Cearense pós-doutora em Harvard explica como calor, melatonina e Covid longa podem afetar o sono

Laboratório do Sono da UFC acompanha pacientes em pesquisa sobre os impactos da infecção na qualidade de vida

Escrito por
Lucas Falconery lucas.falconery@svm.com.br
Especialista em sono
Legenda: Emmanuelle investiga repercussão no sono causada pela Covid-19
Foto: Davi Rocha

Poderia ser simples. Mas acordar renovado parece ser uma rotina limitada a poucos devido ao aumento dos transtornos do sono. A rotina estressante, o uso de medicamentos indutores de sono, os efeitos da Covid no sistema nervoso central e até o calor prejudicam essa ação, em teoria, natural.

É para esse contexto que a cearense Emmanuelle Sobreira, pós-doutora em sono pela Universidade de Harvard, uma das instituições de maior relevância dos Estados Unidos, se dedica durante toda a trajetória acadêmica. Psicóloga por formação, Neuropsicologia e Neurociência foram temas de aprofundamento na pós-graduação.

Emmanuelle faz parte do grupo de especialistas que busca respostas numa parceria entre a Universidade Federal do Ceará (UFC) e a Universidade de Harvard.

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Já nos primeiros casos de Covid, em 2020, os pesquisadores cearenses avaliam os sintomas neurológicos da Covid, como alterações cognitivas, problemas no olfato, dores de cabeça e transtornos do sono. Na UFC, os trabalhos são coordenados pelos professores Manoel Sobreira Neto e Pedro Braga da Faculdade de Medicina.

O grupo avalia cerca de 200 pacientes com sintomas ligados à Covid Longa – termo dado para sequelas que perduram meses após a infecção pelo coronavírus –, com o primeiro artigo publicado em 2022. 

O Diário do Nordeste recebeu Emmanuelle Sobreira no retorno ao Ceará e conversou, além da experiência no exterior, sobre aspectos centrais do atual desafio de dormir bem.

Como foi a experiência de fazer pós-doutorado em Harvard e ao quê você se dedicou no período?

A experiência foi fantástica. Se você pensa em alguém que gosta de pesquisa, de estudar e de entender a ciência, quem não sonha em estar numa universidade referência no mundo? Eu sempre fui pesquisadora, desde a universidade, então é algo que faz parte de mim, me vejo nesse lugar e eu acredito que nasci para isso.

Com a pandemia, aqui ainda em Fortaleza, pela Universidade Federal do Ceará, a gente começou a estudar as consequências da Covid na população para além dos problemas respiratórios que a infecção traz. Vimos que tinha muitas consequências neurológicas, entre elas alterações cognitivas – principalmente na atenção e memória – e no sono.

Isso foi objeto de pesquisa em meados de 2020, montamos um projeto com os médicos Pedro Braga e Manuel Sobreira, que segue até hoje. A partir desse projeto, surgiu a oportunidade de fazer o pós-doc pela Universidade de Harvard, no hospital chamado Beth Israel, onde há um laboratório de sono. Eu estudei as consequências cognitivas da Covid Longa.

Como funciona a iniciativa realizada na UFC?

A gente tem cerca de 200 participantes atualmente, de vários lugares, é uma pesquisa aberta ao público geral, que passa por uma triagem e a partir disso são inseridas ou não no grupo. Na pesquisa, há uma avaliação neuropsicológica, exames relacionados ao sono, exames de sangue para analisar marcadores genéticos, como RNA e micro RNA.

Também fazemos ressonância magnética, então, quem participa da pesquisa aqui tem, em contrapartida, acesso a esses exames para a gente entender o que que está acontecendo de fato. 

Nos Estados Unidos, o estudo tinha outros outros detalhes incorporados e, no meu caso, a gente usa um protocolo de avaliação cognitiva bem simples de fazer, algo que foi elaborado pelo NIH (sigla em inglês para Instituto Nacional de Saúde), e a partir desse instrumento a gente avalia memória, atenção, memória de trabalho, velocidade de processar informação e funções executivas.

Especialista em sono
Legenda: Pacientes passam anos com prejuízos no sono após infecção pelo coronavírus
Foto: Davi Rocha

Temos visto que essas funções estão sendo afetadas naqueles pacientes que têm o que a gente chama de Covid Longa. Ou seja, esses sintomas e queixas após terem sido acometidos pela Covid depois de cerca de 3 meses.

Ainda serão necessários mais estudos sobre o tema, mas o que a Ciência já sabe sobre os efeitos da Covid no sono?

A Covid é uma doença infecciosa e, por si só, é inflamatória. No nosso estudo, estamos comparando ela com uma outra doença também inflamatória, que por sua vez causa algumas alterações cognitivas. O que a gente tem visto é justamente isso: as doenças inflamatórias que podem atingir o sistema nervoso central, acabam levando a mudanças na na rota sináptica.

Infelizmente, pode acontecer de morrerem neurônios e, por causa disso, as pessoas terem essas queixas. Mas são estudos que estão em andamento e o que a gente pode dizer é que é muito forte essa relação. O que se vê, é que a Covid é uma doença muito mais sistêmica do que é específica e que e que pode sim trazer consequências no sistema nervoso central. 

E aí, o sistema nervoso central é um mundo, né? Estamos falando de cognição, mas a gente dorme a partir de funções executadas por esse sistema.

O que os pacientes costumam relatar como os principais sintomas?

Fadiga mental, o que eles chamam de Brain Fall, que um alentecimento do raciocínio, uma maior dificuldade de se manter atento, por vezes faltam palavras no meio de uma conversa. Os pacientes trazem muito essa queixa como se fosse uma dificuldade na memória – o que pode ser também –, mas é como se a cabeça que funcionava numa velocidade antes, não funciona mais. O motor não opera mais com a velocidade que operava antes.

Já existe alguma forma de contornar esse sintoma e acelerar esse motor novamente?

Em Harvard, nesse mesmo grupo, existe uma outra pesquisa em andamento sobre reabilitação na Covid Longo. Em São Paulo, também temos o grupo da professora Liane Mioto, que também está trabalhando com reabilitação nessa população. Aqui, a gente está organizando algo para isso.

Estamos estruturando um projeto que vai nesse sentido, porque não basta só identificar o que está acontecendo, né? A gente pensa muito no que podemos fazer pelo paciente. O que as pesquisas trazem para a população é esse resultado: o que a partir disso podemos melhorar a vida dessas pessoas?

Também existe um impacto da falta de sono para a saúde mental e vice-versa. O que podemos pensar sobre a repercussão disso no longo prazo?

Pode acontecer muita coisa porque não dormir bem é um fator de risco para muitos problemas de saúde. O que eu costumo dizer aos pacientes no consultório é que o sono é algo natural, fisiológico, porque o ser humano tem isso dentro do seu funcionamento.

O problema que nós enfrentamos hoje são os milhares de estímulos que nós temos, e as pessoas parecem se recusar a parar, a ter o descanso. Parece que todo mundo tem que estar produzindo e cada vez mais – o que é importante, porque o que seria da nossa sociedade sem as emergências de saúde? Porém, isso não é necessário para todos.

Não dormir bem pode ser fator de risco para doenças cardiovasculares, para doenças cerebrovasculares, como o AVC (Acidente Vascular Cerebral), pode favorecer demências como a doença de Alzheimer, obesidade, maior risco de depressão, ansiedade e entre outras alterações clínicas.

Eu recebo muitos pacientes apavorados com isso, mas não é algo direto. “Ah, eu não dormi bem hoje e no outro dia vou ter um ataque cardíaco?”. Não é assim, porque todo mundo pode ter uma noite ruim, o que interfere na nossa saúde quando isso fica crônico e não tratado adequadamente.

Nem todo problema de sono, por exemplo, é insônia, tá? Apesar de ser muito comum. Nem todo problema de sono é apneia obstrutiva do sono, apesar de ser muito prevalente. Então, o que eu sugiro sempre: procurar um especialista, entender o que está acontecendo e não se apavorar.

Os remédios para dormir e a melatonina estão cada vez mais populares. Como a senhora observa esse movimento de recorrer a essas estratégias?

Tenho visto muitos pacientes na busca por achar “soluções milagrosas” e imediatas. É uma verdadeira loucura. Eu recebo pessoas com dependência química dessas medicações e isso é grave, as pessoas deixam de ter um único problema com a dificuldade inicial do sono e agrega a isso uma adicção. 

Isso pode chegar ao ponto de ter consequências graves, como desmaios, crises convulsivas e todos os sintomas de uma abstinência. Na terapia cognitivo comportamental para insônia, para os transtornos do sono, a gente tem uma sessão só para psicoeducação para que o paciente entenda o que é que ocorre para que a gente durma.

Algumas pessoas levam 10 ou 20 minutos para conseguir começar a dormir e acham que isso é anormal. Não é. A gente pode demorar até 20 minutos para entrar no sono. Por outro lado, eu tenho pessoas que deitam e em 1 minuto estão dormindo, mas isso é individual.

Especialista em sono
Legenda: Pacientes acreditam em "interruptor" para dormir no mesmo instante no qual se deitam
Foto: Davi Rocha

Sobre a melatonina, é um problema de saúde pública. As pessoas dizem que é um “remédio natural”, mas o natural é o que o nosso organismo produz. Se você não tem uma necessidade específica para usar esse tipo de substância, não há porquê.

Apesar de parecer inocente, a melatonina vai alterar o funcionamento do seu corpo, não só relacionado ao sono, mas a outras partes do corpo que funcionam em ciclos. Se você tomar mais do que o necessário, há um desequilíbrio. E tem criança tomando, o que é mais absurdo, porque interfere no funcionamento fisiológico.

Para dormir bem, a gente não precisa correr atrás do sono, a gente precisa mudar o simples. Como, por exemplo, sair do celular mais cedo, não ficar tanto tempo em rede social, não tomar tanto bebidas estimulantes. Tenho visto tomarem remédios para dormir e bebidas para ficar o dia acordado. Eu tive um paciente que teve uma convulsão por uso de cafeína em cápsula.

Estamos em um contexto de temperaturas mais altas, com as mudanças climáticas, e nem todo mundo tem acesso ao ar-condicionado. Isso tem algum impacto para a qualidade do sono?

De fato pode ter sim, quando pensamos num ambiente com temperatura adequada, não necessariamente um ar-condicionado, mas onde a pessoa não fique com calor ou com frio. O contrário disso pode causar despertares.

Se eu começo a dormir refrescada pelo banho, mas não tenho ar-condicionado ou ventilador, e moro num lugar quente, eu posso despertar várias vezes ao longo da noite por isso. Já atendi um paciente na rede pública que morava num quarto e o calor era insuportável.

Nem todo mundo tem a mesma oportunidade de dormir, isso envolve o ambiente, o lugar e a situação. O sono é natural, mas nem todo mundo tem as mesmas condições e temos que tratar individualmente com empatia a cada situação.

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