá-las.

A falta de serviço de distribuição de correspondências é uma entre a coleção de ausências de políticas públicas da comunidade, que amarga sérios índices de violência – e isolamento – devido ao domínio da região por facções criminosas.

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A agência, então, é uma das soluções necessárias. Ela faz parte da iniciativa Correios Essencial, que propõe uma “parceria entre os Correios e órgãos públicos para oferecer serviços postais, garantindo atendimento e distribuição de cartas e encomendas, dentre outras soluções”.

No residencial, construído com recursos federais e estaduais e inaugurado em 2017 pelo Governo do Estado, as ruas até têm CEP, mas não há serviço de carteiro. “Eu pedi um cartão, botei o endereço da rua principal, com ponto de referência e tudo, mas nunca chegou”, queixa-se o comerciante Raimundo Nonato, 47.

“Tudo que a gente precisa bota pra pegar lá na Messejana”, complementa. A realidade é atestada por Conceição Santos, 50, também moradora. “Aqui a gente não recebe carta nem encomenda, minhas coisas eu boto tudo pelo celular. Se precisar comprar alguma coisa, tem que botar outro endereço. Aqui tudo é muito difícil pra gente”, reclama.

Imagem mostra mulher de touca preta e camisa cor de vinho sorrindo. Ao fundo, uma parede rosa.
Legenda: Ivoneide tem uma marmitaria dentro do residencial, e precisa fechar o comércio para buscar correspondências ou encomendas em um bairro vizinho
Foto: Kid Júnior

Para Ivoneide, do início desta reportagem, uma alternativa é usar o endereço do trabalho do filho. “A gente manda as coisas pra lá, pra não ter que ir buscar em Messejana. Meu apartamento mesmo não tem endereço”, frisa.

Jonas Dezidoro, titular da Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor), afirma que “a Prefeitura vai ser parceira da agência naquilo que couber”, e que após o lançamento será “combinado quem fica com qual responsabilidade” entre os entes envolvidos.

O gestor reconhece que o problema do correio é apenas um entre os múltiplos enfrentados pela comunidade. “Já dialogamos com as lideranças de lá e dos outros residenciais. Tem uma série de demandas que estão sendo colocadas: de saúde, segurança, educação”, inicia.

“A Habitafor não tem como resolver tudo. Então estamos nos colocando pra intermediar o processo. Estamos reforçando a equipe, Entendendo que isso é importante pra levar dignidade às pessoas”, frisa Jonas.

Impactos da agência

Imagem mostra, em primeiro plano, caixas de correio de cor cinza, com números de apartamentos. Ao fundo, uma parede está pichada com a palavra Paz.
Legenda: Liderança comunitária afirma que caixas de correio instaladas no residencial não seguem padrão e, portanto, não são utilizadas; em visita ao local, a reportagem verificou a existência de papéis e faturas de água dentro dos objetos
Foto: Theyse Viana

Sérgio Farias, membro do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e líder comunitário do José Euclides, destaca que o residencial “é maior (em população) do que 44 cidades do Ceará, mas não tem coleta de lixo, agente de saúde, serviço de Correios, nada”.

Ele explica que entre os motivos para os Correios não entrarem no território estão o fato de o residencial “ter apenas uma entrada” e de que as caixas de correios instaladas nos blocos “não estão no padrão”. “O problema não é o CEP”, resume.

O líder comunitário aponta que a falta de serviço postal para os milhares de moradores “é um problema social e jurídico” a ser mitigado pela agência comunitária. No equipamento, devem trabalhar pessoas do próprio José Euclides, que conhecem os moradores e o território.

“Nós temos uma associação. Temos que alugar um coworking pra registrar como endereço. Se preciso receber uma multa, um cartão de crédito, tenho que botar um segundo endereço. Nós não existimos. A política pública diz que aqui é perigoso – e, por isso, não vem”, lamenta.

Após o lançamento, deve ser iniciado o processo de instalação da agência. O prédio ainda não está definido, mas será localizado na parte central do residencial. “O morador vai receber tudo na agência, que será a 300 metros de qualquer casa do conjunto. No futuro, há possibilidade de termos carteiro comunitário”, projeta.

O impacto deve ser, inclusive, econômico, como ele analisa. “Isso vai potencializar as vendas online: a mulher que faz calcinhas aqui, vende pro atravessador, que leva pra feira, e alguém vem do Pará de ônibus pra comprar… Ela pode colocar a mercadoria dela em qualquer marketplace e vai a pé da casa dela até a agência entregar o produto.”

“Queremos que quem trabalhe na agência seja da comunidade, porque conhece todo mundo. Toda política que a gente pensa é assim. É a acupuntura social do território.”

A capacitação da equipe que atuará na unidade será feita pelo Instituto Centro de Ensino Tecnológico (Centec), do Governo do Estado. “Nosso objetivo é contribuir com a formação técnica e operacional dos profissionais, garantindo um atendimento de qualidade à comunidade”, informou a instituição, em nota.

“Em relação a investimentos, informamos que o Centec não está direcionando recursos financeiros para a implantação da agência, atuando exclusivamente no apoio formativo”, complementa.

O Diário do Nordeste contatou os Correios para obter detalhes sobre a agência e sobre as dificuldades dos moradores em receber correspondências e encomendas. Não houve retorno até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para futuras manifestações.

Ausência de políticas

Imagem mostra a entrada de um dos blocos do residencial José Euclides, em Fortaleza. À esquerda da foto, uma porta de vidro com moldura de metal está aberta. À direita, no muro, há uma pichação com a frase chega de tortura.
Legenda: Área do residencial é cercada por conflitos entre facções criminosas, tornando a segurança uma das principais demandas
Foto: Kid Júnior

Além dos Correios, outros serviços essenciais “não entram” no residencial: como caminhão do lixo e agentes comunitários de saúde, segundo denuncia Sérgio. “O lixo é colocado em contêineres: qualquer pessoa sabe que, se tirar o contêiner, vira um ponto de lixo crônico. Temos vários pontos de lixo aqui, em todas as ruas”, lamenta.

Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) nega que os agentes não visitem o local. “O bairro Jangurussu, incluindo o Residencial José Euclides, conta com a atuação de Agentes Comunitários de Saúde (ACS), com prioridade para as microáreas mais vulneráveis, como forma de garantir maior equidade na assistência”, frisa.

De acordo com a Pasta, “55 ACS realizam acompanhamentos na região, levando serviços como visitas domiciliares, palestras educativas e atualização do cartão de vacinação,  promovendo saúde e fortalecendo o vínculo com a comunidade”.

Já a Secretaria Municipal da Conservação e Serviços Públicos (SCSP) informa, em nota, que a coleta domiciliar que atende o residencial “está acontecendo normalmente, três vezes por semana, às terças, quintas e sábados”. A Pasta informa que são 17 contêineres instalados na área “para auxiliar o serviço de coleta”.

“Na região, também há um ponto de descarte irregular de lixo monitorado, que recebe coleta especial programada. Apesar de o serviço estar ocorrendo de forma ordenada, a SCSP envia equipe técnica, na quinta-feira (10), para conversar com a comunidade e entender o que pode ser feito diante da demanda do local”, finaliza a SCSP.

Imagem mostra rua cercada por vegetação e calçada com ponto de lixo. Mais à frente, um contêiner para depósito de resíduos.
Legenda: Contêineres devem concentrar lixo para facilitar coleta, mas resíduos se espalham pelas vias
Foto: Kid Júnior

Sérgio, líder comunitário, pontua que o estigma de insegurança é o que afasta os serviços do residencial. “A política pública diz que aqui é perigoso – e, por isso, os agentes não vêm, o correio não vem”, inicia. “O Jangurussu é o maior bairro de Fortaleza. O IBGE não veio aqui, em nenhum conjunto habitacional”, aponta.

No local, foi erguido o módulo do projeto Zona Viva, que concentra salas multiuso para atividades e serviços à população. É um ponto de referência não apenas geográfico, mas social, onde moradores jovens e adultos trabalham em qualificação profissional, ações de cultura, esporte e lazer. Um respiro e, ao mesmo tempo, símbolo de resistência.

“Fortaleza já está construindo 2040, 2050, né? Nós estamos querendo construir o Jangurussu 2015, quando construíram esse conjunto. Resgatar coisas que nunca tivemos. Ter uma coisa básica, que no interior chegava de mula, que é o correio. Nós não estamos na Fortaleza 2040”, sentencia.

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