Bordado, forró e jogos de tabuleiro: o 'novo recreio' dos alunos do CE após a proibição dos celulares nas escolas
Atividades contribuem para o desenvolvimento da memória, da linguagem e dos aspectos socioemocionais

Não importa a escola – se pública ou particular, numa capital ou no interior –, a volta às aulas deste ano acontece de uma maneira diferente dos anos anteriores em grande parte das escolas do País. Com a proibição do uso do celular, por meio da Lei Federal 15.100/2025, sancionada em janeiro, os estudantes deixam as telas e se adaptam com outras atividades no “novo recreio”. Ou seria um intervalo à moda antiga?
No Ceará, fora do mundo virtual, turmas aproveitam para experimentar os jogos de tabuleiro, fazer bordado e até dançar forró na hora dos intervalos. Além de desenvolver as habilidades socioemocionais, os estudantes treinam memória, raciocínio lógico, linguagem, dentre outros aspectos.
Para Ticiana Santiago, psicopedagoga e doutora em Educação, é importante reconhecer a função da tecnologia como ferramenta para o ensino. "A tecnologia faz parte da nova geração, das regulações e das relações nesse contexto. Então, a gente não pode negligenciar essa discussão extremamente necessária", aponta.
Contudo, é nas atividades culturais e de sociabilização que os estudantes encontram um espaço rico. "Todos os recursos simbólicos que nós temos ajudam a trabalhar as funções psicológicas superiores, a atenção, o pensamento, a linguagem, a memória, a consciência, a capacidade de refletir", detalha.
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Ao som da sanfona
Uma das alternativas às telas com maior repercussão nas redes sociais vem da Escola de Ensino Médio em Tempo Integral Cônego Luiz Braga Rocha, em Ibaretama, no Sertão Central do Ceará, onde estudantes usam o tempo entre aulas para dançar forró.
“Isso é algo dos próprios alunos, porque a escola em tempo integral incentiva esse protagonismo, que se organizam, vão na sala da coordenação, levam a caixa de som para o salão e trazem um pen-drive com as música”, contextualiza a diretora Maria do Céu.
Entre os adeptos ao “forrozim” está o estudante Rayan Cavalcante, de 17 anos, do 3º ano do Ensino Médio. “É bom porque a gente forma um vínculo e saímos do mundo digital, que causa danos à saúde mental. O forró é uma forma de se distrair, e faz bem para o corpo e para a mente”, reflete.
Desde o retorno às aulas, os encontros para dançar acontecem todos os dias e a dupla Claudio Ney e Juliana está sempre no repertório.
“Antigamente com a liberação dos celulares não tinha tanta interação, todo mundo ficava muito tempo nas telas. Agora, todo mundo dança, entra na onda e quem quiser chegar pode dançar”, completa Rayan.
O celular, em alguns momentos, faz falta sim. Mas, de modo geral, a socialização tem ocupado o tempo de forma mais proveitosa. “O tempo passa e a gente nem percebe, nem sente tanta falta do celular, é algo bem pessoal”, avalia.
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Maria do Céu lembra que o aparelho ainda pode ser usado durante atividades planejadas pelos professores. “A gente sabe que o celular é muito positivo, mas proporciona algumas situações negativas, muitos não têm maturidade para interpretar ações que vêm na tela”, pondera a diretora.
Além do forró, os estudantes dedicam tempo para os jogos de tabuleiro e disputas de vôlei na quadra. “A gente vê isso como muito positivo, estão realizando outras atividades para substituir o uso da tela, o que também é aprender”.

Entre livros e bordados
As telas nunca atraíram Stella Torelli, de 12 anos, diante da possibilidade de conversar com as amigas, aproveitar os livros ou praticar o bordado aprendido com a avó aos 5 anos.
“Os alunos ficavam muito tempo usando o celular, às vezes nem conversavam entre si, ao invés de aproveitar o mundo, ficavam jogando. Muitos iam para a biblioteca só aproveitar o ar condicionado”, observa sobre a rotina antes da proibição do aparelho.
Apesar do pouco tempo da mudança, a estudante do 7º ano numa escola privada de Fortaleza já nota a diferença no comportamento das turmas. “Antes, os alunos ficavam muito nervosos porque o celular causa um pouco de estresse e eles ficavam gritando quando tinha que voltar para a sala. Agora todos estão mais calmos e alegres”, completa.

Em casa, o uso do celular é bem moderado com apenas 2 horas por dia entre a rotina de estudos. “Não vou ficar naquela pressa de estudar muito rápido para ir ao celular porque tenho uma rotina estabelecida”, frisa Stella.
A psicopedagoga Ticiana Santiago reforça a necessidade das experiências do mundo físico para o processo de desenvolvimento. "O nosso corpo, as emoções e o movimento são responsáveis pela autorregulação do sujeito. Então, nas tecnologias digitais, isso acaba sendo esquecido", frisa.
Isso não faz com que o celular, por exemplo, possa ser bem aproveitado dentro da sala de aula. "Para crianças com deficiência ou dificuldade de aprendizagem, é uma ferramenta muito potente para a inclusão. Então, a gente não pode demonizar esses recursos", pondera Ticiana.
Vicente Melo, psicólogo e pedagogo, indica a necessidade de levar esse período de transição para o planejamento de aulas, com discussão sobre a melhor forma de retirar as telas. "Nós sabemos que a partir do momento que o aluno não estiver com o celular, pode ser potencializada a comunicação entre os colegas e se reduzir um aspecto da ansiedade. Porém, também pode haver um geração de ansiedade pela sensação de perda".
Eu acredito que é um potencial e o professor vai poder fazer com que as crianças entendam que o celular não é só um dispositivo de lazer, mas de acesso à informação
Tabuleiros e conversas
Na Escola Profissional Joaquim Moreira, em Fortaleza, as restrições ao uso do celular não são novidade: há cinco anos é implementada a Lei Estadual nº 14.146, de 2008, que proíbe o uso do aparelho durante as aulas. Em tempo integral, agora os estudantes ficam sem uso durante os intervalos e o almoço.
"Estamos nessa adaptação de tirar dos intervalos, mas eu posso dizer que não há dificuldades, porque já estavam habituados a ficar sem", resume a diretora Marta Ribeiro. O estranhamento maior vem dos alunos do 1º ano do Ensino Médio, mas logo há adaptação, como observa.

"O pessoal 'aprendeu' a conversar na hora do almoço, porque antes ficavam no fone de ouvido com músicas ou assistindo vídeos. Hoje eles têm que interagir", detalha. Quando o toque sinaliza o recreio, os corredores ficam cheios e as mesas logo são preenchidas por alunos em jogos de cartas e de tabuleiros.
Os alunos estavam desfocados, o celular ficava no modo silencioso, mas vibrava e os alunos queriam sair da sala. Tivemos algumas situações com memes, fotos de alunos ou de professores que viraram figurinhas, e o rendimento não era tão bom", lembra do cenário há 5 anos.
Ao chegar, os estudantes têm tempo de avisar aos pais da chegada e logo depositam os aparelhos em um suporte transparente na entrada da sala de aula. Os celulares ficam com as telas viradas para a parede por todo o dia. No intervalo, por exemplo, a sala fica trancada.
Na hora do almoço, também há possibilidade de participar de iniciativas como o “Juntas”, onde são feitos debates sobre a capacidade feminina, formas de defesa e cuidados com a saúde. O “Reconstruídos” reúne os meninos para trabalhar temas como o machismo.
"O rendimento aumentou, a empregabilidade dos alunos bateu os 90%, a inserção na universidade se ampliou, tivemos aprovados em Medicina, Direito, Nutrição... O leque se abriu", comemora a educadora.

Para a estudante Havila Silva, de 17 anos, a distância das telas contribui diretamente para a preparação da turma do 3° ano do Ensino Médio para o vestibular. "Esse processo é muito necessário, porque a internet tem tomado muito do nosso tempo e não de uma forma muito boa", reflete.
Com isso, o equipamento serve mesmo para avisar a família da chegada e da saída da escola. "Ao chegar na escola, avisamos aos pais que chegamos e caso aconteça algo, vamos até a secretaria e ligamos para a família. A gente vai se adaptando a esse novo mundo", conclui.
Sobre a legislação
A Lei Federal 15.100/2025, sancionada em janeiro pelo presidente Lula, proíbe o uso dos aparelhos durante as aulas, recreios e intervalos em todas as etapas da educação básica (educação infantil, ensino fundamental e médio), tanto em escolas públicas quanto privadas.
O texto indica que o uso de aparelhos eletrônicos nas salas de aula é permitido apenas para fins didáticos, conforme orientação dos professores. A lei considera sala de aula todo espaço em que são desenvolvidas atividades pedagógicas, sob orientação de profissionais de educação.
A lei permite o porte dos celulares, mas não o uso dos aparelhos para fins pessoais. A permissão existe apenas para “situações de perigo, estado de necessidade ou caso de força maior”.
O projeto de lei também aborda responsabilidades das redes de ensino e das escolas em relação à saúde mental dos alunos da educação básica.
No artigo 4º, o texto aponta que devem ser elaboradas estratégias, informando aos estudantes sobre riscos, sinais de alerta e prevenção do sofrimento psíquico em crianças e adolescentes, incluindo o uso sem moderação de celulares e outros aparelhos eletrônicos.