Os 90 anos de Hilda Hilst, a escritora paulista transcendente e necessária
Nesta terça-feira (21), dia em que celebramos o novenário da literata, o Verso faz um apanhado do legado de uma das maiores vozes literárias do País a partir do olhar de cearenses
Meio louca, eremita, arredia, indomesticável. Ainda que certeiras, as palavras do falecido escritor carioca Victor Heringer (1988-2018) no posfácio da coletânea “Da Poesia” – publicada pela Companhia das Letras, em 2017 – dão conta somente de acenar pistas, mas continuam distantes de um conceito fechado acerca de Hilda Hilst. Ninguém consegue o feito. Como ele mesmo escreveu, “a imagem de uma mulher (com aqueles atributos) que se criou em volta de Hilda diz mais sobre quem tenta rotulá-la do que sobre ela mesma”.
De fato, a poeta paulista, uma das maiores e mais autênticas vozes das letras brasileiras, não se continha em apresentar faces apequenadas do que escrevia. Traduziu-se em muitos fazeres e mistérios, transitando, como poucos, pelos vastos terrenos da poesia lírica, prosa narrativa e dramaturgia, a trinca sagrada e fundamental da literatura.
Nesta terça-feira (21), quando ela completaria 90 anos, o oceano de influências que deixou na arte nacional se corporifica pelas diferentes leituras e análises de sua obra, incansável de lúcida, perene de inquietações.
Não à toa, em comemoração à data, a mostra “Ocupação Hilda Hilst”, realizada pelo Itaú Cultural em 2015, na sede do equipamento, em São Paulo, está disponível no acervo digital do equipamento e pode ser acessada gratuitamente. Nela, é possível conferir fotos, documentos, manuscritos, obras originais, audiovisuais, entrevistas e uma série de outros registros levantados durante as pesquisas feita para a elaboração da exposição dedicada à autora.
Processos de criação mantidos pelo Instituto Hilda Hilst (IHH) e pelo Centro de Documentação Cultural da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), do qual pertencem cerca de 150 documentos que integram o catálogo, também podem ser vistos.
“Hilda Hilst era uma leitora voraz e seus textos refletem esse extremado amor ao conhecimento e aos grandes temas da literatura”, situa a professora e pesquisadora cearense Amanda Moura. “Observemos que, embora a autora tenha iniciado a vida literária na poesia com as temáticas do sublime, ao adentrar na prosa, nos anos 1970, ela incorporou também o que há de mais prosaico e cotidiano, mesclando o alto e o baixo, o erudito e o obsceno, apresentando-os de maneira nivelada e indissociável. É também neste período que Hilst desafia os gêneros literários e cria uma prosa livre e degenerada, por assim dizer”.
Tendo defendido, em 2016, a dissertação “O fora na literatura de Hilda Hilst” – para obtenção do título de mestre pela Universidade Federal do Ceará – Amanda conta que o interesse por mergulhar na obra da autora surgiu ao acaso, em alguma madrugada ao final da adolescência, quando leu, pela primeira vez, um dos poemas dela na internet.
“Semanas depois, li ‘A Obscena Senhora D’ e fui capturada de maneira irremediável. Anos mais tarde, já no mestrado em Letras, cheguei a investigar essa obra em minha dissertação, em que pesquisei, dentre outras questões, as relações entre o fazer literário e a experiência sagrada”.
Sim, porque, além da genialidade na tessitura textual, a escritora – nascida a 21 de abril de 1930, paulista de Jaú – colecionou curiosidades acerca de sua personalidade e comportamento. Aos 35 anos, por exemplo, passou a morar numa chácara em Campinas, a Casa do Sol, planejada por ela mesma para ser um espaço de inspiração e criação.
Cercada por cachorros, residiu lá até o fim da vida, onde produziu alguns de seus principais livros e recebia autores para períodos de residência artística, caso de Bruno Tolentino e Caio Fernando Abreu. Hoje, é a sede do Instituto Hilda Hilst.
Foi nesse ambiente que, durante alguns anos, também esteve com gravadores ligados na esperança de captar vozes do além. “É que as pessoas aqui têm muito medo da morte e preciso tranquilizá-las”, diz ela, em uma das fitas.
A história virou um filme, “Hilda Hilst Pede Contato”, da diretora Gabriela Greeb, que teve pré-estreia na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em 2018. Na ocasião, o evento homenageou a poeta, conferindo-lhe um prestígio pouco dado à autora em vida.
Amplitudes
Hilda Hilst com frequência queixava-se de não ser amplamente lida e reconhecida. Amanda crê que isso se deve, em parte, aos temas abordados por ela e ao modo de elaborar seus textos, sobretudo no que diz respeito à desafiadora prosa de ficção.
“Lembremos ainda que por muito tempo as edições de seus livros eram feitas por pequenas editoras, como a do então amigo Massao Ohno, com pouca capacidade de distribuição nacional. Acho importante, contudo, repensarmos essa concepção de que a produção hilstiana experimentava um completo exílio, pois basta lembrar que Hilda era comentada por diversos críticos literários com poder de legitimação na área”.
Um exemplo disso se dá nos anos 1970, quando a obra “Fluxo-Floema” foi prefaciada por Anatol Rosenfeld. Assim, já não faz mais sentido insistir na ideia de que a literatura de Hilst permanece desconhecida, pois as obras dela estão nas prateleiras de qualquer livraria e o público que a lê é amplo e de faixa etária diversificada.
“Ter sido homenageada pela Flip também ampliou ainda mais sua visibilidade”, considera a pesquisadora.
Há uma mudança de paradigmas quanto à recepção de seus textos antes disso, porém. Em 1990, ela passou a ser amplamente enxergada pela publicação de “O caderno rosa de Lori Lamby”, romance intencionalmente escandaloso e profundamente metaliterário, traço este frequentemente ofuscado pelos tabus que envolvem a obra.
Vem dessa época a fama de Hilda de, além de obscura e difícil, ser pornográfica, já que o livro, escrito em forma de diário, conta as experiências sexuais de uma garota de oito anos, que vende o corpo por causa dos pais. Uma lúcida estratégia de ser lida.
Também mestre pela Universidade Federal do Ceará, o professor de redação, Literatura e Língua Portuguesa Elvis Freire explica que esse erotismo, traço que primeiro lhe chamou a atenção em Hilda, se manifesta de uma maneira muito única no que escreveu, o que a coloca em uma posição bastante peculiar no cânone da literatura brasileira.
“Ao mesmo tempo em que, especialmente em sua obra poética, tem-se o uso de um vocabulário por vezes tido como pornográfico e cenas plenas de sensualidade, percebe-se também uma sacralidade, o divino em todo o seu mistério e terror. Não à toa, minha obra favorita em poesia é ‘Júbilo, memória, noviciado da paixão’, em que há mesmo a aparição de Dionísio (nos poemas de ‘Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio’), personificação perfeita do divino e do profano que Hilda tanto prezava”, diz.
Ode
Sobre o alcance das palavras de Hilda em solo cearense, Amanda Moura diz que não pode apontar de maneira definitiva algum autor ou autora nosso cujos textos demonstrem clara sintonia com os de Hilst.
“Mas as conversas informais e as redes sociais me permitem a felicidade de perceber um crescente interesse pela literatura da escritora. É possível, então, que o texto hilstiano esteja permeando a obra de cearenses, e esse é um ponto ao qual podemos dedicar maior investigação”.
Magoada por não ter sido celebrada em seu tempo, Hilda, na visão da pesquisadora, é digna de ser reverenciada nestes 90 anos em que consolida sua presença no mundo. É hora de ratificar o erro que cometeram com ela.
“Creio que o procedimento estético de reinventar a tradição e desorganizar as caixinhas da normatividade tem muito a nos ensinar, sobretudo no cenário brasileiro dos últimos anos. O fazer literário hilstiano, a meu ver, é a aposta contumaz na criação de uma realidade questionada e renovada, e esse é o grande legado de toda a literatura”, afirma.
Por sua vez, Elvis Freire, ao trazer às vistas o incontornável trabalho da escritora, igualmente sintoniza o que ela produziu aos turbulentos tempos de hoje.
“É uma escritora capaz de tocar especialmente aqueles que estão na adolescência, época da vida em que questões como Deus, sexo e morte, basilares da obra de HH, estão à flor da pele. Além disso, em tempos tão paradoxalmente ortodoxos e intolerantes, em todos os âmbitos, parece-me fundamental que todos nós celebremos a diferença, o outro, aquilo que incomoda nos outros e em nós mesmos. Celebrar a nudez em face do inefável, como Hilda gostaria”.
SAIBA MAIS - HERANÇA CULTURAL
Tendo recebeu prêmios como o Jabuti, o APCA, o Pen Clube São Paulo, o Cassiano Ricardo e traduzida para o inglês, francês, espanhol, basco, alemão, italiano, norueguês e japonês, Hilda Hilst escreveu mais de 40 títulos, entre poesia, teatro e ficção. Após a morte, em 2004, a Globo Livros relançou toda a obra da escritora, sob os cuidados do crítico Alcir Pécora e, atualmente, tem em catálogo os títulos “Pornô chic” e “Fico besta quando me entendem”, compilação de entrevistas com ela.