Primeira repórter negra na TV, Glória Maria deixa legado de representatividade racial e feminina
A jornalista que morreu nesta quinta-feira (2) esteve por mais de cinco décadas contando histórias e vivenciando aventuras na televisão
Glória Maria abriu portas, escalou o Himalaia, entrevistou grandes personalidades, contou centenas de histórias, viveu o Jornalismo como ninguém. A morte da jornalista nesta quinta-feira (2) comove todo o Brasil, mas especialmente as milhões de crianças, jovens e adultos negros que se viram em Glória por mais de cinco décadas.
Ícone da televisão brasileira, Glória não deixa só um legado para o telejornalismo, mas sobretudo para a representatividade racial e feminina em um espaço ocupado historicamente e por pessoas brancas e por homens. Ela, inclusive, é considerada como a primeira jornalista negra a aparecer na TV.
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A estreia de Glória aconteceu em 1971, quando os repórteres ainda não apareciam no vídeo, durante a cobertura do desabamento do Elevado Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro. A gloriosa jornalista também foi a primeira repórter a aparecer ao vivo no Jornal Nacional.
“A primeira coisa que a vida da Glória deixa pra gente é a certeza de que o jornalismo também é pra população negra. A trajetória dela é marcada por ineditismos e isso é muito recorrente na vida de pessoas negras. Olham a Glória na TV e a veem como uma referência mesmo, de que é possível que aquele lugar também seja ocupado por pessoas como nós”, destaca o jornalista e mestre em Antropologia Bruno de Castro.
A comunicóloga e pesquisadora antirracista Helosa Araújo acrescenta que “a existência de Glória dizia para o Brasil e para o mundo ‘existimos, temos voz, somos capazes’. Para o mundo e para o jornalismo brasileiro (e internacional), ela trouxe a primordial possibilidade de nos ver, e nos ver em todas as nossas humanidades”.
Representação positiva
A secretária da Igualdade Racial do Ceará, Zelma Madeira, destaca que Glória trouxe uma representação positiva do povo negro na nossa sociedade racializada.
"Pra nós, é muito caro o reconhecimento étnico, então nós termos a Glória por mais de 50 anos na TV, que alcança as camadas mais populares e de trabalhadores, nos serviu como uma referência positiva. Se nas nossas brincadeiras enquanto meninas negras, fôssemos identificadas como Glória Maria, era motivo de muito orgulho”.
Zelma ainda pontua que a jornalista mudou a concepção preconceituosa que a sociedade tem sobre o trabalho negro. “Além dessa imagem, ela tinha uma qualidade muito grande, se tornou referência profissional, porque trabalho de negro não é considerado como uma coisa boa. Ela traz um trabalho bem feito, relevante, é pioneira”.
Mulher de peso
Por muito tempo, Glória foi a única jornalista negra e mulher a ocupar o espaço televisivo, o que segundo Helosa, é muito cruel ter uma representação única de um grupo social minorizado. Seu trabalho, porém, sempre teve um papel extremamente relevante.
"Ela nos mostrou que não somos um corpo de subserviência. Nos possibilitou nos imaginar com as nossas humanidades, com nossos cabelos, mesmo que buscando esses encaixes, ser. Ela carregou muita responsabilidade nesse sentido”.
Para Bruno, Glória rompe a lógica de que os espaços de intelectualidade são exclusivos de pessoas brancas. “O legado dela é um recado pra sociedade: esse espaço também é nosso. E isso repercute em várias gerações do Jornalismo, da Academia, na nossa casa. Quantas famílias ligaram a TV, viram a Glória e se viram ali”.
A professora do Departamento de Ciências Sociais da UFC, Geísa Mattos, afirma que Glória foi uma exceção no jornalismo brasileiro. Apesar de a maioria da população brasileira ser negra e, mesmo tendo um aumento no número de profissionais jornalistas negros e negras nos últimos anos, ainda são minoria nos espaços de trabalho.
“Nós precisamos que essa igualdade racial seja mais significativa também no meio televisivo. Espero que essas homenagens à Glória Maria se transformem em luta por igualdade racial. Inclusive no nosso Estado, porque o Ceará tem uma população de mais de 60% de pardos e, infelizmente, quando a gente olha essa representatividade no jornalismo, ainda é mínima”.
Luta contra o racismo
Apesar de ocupar um lugar de evidência, Glória também vivenciou momentos de preconceito por conta da cor de sua pele, os quais ela relatava em entrevistas. O racismo veio, inclusive, de um ex-presidente do Brasil, João Baptista Figueiredo, como ela relembrou ao Memória Globo.
"Ele [João Figueiredo] fez aquele discurso ‘eu prendo e arrebento’. Na hora, o filme acabou e não tínhamos conseguido gravar. Aí eu pedi: ‘Presidente, é a TV Globo, o 'Jornal Nacional', será que o senhor poderia repetir?’ ‘Problema seu, eu não vou repetir’, disse Figueiredo”. Depois do episódio, onde Glória chegava, o ex-presidente dizia para a segurança: ‘Não deixa aquela neguinha chegar perto de mim’.
Noutra ocasião, em 1970, a jornalista foi impedida de entrar pela porta da frente de um hotel pelo gerente. “Chamei a polícia, e levei esse gerente do hotel aos tribunais”, relatou Glória em uma entrevista. Ela foi a primeira brasileira a usar a Lei Afonso Arinos, que punia o racismo como contravenção.
Pela sua potência e história, Helosa afirma que Glória Maria representa honra. “A gente não pode olhar pra ela e pensar só em sofrimento, pra dor, mas pra toda a capacidade, todo o brilho, o sorriso, o talento, mesmo que com todos os desafios. A gente precisa parar de olhar pra uma mulher negra apenas com esse viés do sofrimento, observar também os gostos, o sucesso”.
A multiplicidade e o conhecimento que a jornalista carrega, segundo Bruno, é a sina do povo negro, que precisa fazer de tudo para não ser engolido pelo mercado de trabalho. “A gente que é negro precisa fazer muito esforço, aprender várias línguas, estar em vários lugares. Quando ela diz na TV que o racismo é o dia a dia do povo negro e precisa encontrar trajetórias pra sobreviver, a gente se vê nela”.
“Pra mim, a Glória é a personificação de um sonho. Sempre quis ser comunicólogo, jornalista, olhar pra ela me dava a certeza de que eu também podia ser. O lado da beleza, a Glória cultivou muito isso, de se sentir bela, de mostrar a beleza negra, então tudo isso me mostrou que eu também podia, um jovem negro, gay, do Nordeste”.